Chamamos-lhes tortas, mas em boa verdade, antes são umas enroladas. Todas elas, pacientemente, à mão, a partir de uma massa de pão de ló. No caso vertente, uma massa que vai adquirir outra natureza, fruto de diferente método de confeção.
É com Nuno Gil, chefe de pastelaria, mentor da Confeitaria São Julião, em Palmela, que passamos três horas em torno de uma única fornada das suas Trouxas de Azeitão. Sim, um trio de horas para obtermos estas “meninas” de tom dourado, maciez no momento de as encontrarmos com o garfo, chegando-lhes ao âmago, o guloso doce de ovos.
Nuno Gil recebe-nos na sua oficina doceira, lugar onde passa longas horas. “Quando se faz por gosto não cansa”, revela-nos, enquanto ajeita os ingredientes sobre a bancada de tamanho generoso onde irá trabalhar. Por agora, ainda não paira no ar o odor guloso das tartes, pastéis, fogaças a dourarem nos fornos.
Saem às centenas todas as semanas da confeitaria deste homem empenhado em reabilitar a doçaria e os produtos locais. Hoje, como previamente combinado, vamos ocupar a manhã a laborar nas suas trouxas. “Gosto de lhes chamar trouxas, embora sejam tortas, em homenagem ao Chafariz existente em Palmela. Os aguadeiros iam, ali, abastecer-se de água e carregavam-na aos ombros, em cântaros; mais tarde no lombo de burros. Por sua vez, as mulheres lavavam a roupa nos tanques contíguos. O que faziam com a roupa lavada? Faziam trouxas, bem embrulhadas, como estas tortas”, sublinha o doceiro com um sorriso.
Por agora temos, sobre a bancada, uma dezena de ovos, gemas numa tigela, claras em outra. Num outro recipiente, 180 gramas de açúcar branco e 50 gramas de farinha branca com fermento. É tudo quanto basta para obtermos a base da nossa Trouxa.
“De manhã cedo já preparei o doce de ovos. Está no frio”, revela Nuno Gil. Para o obter fez um ponto de açúcar com um quilo do mesmo e meio litro de água e juntou-lhe três dezenas de gemas. Um creme de cor rica, que resiste à intromissão da colher, mas que ao se lhe agarrar já não a quer soltar. Há de chegar o momento em que conhecerá a trouxa. De momento regressa ao frio.
“É uma torta muito simples de fazer, mas muito morosa e não vale a pena pensar em atalhos”, frisa o doceiro enquanto pulveriza com gordura vegetal as 40 formas que irão ao forno. Conhecemo-las tortas, ou em trouxa, como neste caso, mas na realidade cozem planas no forno. Com um pincel, Nuno ajeita a gordura dentro das formas com 15 por 8 centímetros. Ficam a aguardar a massa que, entretanto, será preparada.
“Hoje em dia já há quem congele as tortas. É um processo que se industrializou o que obriga a que se adicionem, por exemplo, conservantes para evitar que os doces ganhem bolor”, explica-nos Nuno Gil que não recorre a este expediente. O chefe de pastelaria está, agora, a misturar as gemas com o açúcar e junta-lhes a farinha e a raspa da casca de um limão. Fá-lo à mão. O mesmo não se passa com as claras. Estão a crescer, vão ficar em castelo, dentro de uma batedora profissional.
Posto isto, liga-se delicadamente, à mão, a mistura de gemas de ovos com as claras em castelo.
“Esta é uma torta que precisa de descansar. Por exemplo, no pão de ló, assim que temos a massa pronta, levamo-la ao forno. Neste caso não. Há que fazer o deslace. Ou seja, vamos deixar a massa descansar 30 minutos já nas suas formas. As gemas vão separar-se das claras [as gemas descem]”, explica-nos Nuno.
Um processo que confere a natureza particular a estas trouxas. Isto porque será o lado mais húmido, o das gemas, que, quando enrolada a torta, ficará exposto ao ar. “Julgo que, historicamente, o deslace é fruto de uma distração. Alguém se esqueceu da massa e, querendo-a aproveitar pensou, ´vamos ver o que isto dá´. E deu isto”, acrescenta Nuno com um sorriso.
Entretanto, o forno já aqueceu. Está nos 200 ºC. As trouxas descansaram a meia hora da praxe. “Está a ver? A massa está talhada”, sublinha o pasteleiro, agitando o tabuleiro onde descansam as trouxas. Agitam-se em movimento gelatinoso. Vão, agora, conhecer o calor do forno onde ficarão 15 minutos sob o olhar atento de Nuno.
As trouxas estão douradas, quentes e aromáticas. Terminou o seu percurso no forno. Soltam-se, sem resistirem, das formas que as aconchegaram. O doceiro vira-as e, delícia, aqui está o amarelo sol que reconhecemos às tortas desta feição. Com carinho, Nuno Gil, dispõe as quatro dezenas de retângulos sobre a bancada forrada com papel vegetal. É hora de entregarmos à massa a espessura do doce de ovos, ali barrado e ao qual se acrescenta uma pitada de canela em pó.
Chegou o momento, feito de gestos precisos e cuidadosos. Com dedos experientes, o pasteleiro enrola a massa sobre si mesma. Um processo que leva o doce de ovos a extravasar o interior da sua casa de massa esponjosa, conquistando os bordos da trouxa. Está pronta e Nuno Gil suspira. “Naturalmente a experiência dá-nos segurança e, sabemos, que dificilmente nos sai mal. Mas é uma alegria vê-las, assim, perfeitas”, enfatiza.
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