Marsilio Cassotti fala com paixão da mulher que lhe ocupou grande parte dos pensamentos nos últimos 12 anos. Joana de Portugal, filha póstuma do rei D. Duarte I.

A princesa portuguesa que foi rainha em Espanha e que esteve em vias de unificar politicamente a Pensínsula Ibérica tem sido injustamente condenada e esquecida pela história.

Uma situação que indigna o escritor e investigador, autor do livro «A rainha adultera», editado por A Esfera dos Livros. «O meu objetivo ao escrever este livro e ao lançá-lo em Portugal foi mostrar aos portugueses uma figura praticamente desconhecida no seu país, que foi difamada em Castela e em Espanha, para lhes dar a conhecer os valores desta mulher», começa por justificar.

«Para que, ao conhecerem uma série de factos positivos e menos positivos desta personagem, tirem as suas próprias conclusões e façam a sua própria avaliação. Dona Joana foi uma grande rainha, que fez sempre todos os possíveis para defender os interesses portugueses. Por isso terminou como terminou», lamenta o escritor em entrevista à Saber Viver.

O que é que o apaixonou na figura de Dona Joana de Portugal?

A nível pessoal, interessou-me, sobretudo, o facto de ser uma mulher que foi rainha de Castela, uma infanta de Portugal que teve um percurso singular. Nenhuma outra rainha teve um igual. Nem em Portugal nem em Castela nem na Europa. Seduziu-me a originalidade da sua personalidade, portanto. E, a nível político, interessou-me o facto de ser uma desconhecida, o que é um paradoxo, porque foi uma rainha importantíssima para a história, não só de Castela e de Portugal como também da própria Europa.

O facto de Dona Joana ter engravidado na sequência de um amor que teve na reta final da sua vida levou a uma quebra na estratégia portuguesa de unir o reino de Portugal ao reino de Castela. Esta estratégia, que tinha sido muito planeada e calculada e que está documentada, fracassou e Portugal teve que responder à aliança estabelecida entre Castela e Aragão com uma política completamente diferente, voltando os seus focos de interesse para o Atlântico e abandonando de vez a Europa.

Até esse momento, D. Afonso V, irmão de Dona Joana, estava a organizar-se para ser também rei de Castela, através de uma união ibérica [casando com a sobrinha Joana, filha de Dona Joana]. Como essa união não se fez entre Castela e Portugal mas, sim, entre Castela e Aragão, e como Aragão era tradicionalmente um reino aliado de Portugal, foi preciso encontrar uma outra alternativa de expansão e essa foi o Oceano Atlântico.

Eu interrogo-me sobre o que teria acontecido [no período dos descobrimentos portugueses] se, em vez da união de Castela e de Aragão, se tivesse produzido uma união entre Castela e Portugal. O que teria sido da expansão atlântica portuguesa nessas circunstâncias? Quanto muito, teria ocorrido na mesma, mas seguramente de outra maneira....

Como é que descobriu esta figura histórica desconhecida da maioria dos portugueses?

Há 12 anos, trabalhava como assessor editorial numa editora importante em Espanha. Lendo um livro de história, fui confrontado com a possibilidade de Dona Joana ter sido a primeira mulher a fazer uma inseminação artificial. Propus o tema a uma editora espanhola e a uma autora pertencente a uma família da nobreza, a família Mendonza, que escreveu um livro que se chamava «La beltraneja», que contava a história da filha de Dona Joana, que em Espanha é conhecida como a excelente senhora.

Esse livro teve um grande êxito em Espanha. Foi reeditado 12 vezes e foi, inclusivamente, traduzido para português como o título «A excelente senhora». Lê-lo despertou-me curiosidade por essa figura. É um livro escrito de uma forma romanceada e, a mim, como me interessava mais a parte histórica pura e dura, comecei a reunir materiais sobre este tema ao longo da última dúzia de anos e, quando achei que já tinha uma quantidade de informação suficiente, o que aconteceu há cerca de quatro anos, comecei a escrever esta obra.

O processo de pesquisa para esse livro demorou então cerca de uma dúzia de anos?

