Vivemos uma crise, uma pandemia que afeta toda a Humanidade. A organização sociopolítica exige restrições, o vírus exige-nos distanciamento e a mente e as emoções de cada um de nós têm de acompanhar. Mas como permanecer unidos, quando tudo nos obriga a aprender rapidamente a estar distante? Como sobreviver tão sozinhos e longe de quem amamos?
Para as relações amorosas estas questões aparecem como pop-ups pesados e intrusivos e as respostas nem sempre são as mais animadoras… É muito doloroso ser-se eminentemente relacional e não nos podermos tocar, abraçar ou beijar. As relações, que são a base da nossa humanidade, estão em causa.
Ao longo da vida e da história, as relações são constantemente desafiadas por várias mudanças: boas e más, mais esperadas ou mais inesperadas. Contudo, este pode ser um desafio maior, mais poderoso, podendo ter tanto de regenerador como de destruidor. Mas não é o virus e o isolamento por si só que podem provocar tamanhos danos. No que concerne aos casais (e quiçá a tudo o resto), são as estruturas relacionais construídas até aqui, bem como os recursos de gestão emocional, criatividade e resiliência que podem fazer toda a diferença.
Os casais que apresentam uma base sólida de conexão, respeito e entreajuda, também irão sentir receios e terão de fazer esforços, de lidar com temas pendentes e, se puderem, terão de discutir. Sim, discutir bastante e bem, de forma a poderem expressar o que lhes dói. Mas olharão para esta fase, exatamente como isso, uma fase que irá ter um início, um meio e eventualmente um fim, durante a qual irão ser uma equipa de “combate pessoal” à frustração e à irritabilidade mútua. Estes têm ainda uma boa hipótese de se tornar ainda mais fortes e mais unidos. As crises podem fortalecer o amor, se sentirem que as superaram também por estarem um com o outro.
Por outro lado, os casais que já estavam instáveis, com estruturas mais rígidas de atuação, em que a discussão é apenas agressão mútua e as lutas de poder estão instaladas, permanecer em isolamento e com pequenotes à mistura pode ser um sério terror. Aqui aumenta a probabilidade de conflito e tensão, de projeção um no outro de tudo o que possa estar a ser sentido como errado e doloroso. É de salientar que as relações tóxicas ou onde se sofre de violência doméstica podem ser tão más ou piores do que o isolamento total. Morremos de falta de conexão humana e vamos morrendo aos bocadinhos com agressão psicológica e física. Pedir ajuda é mesmo a única saída.
Existe ainda um terceiro tipo, o casal que já não estava bem, mas que nunca se apercebeu, que evita a todo o custo lidar com isso através de mecanismos de negação e de distrações múltiplas: imensas atividades sociais, tarefas infinitas, nunca parando para pensar ou sentir. Este tipo de casal pode até ser o que irá sofrer mais pois o conflito ascende, torna-se visível quando não há mais fuga possível e somos obrigados a olhar-nos nos olhos.
Para todos os casais será desafiante lidar com a tristeza, o medo e a vulnerabilidade que o que estamos a passar a todos provoca. Por isso é tão importante, diria mesmo essencial, expressar verdadeira e profundamente o que sentimos, o que está debaixo de toda a irritabilidade, raivas e frustrações, expressar a nossa alma pequenina e assustada àquele que vive connosco e sente exatamente o mesmo. Nesta troca de expressão emocional, podemos conectar-nos visceralmente e assim ficamos mais fortes no amor e no combate a todo o tipo de crises.
Se os casais assim se disponibilizarem, desejarem, e acrescento premeditadamente, se assim decidirem esta fase pode ser uma fase de REconexão, e até de REconhecimento do outro e do Eu, bem como de descoberta de outras e novas partes (boas ou más) não vistas até agora. Esta é uma fase que nos impele a parar e a esforçar por fazer melhores escolhas, a estar no momento presente com quem amamos, para nos responsabilizarmos mais pelos nossos atos e essa humildade beneficia o casal. Estas são as coisas que no meio de tanta impotência e descontrolo, podemos ainda controlar. A aceitação, a empatia e a bondade, aliadas à autorresponsabilidade são superpoderes nestes tempos.
Mas se a intimidade se instala e consolida com a proximidade e colaboração, já a sexualidade pode responder de maneira diferente. Quando há tanta proximidade e pouca novidade, como nesta época de isolamento, corre-se o risco de o desejo ficar afetado e ter impacto negativo na sexualidade dos casais. Para além disto, sentimentos de tristeza, angústia e ansiedade podem também diminuir a líbido para alguns e levar ao distanciamento físico e emocional. Para outros, a sexualidade em quarentena, também poderá dar alguma resposta em forma de escape libertador ao stress emocional que os casais poderão sentir, bem como ser mais uma fonte de prazer, satisfação e conexão que reforça ainda mais o vínculo amoroso.
E quem vive uma relação à distância ou está solteiro?
O toque é fundamental, mas esta pandemia está a impedir muitos do toque, do abraço ou do beijo. Quem está a viver solteiro e sozinho em casa esta quarentena, pode não ter o drama do conflito conjugal, mas tem certamente um silêncio ou vazio que não se toca, mas se sente, que só pode ser bafado por redes sociais, mensagens e videochamadas. Pode ajudar um bocadinho olharmos e sermos olhados através de um ecrã, mas amar sem se poder tocar pode ser uma forma de aprisionamento irrespirável, especialmente porque foi algo que nos foi imposto e não uma escolha. Muitas relações suportam bem ser vividas à distância, mas porque têm o suporte emocional de que foi a sua escolha em prol de algo que buscam, quer seja estudar fora e aprender mais, quer seja por uma viagem de trabalho. É muito diferente estarmos sozinhos e em isolamento, quando nos é imposto, como uma verdadeira prisão.
Nestas circunstâncias o melhor que podemos fazer é cuidar de nos próprios (através de exercício físico, meditação, prática de hobbies e aprendizagem de coisas novas), aproveitar para sentir e refletir profundamente sobre o que vai no nosso interior, e fortalecer ou reparar relações com amigos e familiares através de meios digitais. Ter distanciamento físico pode dar outra oportunidade à comunicação, à tentativa de explorar o outro com palavras, de aprendermos a pôr mais palavras no que sentimos, desejamos e queremos. Permite também, talvez, ter tempo para se ponderar mais o que se diz, quando e a quem se diz.
Quem está sozinho e solteiro nesta quarentena e que inicia relações por meio de aplicações ou redes sociais, acresce a segurança de se poder estar protegido por uma barreira invisível, que sem grandes justificações nos permite desconectar do outro de forma tão rápida como nos podemos superficialmente conectar. É uma grande segurança confortável (e talvez divertida), perante a coragem que é necessária para o toque e para os olhos nos olhos.
Este é um momento muito duro, que move muitas emoções, e nos imobiliza no espaço. Mas o espaço da nossa mente e o amor que sentimos pode ajudar a transformar-nos em pessoas melhores, a ter relações melhores e esperemos, um mundo melhor. Poderemos sair desta pandemia como seres que voltam à relação, baseada na conexão, aceitação e empatia. O que não se adaptou e aprendeu, provavelmente terminará e, se a Humanidade não ficar melhor, vai ficar certamente diferente. Ficar diferente já é um começo.
Vanessa Damásio - Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Conjugal e Familiar
Comentários