Três meses depois da minha última visita a esta cidade, regressei a Quioto, no Japão. Os encarnados, dourados e castanhos do outono foram substituídos pelos verdes, pelos rosas e pelos brancos da primavera. Quioto, nesta fase, não está ainda mais bonito, está apenas diferente. Além do colorido das árvores, dos arbustos e das flores, sente-se uma trepidação no ar e nas pessoas. É a sakura, a época das cerejeiras em flor.
Abril é, depois de maio, o mês mais esperado do calendário japonês. É nesta altura que as cerejeiras iniciam a florescência. Durante duas a três semanas, as árvores das ruas, parques e jardins cobrem-se de pequenas flores brancas ou rosa pálido. A única exceção a esta explosão de branco são os karesansui, os jardins secos, que permanecem imutáveis e misteriosos, na sua paisagem abstrata de areia, pedras e musgos.
Nas ruas, é indescritível o efeito que a sakura causa nos japoneses, uma verdadeira surpresa para os turistas estrangeiros que visitam o país nesta altura. Todos saem à rua depois do trabalho para celebrar aquilo que, para um europeu, são apenas umas bonitas árvores em flor. Durante a sakura, os japoneses são os verdadeiros turistas na sua própria terra. Todos andam pelas ruas de pescoço levantado a admirar as flores.
Multiplica-se o disparar das máquinas fotográficas, fotografam as cerejeiras e fotografam-se junto a elas. Os namoros e os casamentos sucedem-se. É extraordinário o efeito que umas simples árvores em flor podem ter numa população altamente virada para a tecnologia de ponta e que vive fascinada com os mais recentes gadgets electrónicos. E a febre da sakura atinge velhos como novos. Ninguém escapa!
Apenas séculos de culto da natureza e profunda crença no fenómeno da renovação universal explicam esta atitude, tão pouco vulgar no século XXI e, menos ainda, na camada pretensamente sofisticada do mundo ocidental. Em Quioto, uma cidade pequena para os parâmetros japoneses, apenas 1,5 milhões de habitantes contra os 37 milhões de Tóquio, a sakura é mais romântica e manifesta-se sobretudo nos jardins.
É, sobretudo, visível nos jardins imperiais, nos parques da cidade e nas ruas de Gion, onde as cerejeiras bordejam os seus vários canais de água. Com a água sempre presente, Quioto surge-nos durante a sakura como uma visão de bilhete postal, fazendo-nos esquecer que é uma cidade onde também há sofrimento e trabalho. Como em todas as cidades espalhadas por este mundo, também esta é sofrida, apesar de bela.
De quase todos os pontos de Quioto se avistam as montanhas que a rodeiam, a este, norte e oeste, Kitayama, Higashiyama e Arashiyama. No outono, outra das épocas interessantes para admirar as paisagens nipónicas, parecem uma moldura ora encarnada, ora dourada. Durante a primavera, são um enquadramento verde pontuado por espectaculares manchas que se avistam a quilómetros de distância.
A beleza da sakura em Tóquio
Depois de uns dias em Quioto, resolvi tomar o shinkansen, nome que dão ao comboio de alta velocidade, para ir espreitar a Sakura na metrópole mais populosa do mundo, Tóquio, outra das cidades que quem visita o Japão não deve perder. Cheguei numa tarde de sábado, o que me permitiu deixar a mala no hotel e passear um pouco a pé a o fim do dia. O meu hotel era ao pé do Shiba Park e decidi, de imediato, dirigir-me para lá.
Descobri então um espetáculo inédito. O parque tinha milhares de pessoas, sentadas, deitadas ou de pé, instaladas por cima de uns enormes plásticos azuis. Aí, num piquenique, cantavam, dançavam, brincavam, dormiam ou conversavam. De todas as idades, em grupos nunca inferiores a 20 ou 30 pessoas, passavam o seu dia de descanso a celebrar uma temperatura mais amena mas, sobretudo, a admirar a sakura.
Ao cair da noite, voltei ao parque para ver o inevitável estado de porcaria em que se devia encontrar depois de toda aquela festa. Os plásticos azuis tinham desaparecido, discretamente dobrados em contentores para o efeito, e, no chão, nem uma migalha sequer, quanto mais um papel ou uma garrafa esquecidos. Perguntei a um amigo japonês como conseguiam manter uns serviços camarários tão rápidos e eficientes.
Olhou para mim com espanto e disse-me que aquela limpeza não era trabalho da autarquia. Todos os que vêm para o piquenique trazem os seus próprios sacos do lixo e, quando se retiram, levam com eles o que fazem. Que belo exemplo aqui para as nossas gentes, pensei! A sakura de Tóquio é diferente da de Quioto. Está mais concentrada nos parques que nas ruas, e, por isso, são o destino mais procurado nesta altura.
Restos do esplendor da era Edo, os parques de Tóquio eram, há 200 anos, na sua maioria, os jardins privados dos Daymio, senhores e proprietários de terras imensas, mas que tinham também que viver em Tóquio seis meses por ano.
No Hama Rikyu, para mim o parque mais bonito da cidade, o contraste entre a delicadeza das cerejeiras em flor e a brutalidade urbana dos edifícios que as rodeiam, que pude admirar, ainda contribui mais para acentuar esta dualidade misteriosa que é para mim o Japão.
Conservadora e moderna, tradicional e simultâneamente arrojada, fria e emotiva, tecnológica e bucólica, a existência desta civilização em pleno século XXI é um permanente paradoxo. Nunca mais vou esquecer um fim de tarde em Quioto, instalada num ryokan, uma espécie de pousadas tradicionais em que são respeitadas a maior parte das regras de arquitetura, decoração e hospitalidade seguidas no período Edo.
Um período que marcou o período entre 1603 e 1868. Sentada sobre os meus calcanhares no tatami do quarto, olhei pela janela e vi dançar umas pequenas manchas brancas. As flores das cerejeiras já começam a cair, pensei. Fui ver melhor... Não era isso! Eram flocos de neve que caíam do céu. Uma das muitas memórias que ficam desta minha viagem a este país, um destino surpreendente que convida a uma visita.
Texto: Vera Nobre da Costa
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