Sim, a pesquisa foi contínua ao longo dos últimos 12 anos. Andei sempre há procura de correlações entre factos e a personagem, investigando o percurso de Joana e a medicina judia da altura e analisando aspetos da corte portuguesa da época, em Lisboa. Fui reunindo tudo até ter tempo para trabalhar e analisar esse material para o começar a editar. Foi o que comecei a fazer há quatro anos, quando comecei a escrever o livro.


Veja na página seguinte: A polémica inseminação artificial a que a rainha terá sido sujeita

Como é que foi feito o processo de pesquisa que esteve na base desta obra?

Não foi um trabalho fácil! À luz do tema da inseminação artificial, comecei a estabelecer ligações e correlações com tudo o que estivesse ligado a esse processo.

E, em função das minhas descobertas, fui procurando em arquivos distintos.

O tema da inseminação, por exemplo, levou-me ao do matrimónio e esse ao da autorização vaticana, que consultei nos arquivos do Vaticano.

Ao investigar a temática do matrimónio, apercebi-me da existência de várias donzelas nobres portuguesas que acompanharam Dona Joana para Castela aquando do seu casamento e isso conduziu-me à temática da nobreza portuguesa, pesquisando os apelidos de família dessas mulheres, quem eram os seus pais, que funções desempenharam na corte e por aí fora....

Falou há pouco na questão da inseminação artificial. O rei D. Henrique, com quem Dona Joana casou em Castela, era impotente mas não era estéril. O seu livro sustenta mesmo que a princesa portuguesa terá sido primeira mulher no mundo a recorrer a esse método para engravidar. Tendo em conta que ela ficaria mais tarde conhecida como a rainha adultera, como refere o título que deu ao seu livro, pode-se afirmar que a criança que nasceu na sequência dessa gravidez é mesmo de D. Henrique ou o pai poderá ser outro homem qualquer?

A designação de rainha adultera só surgiu depois da batalha de Toro [quando D. Afonso V, irmão de Dona Joana, enfrenta as tropas castelhanas para defender os direitos da sobrinha Joana], quando a rainha já tinha morrido e o seu irmão [sem forças e nem apoios suficientes para garantir os direitos da princesa Joana à coroa de Castela] já tinha perdido a hipótese de ser rei do reino vizinho. Uma escritura da época, que difamava a rainha, referia-se apenas aos últimos anos do seu reinado.

Nos seus primeiros sete anos de reinado, a documentação castelhana, escrita pelas mesmas pessoas que depois a difamaram, diz precisamente o contrário. Nessa altura, toda a gente a considerava a rainha mais inteligente, a rainha mais astuta, a rainha mais bela, a rainha que sabia manobrar a política de Castela... Tudo isso mudou de repente quando a rainha deixou muito claras as suas intenções de conduzir a uma união ibérica.

As acusações de adultério são posteriores ao nascimento da sua filha com D. Henrique. Dona Joana foi criticada em Castela por defender os interesses da filha. Ela fez todos os possíveis para que a sua filha Joana fosse rainha de Castela mas os castelhanos decidiram que Isabel, a católica, é que a tinha de subir ao trono e foi isso que acabou por acontecer.

Acredita, então, que D. Henrique era mesmo o pai da criança...

Sim, acredito. Até porque o sustentam os documentos dos actos de inseminação que a rainha fez, que foram escritos por um papa e por um médico que conheceu os judeus que foram médicos do casal real. E há ainda um outro indício. As crónicas da época descrevem Dona Joana como uma bela senhora morena. Era uma mulher com a típica beleza típica portuguesa, com traços muito latinos.

D. Henrique, por seu lado, era um homem com traços germânicos, ruivo e avermelhado, com uma expressão muito melancólica no olhar, dizem os seus cronistas. E o único retrato que existe da princesa Joana com a filha mostra uma menina ruiva, de cara avermelhada, com uma expressão também ela muito melancólica. Ainda que não seja um dado 100% fiável, podemos presumir que a criança era mesmo filha de D. Henrique e que era parecida com o pai.

A questão da inseminação artificial foi escondida na altura ou acabou por ser comentada e assumida perante a nobreza da época?

A inseminação era algo que, na altura, mesmo os que a fizeram consideravam arriscado. Até pela imagem que poderia dar do rei. Um ato tão fora do comum podia ir contra a ideia de autoridade que o rei tinha de exercer. Um monarca tinha de assegurar as funções masculinas de uma relação e ele não as podia desempenhar. Tinha de servir-se de um subterfúgio como a introdução de uma cânula no órgão sexual feminino da rainha e isso poderia tirar-lhe prestígio.

