A viagem entre Lisboa e o Douro não foi um passeio no parque. A chuva acompanhou-nos grande parte do tempo sem dar muitas tréguas. Depois de muitos quilómetros de auto-estrada, embalados ao som do relato do primeiro jogo de Portugal no Mundial 2022, percorremos aquela que figura na lista das estradas mais bonitas do mundo, a Nacional 222, para desembocar nas estradas sinuosas tão características do Douro: curva contracurva, com inclinações e declives de fazer suar quem prefere estradas em linha reta. Nada que abale o nosso motorista, Emanuel, conhecedor das estradas da região, fazendo o percurso com a naturalidade que só quem é dali tem.
Chegamos de noite à Quinta da Côrte, em Valença do Douro, concelho de Tabuaço, apesar da hora (17h30). O breu já nos engoliu, o que nos impossibilita de ver a paisagem em redor. Mas sabemos que no Douro não há muito a enganar: qualquer ângulo tem potencial para se transformar num quadro vivo, com o rio Douro aos nossos pés e os socalcos em nosso redor. As vistas ficam para o dia seguinte, em jeito de surpresa.
Somos recebidos por um trio de anfitriões: Marta Casanova, enóloga e Diretora geral, Bruno Ramos, Diretor Comercial e Francisco Lisboa, Diretor do Hotel e Enoturismo.
Como tudo no Douro, não fosse esta a região demarcada mais antiga do mundo, tudo é também antigo. É por isso difícil definir uma data para a criação desta quinta. Acredita-se que tenha acontecido no século XVIII, uma vez que os registos mais antigos datam de 1814, altura em que houve uma replantação da vinha, o que faz supor que a longevidade vai muito além. E como acontecia em muitas das quintas da região, as uvas eram vendidas a grandes casas produtoras de vinho do Porto como a Delaforce, a Croft, a TayIor’s ou a Ramos Pinto.
A sua história mais recente começa a ser desenhada em 2012, quando Philippe Austruy, um francês que começou a interessar-se e a investir no mundo dos vinhos, inicialmente em França, na zona de Provença e Bordéus, descobriu a Quinta da Côrte.
Bruno Ramos apresenta-nos a Côrte precisamente como parte de uma irmandade - Commanderie de Peyrassol e a vinha La Bernarde, na Provença francesa, Château Malescasse, no Haut Médoc, em Bordéus, Quinta da Côrte no Douro e Tenuta Casenuove na Toscana italiana, como a irmã mais nova desta família de vinhos.
Em 2013, o atual proprietário consegue finalizar as negociações com os herdeiros e começa aos poucos a recuperar a casa principal e a antiga adega, que guarda líquidos preciosos. Como referido, é difícil não encontrar algo antigo nestas propriedades dourienses. Neste caso as pipas centenárias e tonéis originais de 1936 permitiram à enóloga, e agora diretora geral, Marta Casanova aproveitar o vinho que se veio a tornar no Tawny 30 anos da Quinta da Côrte, Pipa 28, em 2014. Nesse ano dá-se também o arranque do ciclo de colheitas.
“Em 2013 vim fazer consultoria e fizemos um vinho Quinta da Côrte 2013, Doc Douro. Só em 2014 é que começamos com o vinho do Porto”, explica Marta Casanova, que herdou um património vínico rico o suficiente para começar a engarrafar vinhos em nome próprio, algo que não acontecia anteriormente.
São 26 hectares de vinha, apenas com castas tintas, em que 11 são de vinhas velhas, com idades entre os 90 e os 110 anos, sendo a mais famosa a parcela 505, a mais antiga de todas, da era pós-filoxera, apesar de Marta Casanova brincar com o facto de as vinhas mais recentes da propriedade não serem propriamente novas, à volta 40 anos, numa plantação que aconteceu nos anos 1980. Com duas adegas, uma velha para os vinhos do Porto e uma nova de três pisos para usar a gravidade para os DOC, as vinhas são numa mistura de mais de 100 castas onde se distinguem as tradicionais Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz e Tinta Barroca. Mas são as vinhas velhas o que os torna distintos na região.
E essa distinção forjou a estratégia da empresa. É por isso que todos os vinhos da Quinta da Côrte são edições limitadas, sendo os mais recentes lançamentos o Quinta da Côrte Vintage 2020, com uma produção limitada entre 2300 e 3200 garrafas - apenas 120 garrafas vão estar alocadas ao mercado português - e o Quinta da Côrte Tawny Colheita 2014, um Porto Tawny, de uma só colheita e com uma produção ainda mais exclusiva, de 1200 garrafas - com 600 alocadas a Portugal. “A ideia é só fazer vintages em anos excecionais e o último é de 2020”, explica Bruno Ramos.
