Retratos Contados (RC): Tozé, fale-nos dos seus avós. O que sabe sobre eles?

Tozé Brito (TB): Os avós paternos, conheci-os, mas os maternos, não. A minha mãe, aos dois anos, já era órfã de pai e mãe, e portanto nunca os conheci. Tanto quanto sei, a minha mãe nasce duma relação ilegítima, já que não eram casados. Morreram os dois com dois anos de diferença. Quando a minha mãe nasceu, morreu o pai, e a mãe morreu poucos anos mais tarde. Foi entregue para adoção com dois anos. Ficou com uma família a quem chamou sempre pai e mãe e irmãs. Eram três filhas, com ela quatro.

Do lado do meu pai, tudo correu da maneira tradicional. Cresci com os meus avós paternos, todos a viver na mesma casa, no Porto, e naquela altura alugavam uma casa gigante e ia para lá a família toda. Viviam os meus avós, o meu pai e a minha mãe, o meu tio, irmão do meu pai e a minha tia e os netos, seis netos, três rapazes dum lado e três raparigas do outro. Uma casa onde cabíamos todos e vivíamos tranquilamente. A minha avó foi uma pessoa duma importância enorme na minha vida.

RC: Como é que ela se chamava?

TB: Lídia. Mãe do meu pai, mais velha do que o meu avô nove anos. Eu era muito miúdo, mas comecei a perceber que não era uma relação muito normal e que a minha avó tinha muita disponibilidade para estar connosco. A minha mãe trabalhava durante o dia, o meu pai trabalhava também. Então, a minha avó criou-nos, crescemos com ela e com as duas empregadas que lá havia em casa, uma cozinheira e outra para tratar da casa e das crianças. A minha avó era uma pessoa extremamente alegre, muito positiva. Mesmo quando até eu percebia que as coisas não estavam bem, nunca a vi abatida, triste, deprimida, nada. Andava sempre feliz, contente, sempre muito ativa. A vida dela eram os netos, vivia completamente para nós, especialmente para mim, porque era o rapaz mais velho. Era o preferido. Ela tinha por mim uma paixão… Sentia que havia ali uma relação especial com a minha avó, e curiosamente até na música ela teve um papel importante. O meu pai sabia que eu gostava de tocar viola, por isso quando já estava no liceu, com dez anos, se eu tirava más notas o meu pai tirava-me a viola. Era o castigo, ele sabia que eu passava horas por dia agarrado à viola e ele então o pior castigo que me podia dar era “tiraste más notas, então dá cá a viola e até teres boas notas não tocas.”. E era a minha avó que me passava a viola.

Sou duma família em que nos sentávamos à mesa para jantar e ninguém abria a boca até o avô dizer: “Então como é que correu o dia?”

RC: Às escondidas?…

TB: Ele fechava a viola no quarto e ela é que tinha as chaves. Passava-me a viola pela janela e eu tocava, tocava, tocava e quando chegava à uma hora, ela dizia: “ agora já não podes tocar viola, que eles estão a chegar”… E eu fui passando de ano mas sempre à rasquinha, só o suficiente para não perder a viola. Se calhar, se não tivesse sido ela …

RC: Tu largavas a viola…

TB: Sim.

RC: E que mais te recordas dela?

TB: Cantava imenso, ela gostava de cantar. Era uma pessoa muito alegre.

RC: Ah sim?

TB: O meu pai também gostava de cantar, era um excelente músico.

RC: Daí vinha essa cumplicidade também, por causa dela cantar?

TB: Por tudo. Eu sou duma família em que nos sentávamos à mesa para jantar e ninguém abria a boca até o avô dizer: “Então como é que correu o dia?”. O meu avô Fernando era daqueles patriarcas que se sobrepunha a todos, nem a minha mãe, nem o meu pai, nem os meus tios se atreviam a falar antes dele. Ele sentava-se à mesa, começava a jantar e fazia-se um silêncio, com doze pessoas à mesa, e depois só quando ele falava…é que a conversa começava. Era um avô austero, daqueles portugueses tradicionais dos anos cinquenta. Ainda nasceu no século XIX, era uma pessoa austera, contida, muito duro e até pouco afetivo, muito pouco afetivo. Enquanto a minha avó era o contrário, era só abraços, era só beijinhos, com os netos todos ao colo e tudo aos saltos.