Um dos factos dados como adquiridos refere que os especialistas que se dedicavam a esta prática eram médicos judeus e este método de conceção não era bem visto, não tanto por ser estranho e desconhecido, mas porque os judeus estavam a viver uma época de grande perseguição em Castela e tudo o que estava relacionado com a atividade dos judeus era quase visto como algo herege.

Se um dos reis cristãos recorria a médicos judeus para fazer algo que era muito difícil de aceitar e algo que até muitos duvidavam, isso representava um risco maior e acrescido. O rei, com a cumplicidade possivelmente de alguns clérigos e do papa, tentou recorrer a esta técnica com o máximo de secretismo. Só que os segredos nunca se conseguem manter durante muito tempo, ainda para mais numa corte.


Veja na página seguinte: A paixão arrebatadora da rainha... por um primo!

Joana de Portugal engravidou mais tarde, naturalmente, de um primo. Tendo em conta o processo de investigação que levou a cabo, esta rainha foi mulher de muitos homens?

Não, creio que Dona Joana foi mulher de um só homem, esse primo, porque o primeiro marido, em termos práticos, acabou por não o ser.

D. Henrique era realmente impotente e Dona Joana nunca pode ter relações físicas com ele. Isso está documentado. O próprio rei declarou-se impotente num documento.


Durante muitos anos, Dona Joana sofreu com as consequências das más politicas do seu marido, que era um homem débil, um homem cobarde, um homem que a acabou por a usar como arma de arremesso em várias situações e que a entregou aos seus inimigos. A rainha acabou por cair num estado depressivo numa segunda prisão em que o marido a colocou com um bispo de origem portuguesa, Alonso de Fonseca.


Durante essa fase de cativeiro, apareceu um homem jovem que reunia todas as características que a rainha apreciava num homem. Um jovem corajoso e aguerrido, que se apaixonou por ela e ela apaixonou-se por ele. E a prova de que a rainha não era uma mulher libertina é que, a partir do momento ela em que ela inicia uma relação amorosa com esse homem, fica com ele, com quem se calcula que teve pelo menos 10 filhos, até ao momento da sua morte.


Foi uma relação de amor. No seu testamento, num documento de cinco páginas, ela pede pelo menos cinco vezes à filha que se ocupe de D. Pedro de Castela, que trate de o ajudar na sua vida, que o proteja dos seus inimigos e, inclusivamente, que o case. Isto prova que esta mulher estava realmente apaixonada. Eu acredito piamente que tenha sido mulher de um só homem. O seu único e verdadeiro amor foi D. Pedro de Castela. O rei D. Henrique acabou por ser uma circunstância política.

A designação de rainha adultera acaba, então, por ser muito injusta...

Sim, totalmente injusta. Dona Joana e a sua filha foram, sobretudo, vítimas de uma grande injustiça histórica. Eu escolhi a expressão da rainha adultera para o título do livro precisamente para chamar a atenção para esse facto. É um dado adquirido que ela teve uma relação com um homem que não era o seu marido mas, no seu íntimo, a seu ver, ela nunca cometeu adultério. Pagou duramente a injustiça de outros, que viram na sua forma de ser um ataque aos seus próprios interesses.

Além do percurso histórico, o que mais descobriu de fascinante e de cativante na vida e na personalidade desta mulher?

Dona Joana foi, possivelmente, a última rainha educada de acordo com os princípios da cultura do amor cortês, que era a que predominava no final da Idade Média. Estudou línguas, história e teologia. Apreciava a dança, a música, a moda... Era uma mulher refinada, de trato fino e delicado, que era a característica da cultura aristocrática do final desse período.

Por ser assim, numa fase inicial, encantou os castelhanos, incluindo os que ao princípio estavam contra ela e até os que mais tarde se lhe vieram a opor. Quando ela começou a agir contra os interesses desses nobres, o que antes havia sido mérito converteu-se em desmérito. Provavelmente, Dona Joana foi o último vestígio de uma cultura aristocrática muito refinada, porque se tivesse vivido na época seguinte com Isabel, a católica, teria sido outro tipo de rainha.

