Hoje, quando me posicionei no fundo do corredor da casa dos meus pais, recuei 29 anos. Fui até ao dia em que comemorei o meu 12º aniversário e vi-me, precisamente naquele espaço, a ajeitar os óculos e a pedir aos meus pais para me darem à entrada das doze badaladas o presente que me apenas me dariam, por tradição, no raiar do sol. Lembrei-me de como rodopiei sedutoramente à volta deles, pedindo para me estenderem aquele pequeno presente que, com muita esperança, seria aquilo que eu mais desejava.
Dei dois passos em frente e vi-me mais de perto. Com um sorriso enorme que se escondia por trás dos cabelos sempre rebeldes, a receber o embrulho que a minha mãe acabou por concordar em entregar-me. Fiquei uns segundos a admirar o papel colorido com que o presente estava adornado, sentei-me no chão, cruzei as pernas e abri finalmente a minha tão aguardada surpresa. Uma caixa de música em que uma boneca de vestes compridas dançava sempre que se abria uma gaveta. Era este o meu grande desejo. Uma simples caixa de música.
Sabendo perfeitamente o local onde ela ainda se encontra, abandonei o corredor e as memórias e diriji-me ao meu quarto de sempre. Vi-a no local do costume e peguei-lhe como quem agarra no mais precioso tesouro. Perfeitamente estimada, só que sem som e com uma boneca já inerte.
Os 29 anos de anos daquela caixa de música guardam memórias de uma vida imensa. Da minha vida. Memórias das noites que partilhei com as minhas melhores amigas. Memórias da primeira dor de amor. Memórias das alegrias dos amores seguintes. Memórias das gargalhadas, das lágrimas, das certezas e das preocupações. Memórias do dia em que fiz as malas e rumei a outro lar, não sem antes prometer que ela, aquela caixa de música, iria continuar naquela casa para garantir a certeza de ali me reencontrar.
Mas a maior memória que ali se guarda é a das barrigas de amor. Das vezes que comuniquei aos meus pais que iam ser avós. Das vezes que o choro de bebés pequenos ecoaram pela casa. Da velocidade relâmpago em que eles passaram de crianças cambaleantes a “pequenos adultos”. Da forma como eu deixei de ser a eterna criança sorridente para ser a adulta com um sorriso eterno.
Não sei se, um dia, os meus filhos se vão reencontrar na minha casa – naquela que, não sendo mais deles, terá para sempre o seu rasto. Mas espero sinceramente que eles possam encontrar num lego, numa boneca ou também numa caixa de música a constatação absoluta de que tiveram uma vida plena e feliz. E que concluam, tal como eu confirmei hoje, que os seus pais foram uma peça fundamental nessa desafiante caminhada rumo à felicidade.
Alda Benamor
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