Há uma irreverência doce, densidade e leveza incomuns na atriz que deu a vida a Florbela. Os tons do universo interior de Dalila Carmo, no momento em que está de regresso a Portugal para participar numa nova peça de teatro. O Globo de Ouro de Melhor Atriz, pela interpretação de Florbela Espanca, em 2102, aplaudiu o que seu trabalho nos vinha contando ao longo de duas décadas. Dalila Carmo passa o seu amor ao palco de forma orgânica e generosa. E nele se encontra.
No seu 38º aniversário, contou ao Diário de Notícias que se sentia «esquisita», face à «inutilidade dos dias». Foi há um ano. Hoje, como se sente?
Muito bem, estou numa fase de transições. Sou muito mais feliz agora do que quando tinha 20 anos, embora a noção do tempo se vá alterando. Os dias não me chegam para tudo o que ainda quero fazer, não consigo estar virada numa só direção. Perdemos tempo, não definimos prioridades. Há estradas que temos de fazer até ao fim mas, neste momento, há uma série de coisas que reequacionei e pus noutro lugar da minha lista de prioridades. Chegamos a um ponto em que não há pressa em querer provar que somos bons.
Quem era aos 20 anos?
Uma inconformada. Era uma young angry woman [mulher jovem revoltada] e agora sou muito mais tolerante e feliz comigo própria. Era desenquadrada e agora aceito-o. Estou mais confortável no desconforto, estou mais dentro da minha pele, mais segura do que sou capaz de fazer e aquilo que não sei aceito sem problema.
A aceitação é um processo...
Sim. Continuo a ter inseguranças e os meus momentos de catarse, até porque isso faz parte da natureza de um ator, só que antigamente isso significava mergulhar nas profundezas, quando ainda não tinha tanta capacidade de diagnóstico. Hoje as coisas já estão nas prateleiras certas.
Regressa a Portugal em 2013, depois de viver em Madrid, para interpretar a peça «O Tempo e a Ira», que estreou a 10 de outubro no Teatro Municipal Mirita Casimiro, mas também está escalada para a série televisiva «0s Filhos do Rock», na RTP. Como são os seus dias?
A minha vida acontece por fases e não tenho uma rotina. Regressei, reencontrei os amigos e andei a descobrir o que há de novo em Lisboa, mas vou entrar num período de clausura. Com gravações em simultâneo com ensaios, vão ser meses puxados. Não costumo ter dois projetos ao mesmo tempo, mas era irrecusável.
Queria fazer esta peça desde há 15 anos. Em época de ensaios estou mais disponível e durmo muito sem sentimentos de culpa. Preciso de descansar, é uma fase em que ainda posso prescindir do stresse, o meu maior inimigo.
Fora do trabalho, o que acontece de bom na sua vida e o que faz para cuidar de si?
Sou muito cumpridora do que tenho de fazer mas tento não auto impingir-me mil tarefas por dia. Tenho muito cuidado com o descanso e a minha alimentação. Gosto da essência do alimento puro. Dispenso molhos.
Adoro sopas, legumes e fruta. Sou viciada em frutos vermelhos, cerejas, mirtilos e amoras. Já deixei de fumar várias vezes e estou decidida a fazê-lo novamente. Não consumo cafeína, gosto de andar a pé e acho que ter uma estrutura afetiva forte e estar com os amigos é a melhor coisa para a saúde.
O corpo, a voz, a imagem são instrumentos de trabalho. pensa muito nisso quando faz opções?
Não tenho uma obsessão com o corpo mas sinto que, a partir de certa altura, começa a mudar e a responder de maneira diferente ao estilo de vida. Penso sempre numa perspetiva de longevidade. Dentro de 30 anos quero estar num palco e conseguir dominar o meu corpo, ser articulada a todos os níveis.
Gosta de viajar sozinha para que a «viagem aconteça também dentro de si». Que importância têm essas viagens para o seu equilíbrio emocional?
São resets [novos recomeços]. Muitas vezes, quando se viaja acompanhado, a pessoa fecha-se e acaba por não se relacionar com o exterior da mesma maneira. Tenho uma hiperatividade a viajar que não acontece quando estou num local que conheço bem.
Sou capaz de acordar às seis da manhã porque a luz é mais bonita para fotografar e de andar durante um dia inteiro porque me quero confrontar com uma realidade que me transporte para outro lugar. Mas sem impor o meu ritmo a ninguém.