Teria sido uma rainha mais aguerrida, mais dura, mais determinante e até mais drástica, ao contrário do que acontecia até aí. Para mim, como personagem português, é uma figura de que os portugueses se deveriam orgulhar, porque só cometeu um erro e esse erro foi apaixonar-se por um homem e ser coerente com esse amor. Mas, enquanto ser humano, era uma pessoa de grande valor.

Do ponto de vista político, interessa-me a perspetiva da união ibérica entre Castela e Portugal, que tinha sido planeada desde o primeiro momento. A prova é que a filha de Dona Joana, a excelente senhora, apesar de ser candidata a rainha de Castela, teve alguns portugueses como educadores. Um deles foi Alonso de Fonseca e outro a sua mulher, uma portuguesa chamada Beatriz. A futura rainha de Castela foi educada por dois portugueses, de acordo com os princípios da cultura portuguesa.

Isto porque Dona Joana acreditava que, no futuro, a filha Joana não só seria rainha de Castela como casaria com o filho do seu irmão Afonso V de Portugal, o príncipe perfeito, dando origem a um único reino, resultado da união de Portugal e Castela. Essa intenção fracassou porque os aragoneses não queriam que essa união se produzisse e essa união ibérica acabaria por ocorrer através da ligação entre Castela e Aragão. E Portugal teve ir em busca de novos horizontes, olhando para o Atlântico e não para o Mediterrâneo, como se preparava para fazer.


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Apesar da ostracização do rei e a humilhação pública na corte, D. Joana foi uma mulher feliz? O que é que lhe parece, tendo em conta a sua investigação?

Dona Joana foi uma mulher de uma grande vitalidade, que aproveitou cada momento de felicidade que a vida lhe proporcionou e, como tinha essa cultura do amor cortês, nunca se queixou de nada.

Nunca ninguém a ouviu lamentar-se. Se tivessem havido queixas, os seus inimigos tê-las iam documentado, divulgado e conservado. Nada indica que tenha sido uma rainha ressentida ou rancorosa.

Teve foi um dos piores problemas que uma mulher pode ter no seu casamento, dado que foi repudiada pelo seu marido, abandonada pelos seus parentes portugueses e afastada da sua filha. Morreu longe de tudo o que tinha tido. Acabou os seus dias de um modo muito simples e muito humilde.

No seu testamento, o seu último documento, escrito poucos meses antes da sua morte, apela à generosidade, ao perdão e ao respeito. Em momento algum há uma palavra de ressentimento contra quem quer que seja. Era uma pessoa de uma grande qualidade espiritual. Nunca ficou ressentida com tudo o que lhe fizeram.

Depois desta, já tem outra rainha na sua vida? Já tem alguma ideia para um próximo livro?

Acho que vou continuar nestas temáticas. Eu escrevo com rapidez mas preciso de tempo para investigar. Como este tema era difícil, e porque queria que resultasse da melhor maneira, demorei quatro anos a escrevê-lo. Como me dediquei a esta obra tão intensamente, ainda não tenho nada definido. Para já, quero dedicar-me à sua promoção. Depois, vou descansar um pouco psicologicamente, porque esgotei praticamente todas as minhas reservas de energias na escrita deste livro.

Mas será muito provavelmente um livro histórico...

Sim, porque é o que me interessa. Ainda que possam não ser dos livros que vendem mais, permitem às pessoas que os leem aprender com os erros dos outros, conhecer personagens e criar empatias. Este livro, apesar de ser sobre uma personagem de há 500 anos e de aparentemente não ter qualquer ligação com a realidade atual, retrata bem o que estamos a viver no mundo de hoje com a crise. As pessoas que mandam são débeis e não têm influência.

São as pessoas poderosas que existem nos ambientes económicos que fazem os seus jogos, prejudicando os outros, que são mais fracos e que acabam por ser as grandes vítimas da corrupção nas altas esferas, da manipulação de informação com fins políticos e económicos e da utilização da religião para fins políticos. Para mim, apesar das diferenças entre as duas épocas, este livro é muito atual na sua temática. Fala de coisas que aconteciam há 500 anos e que continuam a suceder atualmente com outras roupagens e com outros nomes.

Texto: Luis Batista Gonçalves
Foto: Agência Lusa