RC: O que na altura, nem era tão comum quanto isso …

TB: Não, nos anos cinquenta, pelo menos que eu saiba, nas outras famílias não era normal mostrar essa afeição, era tudo mais contido.

RC: Não se podia estragar os meninos com essas coisas, não é?

TB: Havia ali um respeito muito grande, não era bem medo, era mais um temor, o meu avô era frio. Uma pessoa fria por natureza, e a minha avó era o oposto.

RC: E os pais adotivos da tua mãe?

TB: Conheci-os já muito velhinhos. Nós vivíamos na Marechal Gomes da Costa e eles viviam em Cedofeita. Ainda os conheci, mas mal. Conheci muito bem as minhas três tias.

RC: Então não havia grande ligação com essa parte da família?

TB: Não, não havia. A partir do momento que a minha mãe casou com o meu pai passámos para o núcleo familiar do meu pai, ou seja, passou a ser a família Brito, que era o lado do meu pai, e a família Correia, que era da minha mãe, ficou pelo caminho. Era mais comum isto acontecer do que o contrário, naquele tempo. As noras passavam a fazer parte da família dos sogros.

RC: O que achas que recebeste dos teus avós?

TB: Recebi duas coisas completamente distintas; Como vos disse, da minha avó recebi a ternura, o afeto, o carinho e aquela noção de amor e de proximidade física …táctil, do beijo e do abraço e tudo isso, e também da minha mãe. Tanto o meu pai como o meu avô, eram pessoas muito mais austeras, mas extremamente sensíveis. Conto-vos duas histórias, e vocês percebem tudo.

O meu avô era uma pessoa muito contida, mas de uma retidão absoluta e para mim aquilo raiava o impossível. Ser assim tão tão perfeito! Mas tinha provas disso. Por exemplo, tínhamos um primo que era do P.C.P., um partido que existia na clandestinidade, na altura. Se se era do P.C.P., era-se constantemente preso. Ele vinha para Caxias e quando o libertavam, ou quando conseguia fugir, um dos sítios onde aparecia era em casa do meu avô. Não era sequer primo direito (eu ainda sou primo em terceiro grau do Sérgio Godinho, e este primo era mais próximo do Sérgio do que eu), mas era para lá que ele ia. Lembro-me perfeitamente do meu avô, que não tinha nada de esquerda – estávamos em tempos de ditadura salazarista – dizer que “cá em casa não há politica “. Tinha eu uns doze, treze anos, comecei a aperceber que esse meu primo Rolando, quando fugia da prisão dormia lá em casa. Aparecia lá em casa, batia à porta tarde na noite, o meu pai abria a porta e ele dormia lá em casa, e saía cedo no dia seguinte. O meu avô limitava-se a “fingir” que não dava por nada. Para mim, foi uma revelação, quando eu percebi a aparente contradição entre dizer que não queria nada com a política, enquanto sabia que o meu primo batia à porta que vinha fugido da prisão, e o meu pai dava-lhe um quartinho para dormir.

RC: Era muito conservador mas ao mesmo tempo muito humano.

TB: Completamente. É outra forma de amor, de respeito e de fraternidade. Tenho outra história que vos vou contar, e essa tocou-me a mim diretamente:

