À hora previamente marcada, chega a chamada. Do outro lado da linha está Sandra Nobre, a chefe de cozinha que nos familiarizou com uma expressão que, para uma angolana de nascença, traz uma grande carga afetiva e de partilha, a Sentada.  Na próxima meia hora de conversa havemos de perceber porque para Sandra fez sentido chamar ao seu primeiro programa de televisão “A Sentada”. Duas temporadas no canal 24 Kitchen com a cozinha assinada por uma mulher, nascida em 1985, com origens angolanas, portuguesas, cabo-verdianas e norueguesas.

Quando nos genes correm diferentes latitudes deste nosso mundo, é natural que esta miscigenação também migre para aquilo que se faz e como se faz. Sandra Nobre fá-lo no seu programa de televisão ao juntar, fundir e aproximar, em dezenas de receitas, os alimentos e comeres que moram nas suas memórias, nas viagens que fez e faz e no caminho que decidiu encetar quando, há nove anos, saiu de Portugal e carimbou no passaporte a entrada na África do Sul.

Mais recentemente, em junho de 2019, Sandra Nobre alargou esta sua palavra de afeto, “A Sentada” ao livro que lançou numa edição conjunta do 24Kitchen e da editora Leya - Casa das Letras.

É uma Sandra Nobre rouca - pede desculpas pelo facto -, ainda de viagem fresca desde Inglaterra, país onde também reside, a par de Portugal (com casa próxima a Sintra), que nos explica o porquê de escolher a Sentada para estas suas primeiras incursões públicas na televisão e nos escaparates. “A Sentada é um termo angolano que significa um momento familiar. Há, inclusivamente, músicas angolanas dedicadas a este momento. Normalmente aos domingos, tal como em Portugal, temos os almoços familiares que se prolongam tarde fora. Os convidados cozinham, ou trazem a comida das suas casas. A Sentada pode, por exemplo, ter lugar na casa de um membro mais velho da família, por uma questão de respeito. Conversamos, falamos, rimos, vemos televisão, ouvimos música. Infelizmente no programa ainda não conseguimos ter uma Sentada”.

Sandra Nobre: A chefe de cozinha que nos convida à partilha na sua “Sentada”
Sandra Nobre, na Feira do Livro de Lisboa, aquando do lançamento de "A Sentada", obra que publicou em junho de 2019. créditos: © Paulo Castanheira/WRITE FRAME

Há uma outra palavra que define este estar, comensalidade, embora depois da explicação de Sandra para a Sentada nos pareça menos espontânea na capacidade de definir este estar com o próximo.

A Sentada é um termo angolano que significa um momento familiar. Há, inclusivamente, músicas angolanas dedicadas a este momento.

Tudo tem um porquê, no caso da nossa interlocutora nesta conversa, queremos saber o início, ou seja, a que tempo e lugares há que recuar para se procurar a mulher que nos dá, agora, neste 2019, o livro de 300 páginas que temos na mão e que conta, por exemplo, com prefácio do jornalista da TVI, Paulo Salvador.

Conta-nos Sandra: “Enquanto mulher e, para mais, africana, independentemente de gostar ou não gostar, tinha de cozinhar. Com nove ou dez anos saí de Angola e vim para Portugal, para Santarém, ficando na casa de uma tia. Com essa minha tia, tínhamos de ajudar nas tarefas domésticas. Mandava-me para a cozinha, cortar os vegetais e fazer uma sopa ou confecionar um arroz de cenoura. Tinha uma maneira de explicar muito simples. Passados cinco anos fui viver com a minha avó, professora. Com ela comecei a fazer sobremesas”.

Na prática, a cozinha na vida de Sandra Nobre, casa aquele que foi o seu percurso de infância com uma decisão tomada já em idade adulta. “Em 2008 a situação em Portugal não era a melhor. Acabei por ir para a África do Sul, para a Cidade do Cabo, onde estava o meu irmão. Já tinha, na época, a minha filha Maria e levava no currículo a formação em design de equipamentos”.

