“Não podem ficar indiferentes, mas também não podem viver aterrados”, afirma o académico em entrevista à agência Lusa, ao abordar os impactos diretos e indiretos da pandemia de covid-19 na população em idade escolar.
Professor catedrático aposentado da Universidade do Porto, Adalberto Dias de Carvalho dedicou-se, entre outros estudos, às questões relacionadas com a morte. Não tem dúvidas de que a pandemia de covid-19 terá consequências na formação dos jovens, a vários níveis.
Muitas crianças estão a regressar às aulas com perdas nas famílias, pelo que os professores têm, também aqui, “um importante desafio”, na opinião do professor universitário.
“Aumentando exponencialmente as mortes (devido à covid e outras doenças), a possibilidade de haver mortes entre as famílias e os amigos cresce. É algo com que elas [crianças] vão ter de lidar. Muitas vezes, eram pessoas importantes para o seu crescimento, para a sua maturação afetiva. Isso são aspetos, muito, muito importantes, sem dúvida nenhuma!”, acentua.
A situação torna-se mais complexa de gerir nas atuais sociedades urbanas e laicas, onde a relação com a morte é de maior distanciamento do que nas sociedades rurais, “sem prejuízo do sofrimento que todos sentem”, explica.
“Basta ver o que se passa ainda hoje em muitas das nossas aldeias. Desde logo, a morte dos animais para serem comidos”, exemplifica, contrapondo à ideia de que nas cidades todos os produtos alimentares se apresentam embalados e processados, prontos a serem consumidos, sejam de origem animal ou não.
Nas atuais sociedades, cada vez mais urbanas, “a relação com a morte mudou”, diz Adalberto Dias de Carvalho, lembrando que nas aldeias ainda é comum o desaparecimento dos elementos da comunidade ser anunciado aos altifalantes da igreja, uma função anteriormente cometida aos sinos, cujo toque variava tratando-se da morte de um homem ou de uma mulher.
Essa chamada, a par do percurso que os carros fúnebres ainda fazem pelas ruas de certas localidades a informar que morreu alguém e que o funeral se realiza no dia seguinte, em determinada hora, faz com que a morte seja parte do quotidiano, uma realidade que nas cidades é “escondida”, aponta. “Não há cortejo fúnebre, a pessoa morre e desaparece”.
Da mesma forma, indica, numa sociedade predominantemente laica, o sofrimento e a morte “não têm sentido”, ou seja, não há um significado sobrenatural, espiritual, de conexão com algo superior. O desaparecimento de um ente acaba ali, não há continuidade, o que pode tornar a rutura mais difícil de gerir em termos emocionais.
Para o autor de “Antropologia da Exclusão ou o Exílio da Condição Humana” (Porto Editora), os cemitérios inseridos nas comunidades rurais criam também uma proximidade com a morte que não existe nas cidades.
“Há as casas dos vivos e há as casas dos mortos. Isso é natural, é perfeitamente assumido como natural, sem prejuízo da tristeza que as pessoas sentem também, como todos, mas é uma tristeza que também faz parte da vida”, refere.
Em contextos rurais normalmente a resiliência à adversidade é maior, desde logo pela relação com a agricultura e a sujeição a fenómenos que não controlam, segundo o investigador.
“Vivemos em sociedades em que estamos a ver todos os dias invenções e inovações tecnológicas, mas há uma coisa que acontece: podemos viver mais ou menos, mas morremos todos. Isso continua a não ser vencido. E isso é considerado um dos fracassos da nossa sociedade, um fracasso que as sociedades urbanas enfrentam mal”, considera.
Tudo isto faz com que as crianças em meio urbano tenham “uma relação de distanciamento, de ignorância”, em relação à questão da morte, condição agora alterada pela forma como lhes irrompe o dia-a-dia, seja pelas imagens que veem na televisão, por perda direta de familiares ou amigos ou porque diariamente ouvem dizer que morreu alguém.
“Neste momento, há uma proximidade da morte que é insuperável e realmente as nossas crianças e os nossos jovens enfrentam nestas circunstâncias também esta relação com um fenómeno que é o mais complicado, o mais paradoxal das nossas vidas, que é a morte”, declara o especialista.
Aos educadores pede que estejam “muito atentos”, até porque é “muito mais complicado de acompanhar” este processo quando as crianças estão numa relação virtual com a escola. “A dimensão pessoal da relação está alterada, está diminuída. O choro e as lágrimas não são convertíveis em transmissão virtual”, adverte.
“Na realidade, esse é um dos desafios importantes que se coloca, para o qual eles também têm de ser acompanhados, têm de ser formados, para compreenderem o que se passa e que temos de enfrentar e conviver com a morte e com o sofrimento”, preconiza.
“É uma experiência forte que as nossas crianças e os nossos jovens estão a enfrentar e para a qual têm de ser acompanhados”, reiterou o académico, que atualmente leciona no Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo (ISCET), onde coordena o Observatório da Solidão.
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