Com a profusão e alargamento dos estilos de vinhos, as novas técnicas e conhecimentos vitivinícolas contribuíram para a melhoria geral qualitativa mas, igualmente, para algum efeito de semelhança de sabores e estilos padronizados. Abriram-se, pois, novos campos na apreciação do vinho e um certo efeito de padronização, em resultado da profusão da crítica (no papel, na Web, etc.) reflectida na criação de tendências. O mercado acaba por influenciar-se por determinados sabores e os produtores tentam acompanhá-lo, na expectativa de ganhar quota e de melhor comunicar com o consumidor.

É também verdade que o perfil de consumidor é notoriamente mais diversificado, existindo maior variedade de sensibilidades, experiências e expectativas no relacionamento com o vinho. O consumidor é mais conhecedor, mais informado, mais experiente, mais interventivo em todo o processo, ainda que aos poucos se fossem perdendo alguns dos conceitos naturais e culturais associados ao consumo de vinho.

Assim, o vinho como parte constituinte da já famosa “dieta mediterrânica”, com muitas propriedades terapêuticas, que afinal já faz bem à saúde (moderadamente, é claro), vai procurando recuperar espaço no relacionamento com o consumidor.

É também neste sentido que, cada vez mais, se nota a tentativa do consumidor em perceber qual a ligação mais interessante entre um suposto vinho e uma determinada gastronomia ou criação gastronómica. “O que posso acompanhar com este vinho?” ou, ainda mais interessante, “que vinho devo escolher para acompanhar vários pratos num jantar lá em casa?”, são algumas das interpelações que vou ouvindo em workshops relacionados com vinho.

Esta movimentação em torno do consumo inteligente, racional e funcional do vinho, chamou-me a atenção pela sua actualidade, o que para alguém com “background” de escanção, restaurador e consultor me leva à questão pura e simples: afinal, o que é um vinho gastronómico?

Cada personalidade, cada enófilo, terá o seu entendimento sobre o assunto. Mas, é um facto que raras vezes o vemos objecto visado em escrita ou publicações. Aparece normalmente em conclusões finais de notas de prova, mas poderá deixar pouco claro o que se entende por vinho gastronómico sendo que, forçosamente, tem um quase inevitável entendimento individual.

Gastronómico, gourmand¸ versátil, funcional… são alguns dos qualificativos para os vinhos dos quais se percebe um conjunto de características que permitem, normalmente e com alguma segurança, apontar a uma boa ligação à mesa. Quando de repente nos ocorre outra possibilidade de harmonização, e depois dessa outra, tornando esse vinho o ponto comum de várias propostas de harmonização e consumo, é esta valência e versatilidade que tornam um determinado vinho gastronómico. O que não se consegue com um vinho demasiado poderoso ou muito leve.

Eventualmente, o conceito de vinho gastronómico pode parecer um designativo recente, mas se recordarmos instintivamente alguns exemplos reparamos que, afinal, tem muito mais profundidade temporal, cultural, regional e histórica. Facilmente observamos que muitos binómios naturais vinho/gastronomia regional comprovam esse enredo, onde o perfil dos vinhos tem correspondência com a dos hábitos alimentares e produtos que lhe são geograficamente circundantes.

Um exemplo que nos chega fora dos limites do nosso rectângulo é o italiano. Alguns vinhos que muitas vezes apreciados sozinhos não impressionam, sendo pouco aromáticos, com acidez marcada, moderados no corpo, de taninos leves e ligeiramente amargos, apresentam-se excelentes quando relacionados com a gastronomia transalpina. “São vinhos que sabem mais do que o que cheiram”, como diz um dos notáveis do nosso vinho nacional.

Outros estereótipos são os famosos vinhos da Borgonha, da Alsácia, de Espanha e muitos dos vinhos portugueses. Creio que o tipo de vinho mais transversal neste contexto será o champanhe e o espumante, um produto que pela sua elegância, frescura, complexidade mais ou menos marcada e o efeito criado pelo gás carbónico, apresenta um registo gastronómico que poucos conseguem acompanhar, podendo ser apreciado de início ao fim de uma refeição.

O perfil adequado para um vinho ser considerado gastronómico deverá ser de moderação no álcool, elegância no aroma, frutado ou complexo, esculpido por boa acidez, uma boa estrutura, sem ser maciço. O equilíbrio, obviamente, é fundamental, não necessitando de ser extremamente aromático ou dominado por algumas notas particulares ou marcantes. Um diálogo cordato entre o corpo, acidez e sapidez será outro aspecto que o deverá caracterizar. Alguma leveza e fluidez de prova, um fácil entendimento das suas características, a interacção complementar no palato, são mais argumentos.

Um vinho muito poderoso, gordo, por vezes doce de maturação, que por si só é a estrela do momento e que foca todos os holofotes nos seus argumentos, reduz para um plano subalterno a iguaria que o acompanha. Pode ser, claro, um momento de prazer marcante mas, para efeitos de harmonia gastronómica, a sua versatilidade é menor. De igual modo, um vinho demasiado discreto revela uma prestação abafada pelos sabores e características de muitos pratos e iguarias. Claro que tem o seu papel à mesa e tipologia de consumo, mas a sua versatilidade fica algo restringida.

Qual a importância destes vinhos em casa ou no restaurante?

Como seleccionar um vinho gastronómico:

Seja para uma garrafeira pessoal ou para um restaurante, a selecção de vinhos gastronómicos é similar.

Um dos factores interessantes para o consumidor é o facto de, normalmente, estes vinhos apresentarem uma relação qualidade/preço muito atractiva e uma flexibilidade de acompanhamento mais lata. Se a ideia é válida para nossas casas, também o será na restauração, já que uma boa escolha deste perfil de vinhos, dentro de várias faixas de preço, facilitará o aconselhamento, tendo ainda a virtude de poder criar uma relação de confiança e cumplicidade com o cliente. Assim, estes vinhos deverão constituir cerca de 50% da carta, com a vantagem de poderem proporcionar uma margem de lucro justa.

Como exemplo de alguns vinhos portugueses que, regra geral, apresentam este tipo de características temos, obviamente, os espumantes e os vinhos da casta Alvarinho, com pouca ou sem madeira, do Dão e das Beiras, pois a sua secura e acidez são características que permitem versatilidade. Muitos vinhos do Ribatejo e Estremadura têm esta funcionalidade, com o preço também a ajudar. Do Douro e do Alentejo, os vinhos normalmente de gama média apresentam-se versáteis. Os vinhos quase mal amados da Bairrada, nos seus melhores exemplares, têm muitas faculdades, entre as quais esta vertente gastronómica, e com um preço muito competitivo. A ter em atenção igualmente os bons brancos da região minhota, os Bucelas e as novas possibilidades que vão surgindo do Algarve, Açores e Madeira.

São estes vinhos que normalmente contribuem para um grau de satisfação no consumidor, que criam laços duradouros de fidelidade e confiança relativamente a marcas e produtores.

Manuel Moreira (sommlier)