O Tawny Colheita 2014 é o resultado dos vinhos que tinham em stock, que herdaram da vida anterior da quinta, que esteve sete anos em barrica. Ao contrário do vintage, a ideia é lançar um vinho novo todos os anos, partilha o Diretor Comercial da Quinta da Côrte cuja maior edição é 20 mil garrafas do vinho DOC Princesa.
“A zona do Pinhão é considerada o coração do Douro, onde podemos encontrar os vinhos mais equilibrados”, explica ainda Marta Casanova numa referência ao facto de estarem inseridos numa região com classificação A, a melhor do Douro. “Os donos, mesmo sendo franceses respeitam muito a tradição e o terroir”, acrescenta, seguindo a filosofia da quinta: “Deixar a terra falar”.
Ficamos a saber que na Quinta da Côrte as vinhas velhas ainda são tratadas com recurso a cavalos, o Bonito e o Garoto, com os quais não nos chegamos a cruzar, devido às condições climatéricas. A chuva que se fez sentir na região, dificulta o trabalho desta dupla, que teve uma folga forçada. “Eu gosto de respeitar o meio ambiente, todos temos de ter essa consciência cada vez mais, mas sem muitas regras”, explica a enóloga.
Houve ainda um trabalho de georreferenciação iniciado por Marta Casanova, em 2014, e que Flávio Rodrigues, um madeirense que se apaixonou pelo Douro e atual responsável de viticultura da Quinta da Côrte, continuou em 2019. Nas parcelas de vinhas velhas, esse trabalho ainda está em falta, mas o que existe ajuda, não só no trabalho do dia a dia, mas também na própria vindima, usufruindo-se assim com uma viticultura de precisão.
Um hotel boutique e um enoturismo que quer fazer diferente no Douro
Não sabemos identificar ao certo o porquê, mas a verdade é que Portugal está na moda há vários anos. E o Douro não é exceção. Não é difícil encontrar por estes lados americanos, canadianos, brasileiros ou chilenos que procuram saber mais desta região tão característica portuguesa.
A recuperação da casa principal para um hotel boutique sempre esteve nos planos de Philippe Austruy e a concretização deu-se em 2018. Apesar de terem aberto em tempo de pré-pandemia, Francisco Lisboa partilha que só em 2022 sentiram que foi o ano em que conseguiram efetivamente mostrar a proposta de enoturismo da quinta numa região que onde não começam a faltar propostas, das mais pequenas, às maiores – apesar de acreditarmos que esta não é zonas mais indicadas para o turismo de massas, opinião partilhada por Francisco Lisboa. “A região, se quer receber com qualidade, tem de pensar em nichos”, afirma.
O projeto de recuperação e decoração ficou a cargo de Pierre Yovanovitch, arquiteto e designer de interiores de renome internacional. O que vemos aqui é a sua reinterpretação do espaço num casamento entre linhas arquitetónicas audaciosas – por exemplo, o teto da sala de entrada faz-nos lembrar o mosaico hidráulico, mas num plano invertido - complementado com objetos de artesãos locais e finalizado com obras de arte um pouco por todos os espaços. Marta Casanova refere que há visitas que se concretizam precisamente pelo facto de os hóspedes quererem apreciar a obra do arquiteto, assim como as obras de arte presentes no hotel e na receção da adega nova: “há pessoas que vêm pelo vinho, mas há muitas que vêm pela arte”.
Na casa principal, a traça original foi mantida, mas a decoração, as fotografias e as peças de arte dão o toque moderno. A biblioteca, a sala de estar e as lareiras acesas nos dias mais frios, como foi no caso da nossa visita, oferecem um conforto familiar. Quase que nos sentimos em casa.
O hotel boutique soma oito quartos de hóspedes, três dos quais na casa principal, sendo dominados pelo luxo, mas de uma forma simples, e a atenção ao detalhe (em dois dos quartos há umas banheiras à antiga, compradas em segunda mãe e recuperadas para o espaço). Roupa de cama em linho bordado, almofadas e atoalhados monogramados, casas de banho dominadas pela faiança artesanal portuguesa, quadros, litografias de artistas e dezenas de candeeiros de autor, acesos em permanência, são alguns dos pormenores.
Mas o centro da casa é a antiga cozinha que foi recuperada para ser a sala de refeições. Salta logo à vista uma monumental chaminé coberta de azulejos, que antes servia para fazer o fumeiro, que está acesa ao longo do dia, trazendo calor humano que nos remete para o tempo em que nos sentávamos à lareira na casa das avós.
No meio do espaço, encontramos uma mesa espaçosa em madeira, pronta a receber os pratos tradicionais e despretensiosos, sugestão do jovem chef Daniel Pinto, natural do Douro, com produtos tradicionais, como o pão de Gimonde ou o porco Bísaro de Bragança, acompanhados pelo azeite da Quinta da Côrte, marmelada e produtos da horta.