Sandra chega a uma cidade que a fascina, mas que lhe era estranha. “Confesso que não tinha muitos amigos. Nunca tinha estado num país com os problemas do Apartheid. Mesmo cuidando da minha filha, acabava por ter muito tempo livre. Disseram-me que havia um curso Cordon Bleu [na Silwood School of Cookery] na Cidade do Cabo, uma metrópole surpreendente, com uma oferta educativa fabulosa. Após três anos é reconhecido como um curso superior”. Para Sandra abria-se um novo mundo, sem que com isso omitisse o passado: “A minha avó passou-me este princípio, o de ser uma empreendedora. Foi uma pessoa que mesmo depois de se reformar inscreveu-se num curso de Direito”. Sandra também não se ficaria pela formação na Silwood School of Cookery. Mais tarde haveria de complementar os estudos em cozinha com uma especialização em pastelaria pela Cordon Bleu em Londres.

Atualmente, a segunda filha de Sandra Nobre está a frequentar o mesmo curso na Cidade do Cabo: “Dou à Linda conselhos para o dia-a-dia na escola, pois há chefes com personalidades mais difíceis. Sou um exemplo para as minhas filhas, o que também me traz responsabilidades. Tenho de fazer bem”, sublinha Sandra sem esconder a emoção que lhe corre nas palavras.

A minha avó passou-me um princípio, o de ser uma empreendedora. Foi uma pessoa que mesmo depois de se reformar inscreveu-se num curso de Direito

Um livro que une o mundo através da cozinha

Queremos saber como se chega a um livro com seis dezenas de receitas organizadas por estações do ano e, dentro destas, com ementas para diferentes momentos. Uma vintena de menus, todos apadrinhados por Sandra com referências a viagens –Menu Grego, Menu Francês, Menu Médio Oriente, Menu Austríaco, Menu Sul Africano – e a temas – Menu Soalheiro, Menu à Antiga Portuguesa, Menu de Natal.

Responde-nos Sandra: “O livro é o culminar de todos os momentos anteriores que descrevi. Não visitei todos os países aos quais dedico as receitas, mas estão nas minhas referências, leituras, interesses. A minha cozinha tem uma base francesa dada a formação. Também trabalhei em restaurantes que seguem essa cultura. Por exemplo, o La Colombe, casa de fine dinning na África do Sul. Quando estou a cozinhar em casa, as pessoas perguntam-me, por exemplo, como faço as infusões de alho. Gosto de desmistificar e explicar que não tem nada de especial, basta mergulhar o alho em azeite. É este princípio, o de descomplicar, que quis levar para os programas de televisão e, agora, para o livro que compila receitas da segunda temporada”.

sandra nobre
Na segunda temporada de "A Sentada", programa transmitido no canal temático 24Kitchen.

O que a chefe de cozinha nos entrega no seu primeiro livro são “menus a la carte, com coisas simples, embora a base seja a que referi, a cozinha francesa”. Uma mesa que Sandra quer saborosa e rápida. “Ninguém quer passar muito tempo na cozinha depois de um dia cansativo de trabalho. O que quis, assim que recebi a sugestão do programa e, depois já com o livro, é mostrar que a diversidade de bons ingredientes que há hoje nos supermercados nos permitem cozinhar pratos incríveis. Mesmo um cozinhado de forno pode ser prático. Uma perna de cabrito pode ser marinada e fica no forno a assar lentamente enquanto tratamos de outras tarefas”.

Um périplo de receitas que Sandra Nobre tornou eclético. Ao folhearmos o seu livro tão rápido nos deleitamos com uma Perna de leitão com abacaxi e mel, como saboreamos uma Baklava, ou uns Croquetes de camarão à holandesa acompanhados de couve-roxa. A chefe de cozinha convida-nos a arregaçarmos mangas e produzirmos uma Pá de porco em sumo de maçã com spatzle, uns Legumes assados ou uma sobremesa típica alemã de frutos vermelhos.

