A Marta começou a magoar-se aos 13 anos. Utilizava quaisquer objetos que encontrasse em casa, desde tesouras, alfinetes, lâminas, saca-rolhas, ou até folhas de papel, ou na ausência dos anteriores, simplesmente partia objetos que pudesse utilizar.

“Começou por ser uma a duas vezes na semana, no antebraço… mas rapidamente passou para uma vez por dia e chegou a haver alturas em que eram 4, 5 vezes num dia, no braço, na barriga,na zona do bikini.”, diz a Marta.

Praticava ginástica acrobática desde os 6 anos, procurando sempre atingir a perfeição. Os pais, por sua vez, assumem terem pressionado a Marta para obter 4/5 nas suas avaliações finais de cada período, “ou saía da ginástica”.

Quando não aguentou a pressão, a Marta começou primeiro a arranhar-se e depois a cortar-se como forma de lidar com a mesma. Até ao dia em que a mãe a questionou sobre as cicatrizes nos antebraços, ao que a Marta respondeu: “foi o gato da Sofia (uma amiga da escola)”. A mãe não acreditou e seguindo o seu instinto perguntou diretamente: “Tu cortas-te Marta??”. Face à resposta afirmativa, a mãe sentiu-se devastada, perplexa, incrédula e só lhe apetecia gritar: “ O quê??? Como podes magoar-te assim??!”. Não contendo as lágrimas, diz ter-se abraçado a Marta, por um período que lhe pareceu infindável, dominada por um sentimento de impotência perante a descoberta dos comportamentos autolesivos da sua filha.

Falamos de comportamentos autolesivos quando o jovem deliberadamente adota atos com intenção de causar lesões ao próprio, como por exemplo, cortar-se ou saltar de um local relativamente elevado, com resultado não fatal; ou quando ingere fármacos em doses superiores à prescrita; ou drogas ilícitas ou substâncias com o propósito declaradamente autoagressivo; ou quando ingere ainda uma substância ou objetos não ingeríveis (ex. lixívia, lâminas ou pregos).

São uma realidade frequentemente oculta e preocupante pela elevada prevalência nos adolescentes, como têm revelado estudos nacionais recentes. Muitos autores têm considerado estes comportamentos na linha dos comportamentos suicidários, pela frequente dificuldade em determinar o grau de intencionalidade de morte associada.

É frequente observarmos que estes comportamentos assentam em sentimentos de grande ambivalência, registando-se uma clara oscilação no que respeita à intencionalidade suicidária, sendo difícil (ou mesmo impossível) a análise retrospetiva quanto à sua intencionalidade. Por outro lado, um comportamento que começa como suicidário poderá evoluir para um sem intencionalidade de morte, e vice-versa. Um comportamento auto-lesivo (CAL) não suicidário poderá ele mesmo constituir um comportamento letal.

Mas a pergunta que se impõe e domina frequentemente o pensamento de pais, professores, pares e até mesmo profissionais de saúde é: “PORQUÊ? Como podem magoar-se desta forma?!”.

Segundo Marsha Linehan, autora da Terapia Dialética Comportamental, uma das terapias de excelência para esta problemática, o adolescente corta-se como procura de alívio e/ou regular a dor emocional, ou evitar ou até mesmo anestesiar essa dor (tristeza, raiva, ansiedade, entre outros). Considera ainda que pode ser uma consequência direta de uma desregulação emocional intensa mantida ao longo do tempo.

Nesse sentido, a autora explica que estes são jovens que vivem e reagem às situações de forma muito mais intensa, seriam pois adolescentes mais sensíveis e reativos, com uma maior vulnerabilidade emocional. Têm ainda grande dificuldade, demorando muito tempo, no retorno ao equilíbrio, à “calma” emocional. O que na presença continuada de um meio (pares, professores, pais, etc....) que nega critica ou desvaloriza, castiga , ou até mesmo rejeita, ou classifica como incompetência, acabaria por promover o crescendo da reação e dessa forma contribuir para a supressão ou o exagero nas emoções.