A propriedade está disponível para receber clientes ao almoço, mediante marcação, mas o jantar é reservado aos hóspedes do hotel, também com reserva prévia. Têm preferência por grupos pequenos, estando mais próximo da filosofia de personalização e de receber bem que a quinta fomenta. “Aqui até recebemos grupos de duas pessoas. O que nas outras quintas é uma recusa, para nós são mais que bem-vindos”, partilha Francisco Lisboa.
Além dos espaços interiores, há muito por onde explorar no exterior. A alguns metros da casa é possível encontrar a piscina com vista para o Douro, assim como percorrer as vinhas através de qualquer um dos percursos assinalados, divididos em nível de dificuldade. Com sorte, pode ter a companhia de algum dos cães da quinta - Boris, Lori e Tinto Cão. Outro dos destaques vai para a carrinha Bedford azul, mesmo na entrada da casa.
A partir da primavera, os hóspedes podem optar por fazer as refeições nos espaços exteriores - há uma grande mesa de madeira, junto à casa principal disponível para esse efeito – assim como fazer piqueniques pelas vinhas.
Outros dos pontos altos, não só do enoturismo, são as adegas, com identidades completamente distintas: a mais antiga, do vinho do Porto, com as suas pipas centenárias e tonéis originais de 1936, e a nova adega, um edifício de três pisos desenhado pela enóloga Marta Casanova e por Pierre Yovanovitch, que é um hino à modernidade, à arte e ao bom gosto, funcionando por gravidade - as uvas são recebidas no piso térreo, que descem ao segundo piso para as cubas em inox, ou ao terceiro piso, à sala das barricas – onde podemos encontrar as barricas em carvalho francês, húngaro e Stockinger, para o vinho branco.
A arte está presente por toda a adega, seja em quadros, tapeçarias ou objetos de cerâmica que tornam o espaço único. O desenho das próprias janelas foi pensado para nos remeter para a sensação de estarmos a olhar para um quadro.
Neste que foi o ano mais importante de enoturismo da quinta, conseguiram ter uma ocupação significativa na época alta e tiveram bons resultados entre maio e outubro, com um balanço francamente positivo.
As tarifas dos quartos variam a partir de 170€ e a partir de 280€ em época alta. Há ainda provas de vinhos diárias, mediante marcação, com visitas à adega com prova de vinhos. A visita e a prova-base, que inclui três vinhos da Quinta da Côrte, começa nos 19€ por pessoa.
Os novos lançamentos vínicos
Quinta da Côrte Vintage 2020
Este vinho do Porto Vintage, proveniente de solos xistosos, é o resultado de um ano vitícola que teve grandes oscilações no inverno e na primavera. Durante o período de vindima verificaram-se grandes amplitudes térmicas, o que permitiu uma maturação mais lenta das uvas.
Vinificado em lagar com recuso a pisa a pé, esteve em estágio em tonéis de madeira e tem grande capacidade de guarda. A sua produção é muito limitada - entre 2300 e 3200 garrafas, em que apenas 120 estão alocadas ao mercado português -, e é o terceiro Vinho do Porto Vintage lançado por este produtor.
Com cores grená e reflexos retintos, tem aromas intensos de groselha, amora, geleia de framboesa, cacau, tabaco, pimenta, cardamomo. Paladar generoso, aveludado e sensual. Com notas de frutos silvestres maduros e especiarias com um fundo de vivacidade, um conjunto equilibrado e harmonioso.
Na boca tem acabamento longo e carnudo, com uma presença de taninos integrados. Ainda jovem, ganhará uma complexidade ainda maior nos próximos anos. Harmoniza com queijos como os Serra da Estrela ou DOP de Azeitão ou mesmo Stillton e Roquefort. Também acompanha bem um fondant de chocolate negro ou a acompanhar pato assado no forno regado com molho cássis de groselhas.
Quinta da Côrte Tawny Colheita 2014
Este vinho do Porto Tawny, também de solo xistoso, é o resultado de uma só colheita, de 2014, ano que se caracterizou pela pouca pluviosidade anual, com um verão quente e seco.
Provem de uma mistura de castas das parcelas de vinha velha da Quinta da Côrte e a sua maturação foi lenta devido a uma primavera e verão muito quentes e secos.
Vinificado em lagar com pisa a pé, estagiou em Pipas antigas de 600 litros durante sete anos, tem uma capacidade de guarda de pelo menos 20 anos. A sua produção é ainda mais exclusiva, de 1200 garrafas, com 600 alocadas a Portugal.
De cor aloirada, com notas de frutos secos como amêndoa e avelã, evoluindo para notas de torrefação. Na boca é complexo, boa acidez e estrutura, longo e elegante.
Harmoniza com sobremesas de chocolate ou doces de ovos, queijos amanteigados, amêndoas, castanhas.
O SAPO Lifestyle viajou até ao Douro a convite da Quinta da Côrte.
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