Ninguém quer passar muito tempo na cozinha depois de um dia cansativo de trabalho.

Um entusiasmo à mesa contagiante este o de Sandra. A mesma emoção que perpassa quando fala do atual Portugal.Estou a adorar esta fase de Portugal. Regressei de Inglaterra há pouco e, no avião, as pessoas perguntavam-me para onde vinha. Eu dizia que vivo em Portugal. Diziam-me, ´que bom`. As pessoas lá fora falam da cozinha do nosso país, do nosso peixe.  Quando cá chegam gostam de visitar os nossos restaurantes, de conhecer os chefes de cozinha portugueses. Quando regressam aos seus países de origem, levam ingredientes nacionais. No livro tenho a preocupação de incluir produtos portugueses. Quero investigar mais e criar receitas sustentadas naquilo que cada época do ano nos traz. Porque o sabor é diferente”.

sandra nobre

Para Sandra não é fácil eleger uma receita entre as muitas que compila agora em livro. “Talvez o Salmão Teriyaki que aprendi em Inglaterra com uma amiga. Quando veio a Portugal, com outras amigas, fiz-lhes umas gambas à Brás e adoraram. Ficaram surpreendidas pela simplicidade e pelo sabor. Depois expliquei-lhes que tem por base um prato tradicional português com bacalhau, que pode ser adaptado para outros ingredientes”.

Estou a adorar esta fase de Portugal. Regressei de Inglaterra há pouco e, no avião, as pessoas perguntavam-me para onde vinha. Eu dizia que vivo em Portugal. Diziam-me, ´que bom`

Um programa que também é pedagogia

Antes de encerrarmos conversa, queremos voltar novamente às memórias. Perguntamos a Sandra o que sentiu quando, pela primeira vez, gravou um episódio d´ “A Sentada”. “Era um exclusivo para Angola e Moçambique. Emocionou-me, pois venho de um país que atravessou 40 anos de guerra, uma guerra que tirou às pessoas o direito à educação, à saúde, entre muitas outras coisas. Eu, felizmente, tinha família em Portugal e sai. A primeira vez que voltei a Angola fiquei chocada. Fui com uns amigos jantar fora. Pedimos quatro pizas que nos custaram 400 dólares. Isto por um produto péssimo. Quero revolucionar, mostrar às pessoas como podem fazer.

Teryaky de salmão da tharat
Teryaky de salmão da tharat
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Logo, quando gravei pela primeira vez, queria mostrar como se faziam massas. Por exemplo, um croissant de massa folhada, tão simples, ou uma massa para piza, para ninguém ter de pagar tanto pela massa, deixando-se enganar”, conta-nos a nossa interlocutora que sublinha ainda, a imagem positiva associada ao programa e o carácter pedagógico: “Há, ainda, muitas carências em África. Porque não usar receitas europeias com produtos africanos? Fazer, por exemplo, um Cheesecake de Tamarindo. Do lado oposto, aqui em Portugal, faltam produtos africanos. Há muitas pessoas que viveram em África e que se recordam de determinados comeres, mas não encontram cá os ingredientes para os produzir. Nesse sentido o programa espoleta memórias”.

Para o futuro, Sandra deixa-nos algumas pistas e um desafio: “Tenho de ir ao Norte de Portugal, há inúmeros portugueses que viveram em Angola que se encontram lá. Gostaria de desafiar a Fox a cozinhar em províncias angolanas. Tenho muitas amigas portuguesas que nasceram na Gabela, no Kwanza-Sul”.

Uma faceta aventureira de Sandra que encontra entre os chefes de cozinha um nome como referência. “Kiran Jethwa é o meu chefe de cozinha preferido. Viaja pelo Quénia, traz-nos aventura, envolve-se com as populações, tem simplicidade e fala com os locais a mesma língua”.