Outros autores têm defendido que o jovem que se corta o faz para sentir algo, para se castigar, ou para fugir ou bloquear a ideação de morte, ou ainda como forma de expressar a sua dor. Não se confunda, contudo, como uma forma de chamar a atenção. O adolescente que se magoa, “fá-lo porque não sabe ou não está a conseguir expressar e lidar com a sua dor de um modo mais eficaz”.

Não podemos ignorar também o efeito de “contágio social” que poderá ter a revelação de algumas figuras públicas, como Demi Lovato, ou Angelina Jolie, de recorrerem a comportamentos deste tipo como forma de lidar com a sua dor, colocando os mesmos nas “luzes da ribalta”, ou os inúmeros vídeos e sites existentes online a ilustrar e a quase glorificar esta problemática. Também a descoberta de um amigo/ par do seu grupo de pares de pertença, poderá ser vista como uma normalização e aceitação deste comportamento.

A experiência e a literatura têm demonstrado que independentemente da razão pela qual o jovem recorre ao comportamento de infligir dor ou lesão a si próprio, este é sem sombra de dúvida um comportamento complexo, podendo assumir apresentações variadas e cumprir diferentes funções em momentos distintos da vida do jovem, promovendo alívio ou fuga /distração dos problemas, sem no entanto os resolver. E pode em certas fases tornar- se num comportamento aditivo.

Entenda-se que quanto mais extenso o período de tempo a que o adolescente recorre ao corte/dor como alivio da sua dor emocional, e quanto maior número de vezes que o faz, não só apresentará maior vontade e necessidade de se socorrer desses comportamentos, como poderá apresentar diferentes formas de se magoar e aumentar o risco e a gravidade associada aos mesmos, por um lado pela habituação e por outro pela perda do medo da dor e da morte.

Voltando à questão inicial, ninguém melhor dá resposta do que a própria jovem.

”As dores que o corte pode dar, que para além de serem dores físicas são também dores psicológicas (as mais dolorosas). São um constante lembrete daquilo que fiz e do porquê. Dói a desenhar, dói a esconder e dói quando outra pessoa toca e não poder dizer nada. O ato de cortar é uma forma de autodestruição, um ato de desespero, e da procura de um alívio rápido e principalmente esse ato não quer dizer que me queira matar. Os efeitos secundários são terríveis, mas os efeitos momentâneos são absolutamente e incrivelmente prazerosos. O alívio e o sorriso são imediatos. É uma droga. E ao dizer que é uma droga, quero dar a entender que o cortar provoca um alívio de maneira a tirar todo o peso das minhas costas e que é tão viciante ou mais quanto a droga. Quando fazes o primeiro corte vais querer o segundo. E no segundo vais querer o terceiro. No primeiro vais ter medo de te cortar, e a curiosidade vai continuar a querer fazê-lo segunda vez. No terceiro a dor e o medo é menor. No quarto o hábito entra-te na pele. No quinto corte não há nada a temer. “

As formas mais comumente utilizadas pelos jovens são sem dúvida os cortes ou os arranhões com qualquer objeto na pele desde que provoque dor ou sangramento, contudo os CAL podem como referido assumir várias apresentações desde:

1. cortes com tesouras, lâminas, x-ato, compasso, clips ou qualquer objeto cortante até folhas de papel, ou mesmo paus, Picar-se com alfinetes, pioneses;
2. queimaduras com cigarros, moedas, desodorizante rollon, gelo;
3. arrancar peles ou feridas, ou provocar a reabertura de feridas, ou simplesmente colocar sal nas mesmas;
4. atirar-se de alturas ou para a frente de veículos em andamento;
5. asfixia ou estrangulamento do pescoço ou outras partes do corpo com cinto ou cordas (perna, virilha, braço);
6. ingestão de medicamentos, lixívia, pesticidas ou outros
7. esbofetear ou esmurrar-se;
8. dar murros na parede ou bater com a cabeça na parede.

O limite é muitas vezes definido pela imaginação dos próprios

E quem está em maior risco de recorrer aos comportamentos autolesivos?