Só uma vez na minha vida é que me lembro de roubar alguma coisa a alguém e foi à minha avó, para comprar um maço de cigarros. Fui ao porta-moedas, vi aquilo cheio de moedas, e disse para mim “ela não vai notar, com tanta moeda aqui“, e tirei uma moeda de cinco escudos para comprar um maço de tabaco – na altura um maço de tabaco custava quatro escudos. A minha avó era daquelas que se tivesse sessenta e três escudos e quarenta centavos ela sabia que tinha sessenta e três escudos e quarenta centavos, sabia tudo. À noite, chegou o meu pai e ela disse “alguém me roubou dinheiro, mas não quero pôr em causa as empregadas, que já estão cá há muitos anos. Estou convencida de que foi algum dos miúdos.” Fomos levados os seis para interrogatório. “Então, quem foi ao porta-moedas da avó?” Olhei para os outros e percebi que ia ter de assumir a culpa. E disse “fui eu!”. Diz o meu pai: “os outros podem ir-se embora, tu ficas aqui “. Ele foi falar com o meu avô e eu fiquei à espera. O meu pai entrou com uma tesoura na mão, e cortou-me o cabelo assim, trás…trás…trás…trás…fiquei só com uns penachos. No dia seguinte, tive de o rapar. Lembro-me perfeitamente, levou-me ao barbeiro às nove, o Sr. Fonseca, que me rapou o cabelo à máquina um ou dois, e depois eu tive de dizer que foi uma brincadeira. Agora imagina, anos sessenta, toda a gente com os cabelos compridos e eu rapadinho.

RC: Com que idade?

TB: Com uns treze anos. Meteu-me no carro, isto à noite, à hora de jantar, e disse: “vamos correr as portas da família toda, os teus tios todos, os teus primos todos, e vais pedir desculpa à família toda”.

RC: Com o penteado novo?

TB: Com o penteado novo. Desde esse dia nunca mais roubei nada a ninguém, nem um cigarro! Sou capaz de ver um maço de cigarros aqui e não tiro um cigarro, não sou capaz. Nunca me esqueci. Foi uma lição… No dia seguinte, eu chorava, como é evidente. Ele rapou-me o cabelo, e depois deu-me um abraço e disse “isto é para tu nunca te esqueceres: eu não te estou a castigar, estou a dar-te uma lição para tu aprenderes “

RC: Bem, com essa lição acabaram por aprender os irmãos e os primos…

TB: Aprenderam todos, apanharam todos por tabela sem lhes tocarem. “Passa-se com este, passa-se com todos “.

Foram estes valores que me passaram, uns mais afetuosos, outros mais duros, mas no fundo está tudo no mesmo saco. Felizmente, cresci bem, passei esses valores doutra maneira, porque não foi preciso rapar o cabelo às minhas filhas.

RC: E os netos?

TB: Quero que percebam que a alegria é importante, que esta vida é para ser levada na positiva sempre que possível. Tento dar-lhes uma mensagem de esperança, dizer-lhes “lutem pelos vossos sonhos e não desistam”. Eu tive esse problema, queria ser músico, em Portugal dos anos 60 era uma loucura. Toquei no POP FIVE, depois mais tarde no Quarteto 1111, mas nessa altura já tinha 18 anos e o meu pai já não se metia muito nisso. Até então, foi sempre naquela base «tocas e tens bandas enquanto tiveres notas boas, se começas a tirar negativas…» Nunca tirei grandes notas, mas ia passando de ano. Tive de bater-me loucamente para ser músico porque era o que eu queria. Ele queria que eu fosse advogado, porque o meu avô era diretor financeiro do Banco Espírito Santo, o meu pai era diretor financeiro da Tranquilidade. Tinham vindo da área da economia e eu ou era advogado, ou engenheiro, ou economista. Até podia ser outra coisa, mas uma profissão que eles considerassem séria. Naquela altura havia uma expressão:”guardem aí as pratas que vêm aí os músicos.” Não era bem visto ser músico.

Fui presidente de multinacionais, mas vivi sempre da música. Verdade se diga, a partir do momento em que o meu pai percebeu aquilo que eu queria, que eu tinha sucesso, foi o meu maior fã. Ia aos espetáculos, comprava os meus discos todos e só queria que as coisas me corressem bem. A minha avó tinha um orgulho em mim! Ainda acompanhou a minha carreira durante muitos anos, e o meu avô também mesmo sendo contido, não dizendo nada. Todos eles gostavam de saber que o neto aparecia na televisão…

Portanto, digo aos meus netos: “não desistam”. Eles sabem o que eu passei, o que eu penei para conseguir fazer da minha vida aquilo que eu queria, e continuo ao fim de cinquenta anos a viver da música de formas diferentes.

RC: E hoje em dia, quando contas as histórias da família aos teus netos …

TB: Não conto!

