O sono é um processo dinâmico e ativo, contribuindo para o fortalecimento  do sistema imunitário. É ainda uma alavanca para o bem-estar físico, mental, emocional. A sua regulação depende de um relógio biológico interno e de sincronizadores externos (luz e hábitos ou estímulos que deverão manter o relógio regulado).

Uma profunda mudança instalou-se e atingiu os vários domínios do nosso dia a dia, o pessoal, familiar, profissional, económico, social. Mudanças essas que, a somar à nova doença, coloriram um arco-íris de medo, insegurança, ansiedade, stress. A ansiedade, por si só, é um potente gerador de perturbações de sono.

Sublinha-se que, as crianças e adolescentes que tinham perturbações de sono na era pré-Covid 19, poderão agravar no contexto atual e, as que não tinham, apresentar alterações neste campo. A disrupção do ritmo diário condicionou uma disrupção dos horários de sono, surgindo o caos nos horários de deitar e levantar.

Além da possível desregulação dos horários de sono, o confinamento em casa poderá reduzir a exposição à luz solar e às pistas de luz que permitem regular o ciclo circadiário de sono e vigília.

Insónia e pesadelos

As perturbações de sono mais reportadas, neste período, pelos pais e crianças na nossa prática clínica são: insónia (sobretudo inicial e intermédia), atraso de fase e pesadelos.

A insónia consiste na dificuldade mantida em adormecer ou permanecer a dormir, com compromisso na consolidação, qualidade ou duração do sono, tendo impacto no funcionamento no dia-a-dia. Resulta de uma combinação de fatores: quebra na higiene de sono, predisposição genética, patologia médica prévia, entre outros.

A ausência de regularidade de horários de sono é um importante fator precipitante de insónia, bem como a ansiedade e medos. O medo relativo ao contágio, as saudades da família afastada, dos colegas e da vida pré-Covid tem levado a que muitas crianças se mostrem mais ansiosas ou tristes no momento de adormecer, pedindo aos pais que fiquem com elas até que adormeçam, para se sentirem mais tranquilas e seguras.

O atraso de fase é uma perturbação do ritmo circadiário sono-vigília, que surge quando há uma falta de sincronização entre o relógio endógeno e os horários das atividades diárias. O confinamento em casa leva ao risco de desvio (atraso) da hora de deitar em pelo menos 2 horas face ao padrão habitual.

Assim, a hora de despertar também é deslocada para mais tarde, o que não se traduz numa redução das horas de sono se não tivermos de cumprir nenhuma atividade programada de manhã. Habitualmente, é muito comum nos adolescentes e agravada quando há comportamentos que promovem ou agravam este sono mais tardio.

Nesta época de pandemia, em que as atividades letivas cessaram durante um mês, verificámos que muitos dos nossos adolescentes (e também crianças), adormeceram bastante mais tarde do que o habitual. Isto não aconteceu pelo aumento da presença nas redes sociais (que, entretanto, se foi distribuindo ao longo do dia), mas sobretudo pela visualização de mais programas televisivos ou nas plataformas digitais, pela “desculpa” de que não tinham de acordar cedo no dia seguinte.

Com o regresso a uma nova realidade letiva, estamos a verificar uma maior dificuldade em ajustar o ritmo de sono-vigília aos horários do ensino à distância, com períodos compensatórios de sestas, que devem ser evitados.

Perante períodos de maior ansiedade ou de eventos marcantes da nossa vida, os pesadelos são muito comuns e poderão mesmo ser muito perturbadores. Estes “sonhos maus” são recordados no dia seguinte, podendo ser vividos de forma intensa, como ameaças à integridade física e segurança do próprio ou de terceiros. Podem gerar medo na criança, com resistência na ida para a cama.

Na prática clínica temos verificado um ligeiro aumento dos pesadelos, com conteúdos referentes a doenças e medos de morte, quer em si quer nos pais ou familiares, que deverão ser abordados no dia seguinte.

A era Covid-19 brindou-nos com um cesto recheado de novidades e fatores desestabilizadores, medo, insegurança, dúvidas, alteração dos nossos horários. Estes fatores potenciam-se na criação de perturbação de sono nas crianças e adolescentes e de ciclos viciosos, nos quais um fator agrava outro, em efeito dominó.

Várias entidades de referência na área do sono têm vindo a pensar em estratégias específicas a implementar na vida durante a pandemia. São estas:

. Manter-se rotinas e horários relativamente estáveis, nomeadamente de sono, alimentação, atividades escolares e de lazer, bem como atividade física.

. Potenciar contraste entre dia e noite:

a) Reservar um tempo para o sono noturno de acordo com as necessidades da criança ou adolescente

sono crianças

b) Dormir com a escuridão necessária (com eventual luz de presença fora do quarto) e de manhã, um pouco antes de despertar, abrir suavemente as janelas do quarto da criança para aumentar a exposição à luz natural

c) Expor-se à luz natural pelo menos 2h por dia, sobretudo na parte da manhã (ex. logo ao pequeno-almoço; brincar ou ter aulas perto de uma janela bem iluminada)

d) De dia, nomeadamente nas primeiras horas da manhã, optar por tarefas mais ativas e estimulantes, quer fisicamente (atividade com movimento) quer mentalmente (TPC, leitura) e evitar tarefas passivas (PC, tablet)

e) Não atrasar o horário habitual das refeições principais e evitar petiscar entre refeições principais, além dos lanches

f) Escolher um momento do dia, longe da hora do deitar, para falar sobre preocupações, medos ou pesadelos que as crianças possam ter, nomeadamente sobre Covid-19 ou outros. As informações devem ser esclarecedoras e adequadas à idade. Pode ser importante criar, com a criança, uma lista de atividades a programar quando forem levantadas algumas restrições, mostrando assim que o contexto atual não será eterno

g) Pelo menos 1h antes de ir para a cama desligar ecrãs e estabelecer uma rotina relaxante para “desconectar” do dia (contar uma história, jogar a um jogo com os pais, exercícios de relaxamento) num ambiente com pouca luz e ruído

A paleta de ferramentas que apresentamos é muito útil e eficaz no combate à instalação ou agravamento de perturbações de sono nas crianças e adolescentes em contexto de pandemia Covid-19. A desregulação da estrutura do sono em idade pediátrica condiciona repercussões negativas a nível físico, emocional, psíquico, tornando-se fulcral prevenir e identificar precocemente desvios do seu padrão.

A orientação e intervenção tem como objetivo normalizar o ciclo de sono, apaziguando alterações que possam surgir com o plano de mitigação da Covid-19 e com a consciência de que há equipas especializadas para intervir se for necessário um apoio individualizado. Lutar e combater a Covid-19, mas sem deixar que essa luta tire o sono à nossa família.

Autoria: Dra. Andreia Leitão (Pediatra do Desenvolvimento) e da Dra. Mafalda Leitão (Psicóloga Clínica) - Núcleo de Perturbações do Sono do PIN