São escassos os estudos, por razões éticas, no entanto, a investigação sugere que a combinação de fatores de risco distantes e proximais aumenta o risco do adolescente adotar comportamentos autolesivos ou até efetuar uma tentativa de suicídio. Nos primeiros incluem-se fatores que apontam para uma maior vulnerabilidade do jovem, como sejam tentativas de suicídio anteriores; baixa auto-estima, perturbações psiquiátricas diagnosticadas (como depressão, ansiedade, pert. Personalidade, Consumo de Substâncias, entre outras); conflito familiar crónico; pertencerem ao género feminino, apresentarem dúvidas ou questões permanentes que se prendem como a sexualidade (maior risco em jovens homossexuais ou bissexuais).

No que respeita aos fatores proximais, entenda-se acontecimentos de vida stressantes recentes que poderão precipitar este tipo de comportamentos, contamos com uma história de abuso sexual ou físico; episódios de bullying, dificuldades académicas marcadas, dificuldades significativas no seu funcionamento diário reativas a uma doença física ou lesão, conhecimento e/ou exposição a suicídio de alguém querido, ou próximo, entre outros.

Nesse sentido comportamentos como usar mangas compridas no Verão, utilizar lenços ou pulseiras que cubram a quase totalidade dos pulsos, recusar em vestir roupa decotada ou ir à praia ou mesmo despir-se à sua frente, colecionar lâminas, canivetes, afias ou outros objetos que possam ser cortantes, aumento de isolamento em casa e evitamento de atividades sociais, são alguns dos comportamentos que em combinação com uma mudança observada no comportamento e humor do jovem, ou perante os acontecimentos de vida anteriormente descritos, justificam um olhar mais atento e especializado.

Se descobriu que a sua filha (ou filho) se corta é normal vivenciar sentimentos de confusão, medo e preocupação, de impotência, de culpabilidade, ou mesmo de raiva por não ter percebido ou conseguido evitar. É fundamental uma atitude não crítica face ao comportamento da sua filha, e do seu, e procurar perceber o que levou e leva a sua filha a querer magoar-se, o foco agora deverá ser ajudá-la a exteriorizar o que sente. Não significa isto que não possa partilha o que sente, aliás até é importante o jovem perceber que às vezes é normal sentir-se assoberbada pelas emoções e assim trabalharem nas vossas emoções.

Mostre-se disponível para ouvir sem critica, a probabilidade é que ela queria parar e não saiba como ou tenha demasiada vergonha ou medo de pedir ajuda e perder o seu amor. Dessa forma fale com a sua filha (ou filho) apenas quando sentir que está calmo e é capaz de ouvir TUDO o que ela possa ter a dizer! A sua atitude é determinante! Diga algo como “Quero que saibas que te amo incondicionalmente! Estou aqui para te ajudar.... não estou zangada ou desiludida contigo! Não estou aqui para te castigar... estou disponível quando tu te sentires confortável para falarmos do que está a acontecer, do que está a sentir!”

Não ignore, por vezes os pais receiam que ao dar atenção possam reforçar os comportamentos. Mas se o jovem grita por atenção dê-lhe, oiça-a! Neste sentido, foque-se não no comportamento e em cessá-lo, mas no que está a provocar o mesmo.

Não minimize estes comportamentos. Provavelmente a sua filha (ou filho) não precisará de ser hospitalizada, a não ser que tenha ideias de morte ou se os comportamentos são de tal forma lesivos que coloquem a sua vida em perigo. O primeiro passo deverá ser procurar ajuda especializada que o ajude a “ler” o que está a acontecer.

Quebrar o ciclo do comportamento autolesivo poderá constituir um verdadeiro desafio emocional para o seu filho, para si e para toda a sua família.

A adolescência é por si só desafiante para o próprio jovem, pais e professores pela instabilidade que a define. Dada a importância estrutural deste período na personalidade do jovem adulto, é fundamental a procura de ajuda especializada perante a dúvida de quaisquer sinais de alarme, sendo que a intervenção poderá incidir no (re)equilíbrio e (re) estruturação dos vários sistemas em que o jovem se insere.

E acredite... a mudança é possível!

Sónia Fernandes
Psicologa Clinica e Psicoterapeuta

PIN - Progresso Infantil