RC: Não contas?

TB: Curiosamente não conto, por uma razão muito simples. O Francisco tem quatro anos, o Vasco tem dois e a Clara tem quatro meses. O João tem doze e é o único com quem eu já tenho conversas interessantes, já de rapazinho. O Diogo, que tem oito, ainda é muito novo para “grandes conversas”… Gosta de jogar à bola e da consola de jogos, e se apanha um tablet …disso é que ele gosta. O mais velho é o único com quem eu tenho uma relação mais adulta. A grande paixão dele é a música, também já toca viola e quer que eu lhe ensine mais, faz muitas perguntas, a nossa relação passa já muito pela música.

RC: Se calhar, quando eles forem mais velhos acabam por ter um pouco mais de curiosidade por saber do passado…

TB: Eles, do meu passado, sabem tudo, basta irem à Wikipédia ou ao Youtube… Quanto à família, nunca me fizeram perguntas, e a minha mãe ainda é viva…

RC: Ah sim?

TB: Eles ainda têm bisavó, a minha mãe tem oitenta e oito anos e está bem. Se eu chegasse lá com a cabeça dela, era um homem feliz. O meu pai já cá não está, já morreu.

RC: E as tuas filhas, como é a vossa relação?

TB: A minha relação com as minhas filhas foi sempre fantástica, foi sempre perfeita. A minha mulher, essa é que tinha de as pôr na ordem, porque elas eram raparigas. Quando era preciso levantar a voz é evidente que eu também o fazia, mas havia conversas que elas nunca teriam comigo, era sempre com a mãe. Agora estes, os netos, fazem o contrário: como são rapazes e como nem sempre querem abrir-se com o pai, vêm falar comigo. Contam-me os disparates que fazem. Eu vou contar uma coisa que se passou com o Diogo, é o que tem oito anos. Na altura, não tinha mais de seis anos, e nós não os deixamos ter acesso aos computadores sem restrições. Mas um dia, apanhou o computador da minha mulher ligado e eu percebi que ele tinha aproveitado a distração. Pensei «Vou devagarinho, para ver o que ele está a fazer». Só vi mulheres nuas! «Espera aí, oh Diogo, para aí!» Peguei no rato e fui ver o que ele tinha feito. Entrou no Google e escreveu “mulheres nuas “, e apareceu-lhe ali um cardápio que nunca mais acabava. «Oh avô, eu só escrevi mulheres nuas», como quem diz, «eu não escrevi nada do outro mundo e estão aqui tantas!» Ele estava feliz. (risos)

RC: O que te parece mais importante na educação das crianças?

TB: Penso que o que é importante passar-lhes é a noção de que há valores que são fundamentais nesta vida, mas os pais são muito bons nisso. As minhas filhas e os meus genros educam-nos muito bem. Eu ando atento mas percebo que não tenho que lhes dar lições de moral em aspeto nenhum porque eles vêm muitíssimo bem-educados. Os pais são de uma geração em que há desemprego, dificuldades terríveis, insegurança, a gente não sabe o dia de amanhã e eles vivem este ambiente e quando vêm ter connosco eu digo sempre “eh pá calma, lutem pelo que acreditam, vão até ao fim! Não é aqui, é em Inglaterra “. Eu tive de ficar em Inglaterra dois anos!

O João já toca viola, o Diogo é o cantor da família e canta realmente bem, o Francisco quer ser baterista e já demonstra grande aptidão para isso. Não quer dizer que venham a ser músicos… O meu genro também é um excelente músico, produtor musical e compositor. A herança genética bastante forte, mas sejam o que forem, esta é mensagem de esperança: “nunca percam a esperança porque, quando isso acontece, o ecrã fica negro. ”

RC: É verdade.

TB: O filme acaba e ficas a olhar para a palavra “FIM”, e a palavra fim é a coisa mais triste que há. Reinventem o filme, mexam-se, vão à procura daquilo que querem.

Entrevista: Nélson Mateus e Adelaide de Sousa

Fotos: Tracy Richardson

Agradecimentos:

Sociedade Portuguesa de Autores

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