Em que destinos sentiu que essa viagem interior foi mais completa?
Tantos... A Islândia (e não fiz essa viagem sozinha) mexeu profundamente comigo pela natureza esmagadora. Passou a ser o país do despojamento. Chegámos a fazer sete horas de estrada sem nos cruzarmos com ninguém e eu gosto dessa sensação de fim de mundo. Adoro o Médio Oriente. Fiz a Turquia toda sozinha.
Em termos do que foi construído pelo Homem, o que vi de mais bonito até hoje foi o Japão. As pessoas que fazem os lugares são também importantes e, por exemplo, a Malásia não me tocou porque não via sorrisos.
Para quem assiste, há um lado terapêutico na representação. E para quem está no palco?
Há quem tenha relutância em assumi-lo, mas acho que sim. Qualquer forma de manifestação artística é terapêutica, só pode ser. Se não tivesse o teatro seria, seguramente, uma pessoa muito infeliz. Tenho vontade e necessidade de comunicar, partilhar e identificar as minhas urgências. É uma pulsão do meu subconsciente. É uma coisa catártica, uma necessidade de traduzirmos criativamente uma certa confusão interior.
É possível ficar com traços comportamentais de uma personagem?
Durante o trabalho, sim. As pessoas dizem-me «é tão giro fazeres tantas pessoas diferentes de ti», mas eu acho que somos todas essas pessoas. Eu não sou só extrovertida, tenho um lado muito introvertido e tímido. Não somos monocromáticos, somos seres contraditórios.
Às vezes desenvolvemos mais esta ou aquela característica, mas acredito que o ser humano tem todas as pessoas dentro de si e depois, devido às circunstâncias, desenvolve a sua própria personalidade. Eu sou capaz de encontrar outras pessoas dentro de mim.
Há uma Dalila antes e depois de «Florbela»?
Sim. Não só durante o filme, mas também durante a pesquisa, identifiquei-me, em muitas coisas, com ela. Se conseguiu ser assim há 100 anos atrás porque é que nós, ainda hoje, estamos tão desconfortáveis nas nossas diferenças? Era uma valente e eu gostei muito de ter entrado no seu mundo.
Foi a personagem mais complexa que me deram e o facto de ter sido uma mulher real e o tentar chegar à verdade dela enriqueceu-me. Ajudou-me a perceber «Sou assim e depois?». Fez parte de uma caminhada pessoal, apareceu na hora certa. Como atriz, queria um papel mais absoluto no cinema e foi isso que o [realizador] Vicente [Alves do Ó] me deu. Foi um presente incrível.
Dalila Carmo em auto-análise
As escolhas fundamentais da atriz:
- Autores que mudaram a minha vida
«Na poesia, Sophia de Mello Breyner e Eugenio de Andrade. No teatro, Tchekov e Tennessee Williams. No romance, J.D. Salinger e Adolfo Bioy Casares. Depois ha Chatwin e as viagens...», refere.
- Músicas favoritas para relaxar
«Relaxo com rock mas sou muito ecletica na musica. Wim Mertens, Philip Glass, Ryuichi Sakamoto, Nick Drake, Brian Eno (na fase mais calma)», sublinha a atriz.
- Rituais para ter mais energia
«Dormir o maximo que conseguir, beber infusões e ver o mar ou uma montanha, sempre que puder», revela a intérprete de «Florbela».
- Sites que me inspiram
«Passo a vida a procura de sites sobre paises que nao conheco, mesmo que nao possa viajar. É a minha forma de comecar a sonhar com novos lugares», admite.
- Os meus rituais de beleza
«Hidrato o rosto e o corpo, faco esfoliacao sempre que me lembro mas nao mais que duas vezes por mes. Não dispenso eyeliner preto e o meu perfume é Love, de Chloe», confessa Dalila Carmo.
- O que mais gosto em mim
«Espontaneidade. Às vezes, é um defeito por ser inoportuna», salienta. «O meu olhar, o sorriso e as mãos», acrescenta ainda a galardoada atriz.
- O que ainda me falta melhorar
«Tenho que aprender a ficar calada, de vez em quando. E tenho que comecar a fazer desporto!», assume ainda.
Texto: Nazaré Tocha com Carlos Ramos (fotografia)
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