Por décadas a tradição perdeu-se em Palmela. Atualmente, recupera-se para o 15 de janeiro, a Bênção das Fogaças. Uma prática em torno de um bolo que, de base, traz um dos alimentos mais intimamente ligado à cultura de mesa humana, o pão. No caso presente, a massa de pão, à qual se juntam elementos doces.
Há alguns anos, Nuno Gil, doceiro em Palmela e detentor da Confeitaria São Julião, começou a recolher, junto da população com mais idade da vila, informação sobre o culto das fogaças. Ligado à Confraria Gastronómica de Palmela, o chefe de pastelaria que nos últimos anos tem reabilitado para a doçaria local produtos do concelho, intercedeu junto do padre. Com a autorização da paróquia e a participação do município local, o 15 de janeiro voltou a ser de festa em torno da fogaça e de partilha dos labores de confecionar este bolo.
Tudo tem o seu porquê. No caso da Fogaça de Palmela, há uma razão de fundo para vermos citada nesta história o padre. É o próprio Nuno Gil que nos revela as raízes deste doce local. Isto, no decorrer de um workshop de fogaças na Casa Mãe da Rota dos Vinhos de Palmela. Em torno da bancada, dispõem-se mais de duas dezenas de participantes. A próxima hora traz, literalmente, uma atividade com as mãos na massa. Dá luta fazer a fogaça. Especialmente quando prescindimos do conforto do robô de cozinha e, a golpe de mãos, laboramos na massa até obtermos a consistência certa. Antes de nos determos na receita, ouçamos o doceiro e a sua explicação para a ligação da fogaça ao mês de janeiro.
“Os mais antigos contam que se faziam as fogaças a 15 de janeiro, associadas às promessas a Santo Amaro [século VI d.C.]. Nas origens, as fogaças assumiam configurações diferentes das atuais [hoje encontramos, por exemplo, as ameias do castelo de Palmela]. Estavam associadas a promessas para recuperação de órgãos do corpo. A forma do bolo podia ser a de uma mão, de um pé, do coração. No caso dos membros, há que pensar que numa sociedade agrícola, a força de trabalho estava nos braços, nas pernas, nas mãos. Os animais também eram objeto de promessas. Estes coabitavam na mesma casa com as pessoas, e constituíam, também, fonte de sustento. Também vamos encontrar fogaças em forma de cacho de uvas. Porque a apanha da uva era lucrativa”, sublinha Nuno Gil.
Em torno da bênção das fogaças havia todo um ritual local. “No dia 14 de janeiro, pedia-se a massa do pão aos padeiros. No dia seguinte iam-se cozer as fogaças ao forno do padeiro, ainda quente, depois de cozido o pão da manhã. Mais tarde, no mesmo dia, a população levava as fogaças em cestos de verga, envoltas em panos bordados, para a Igreja, onde o padre lhes concedia a bênção. Fogaças que eram, depois, leiloadas nas festas populares, com o valor arrecadado a reverter para o culto a Santo Amaro”.
De mãos na massa, é hora de produzir as fogaças
Feita a história, partamos para a arte da cozinha. Neste caso, Nuno apresenta-nos todos os ingredientes que dão corpo à fogaça. “Há mais de 20 receitas, neste caso apresento-vos um dos caminhos para obtermos as fogaças com o sabor e textura que lhes conhecemos. Vamos usar 500 gramas de massa de pão, o sumo de duas laranjas, a raspa de uma laranja, 500 gramas de açúcar amarelo, dois ovos [um outro, para pincelar as fogaças], um cálice de aguardente, 125 gramas de banha, 1,200 quilos de farinha, 30 gramas de canela em pó e perto de 50 gramas de erva-doce”.
Um elenco generoso onde percebemos que estamos perante um bolo aromático.
Com gestos sabedores, Nuno começa por juntar os ovos a massa de pão. Fá-lo com energia para uniformizar os dois elementos. “Repararão que a massa vai ficando com um odor ácido, quase lembrando o azedo. A massa vai-se alimentando do açúcar”, explica o pasteleiro que, entretanto, adicionou à preparação o sumo e raspa das laranjas, a banha, o açúcar, a canela, a erva-doce, a aguardente e, finalmente a farinha. A mistura tem, agora, uma tonalidade muito próxima da que lhe veremos no final, depois de deixar o forno. O odor é intenso, com um travo cítrico e onde não nos escapa o aroma da aguardente.
Dentro do largo alguidar onde o doceiro volteia a massa, esta ganha consistência embora, “ainda esteja branda, fica agarrada aos dedos”. Nuno Gil hã de continuar por alguns minutos a amassar, até ver a preparação ligada, compacta. É, agora, tempo de a massa descansar. Trinta minutos de repouso para levedar. Findo este período, retorna a massa à bancada enfarinhada. A massa é separada em pequenas porções [que caiba na palma da mão] e estendida com o rolo de cozinha até obtermos uma “folha” com perto de 8 mm. Chega o momento de dar às fogaças de Palmela as formas que lhe traçam a identidade. Os cortadores imprimem na massa a recriação de pés, mãos, cachos de uvas, entre outros contornos.
“Vamos agora pincelar a massa com gema de ovo”, anuncia Nuno que, com gestos hábeis, “pinta” as duas dezenas de fogaças dispostas no tabuleiro. É hora de oferecer aos bolos o calor do forno. Não mais de 180 ºC e a atenção para retirar as fogaças do calor assim que se apresentarem com um tom bronzeado. “Atualmente, as fogaças são menos duras”, salienta o doceiro, deixando-nos com uma sugestão de harmonização: “acompanham muito bem um Moscatel de Setúbal, mas também fazem bom casamento com o Queijo de Azeitão”.
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