Partindo de Braga, em direcção a Montalegre, capital do segundo maior concelho em área do país (800 km2), são 90 quilómetros de estrada com tanto de belo como tortuoso. A Serra da Cabreira impõe-se gradualmente. Os relevos montanhosos crescem a cada curva parecendo empurrar-nos para lá de todas as alturas possíveis. A partir daqui, despimos uma certa descrença e começamos a cuidar nas histórias de bruxas, de encontros com o diabo e outras sortes afins, associadas ao planalto de Barroso.
Povoados aninham-se nas sombras dos vales. Terrenos agrícolas fazem dos declives uma vantagem, construindo-se em socalcos, tirando proveito da força da gravidade que empurra as águas abundantes para a profundidade das ravinas. Das alturas lançamos olhares sobre as águas serenas das albufeiras dos dois grandes rios da região, o Cavado e o Rabagão. Outros tantos cursos de água, como o Beça, o Cabril e o Homem, correm estas terras.
Território de fronteira
Este é um lugar de fronteira, mais de 70 quilómetros de raia com a vizinha Galiza que, outrora, espevitaram muitas histórias de contrabando pelos caminhos da montanha. Esta é, também, uma terra de muitos “adeus”, de surtos migratórios especialmente nas décadas de 60 e 70, mas também nas posteriores, do século XX. Por aqui fala-se de refregas fronteiriças, do embate às Invasões Napoleónicas.
A paisagem vive em silêncio essas memórias devolvendo-nos somente sons intemporais: a água, o vento, o chilreio das aves, o tilintar longínquo do gado.
A terra é de pedra, suavizada pelos contornos despidos pelo inverno dos bosques de carvalho e castanheiro. Montanhas poderosas como a do Larouco, a terceira mais alta de Portugal continental, caem em vales profundos e surpreendentemente cálidos. Impera a pequena propriedade, moldando a paisagem.
Os pastos delimitam-se por muros em pedra solta, construindo uma malha que ora se encosta às aldeias, ora se afasta, descendo colinas, afoitando-se nos bordos dos precipícios. Esta é, também, uma terra de águas vividas, aproveitadas pelo homem que as desviam, moldando-lhes o trajecto aproveitando-as para os terrenos agrícolas.
A paisagem também se faz com os Lameiros, pastos naturais, outrora tomados pelo gado da raça Barrosã com os seus “cornos infinitos”, como escreveu Miguel Torga. Longe vão os tempos em que esta raça, verdadeiro património genético e cultural do Barroso, apurado durante séculos pelos criadores, imperava em número, entretanto ultrapassado pelo gado Maronês, mais rústico e resistente ao trabalho e pelo Mirandês, mais corpulento e possante.
Paredes do Rio
Estamos a mais de mil metros de altitude, em Paredes do Rio, no Parque Natural da Peneda Gerês, uma entre as 136 aldeias do concelho de Montalegre. Um pequeno largo serve de sala de visita à “Rota dos Artesãos”. A tecedeira, a dobadeira, o ferreiro, o escultor, o carpinteiro, o croceiro e soqueiro, o pedreiro, a molhelheira, o padeiro, dedicam-se a labores em que reconhecemos saberes antigos, hoje recuperados e que se tornam motivo de atracção.
Escutamos as palavras sábias de um natural da localidade. Homem com mais de 80 anos, muitos deles tomados pelo trabalho agrícola. Com ele ficamos a saber que as ripas de freixo, com as quais se elaboram os cestos, depois de desbastadas, levam umas horas de molho para ficarem maleáveis.
Ainda em Paredes do Rio um conjunto de moinhos hidráulicos recuperado está organizado como rota. É pretexto para conhecermos, associados ao cultivo do milho e do centeio, as tarefas de sementeira, de colheita, de armazenamento, de secagem e moagem do grão e operações associadas à preparação da farinha e cozedura do pão. Este, a par com a carne de porco, sempre foi a garantia de que a fome não entrava na casa do Barrosão.
Visitamos o forno comunitário, também ele recuperado, ponto de encontro, onde se cozia (e coze) o pão, mas também onde se aproveita o calor do fogo para assar o cabrito, para acalentar conversas entre homens, beber um vinho e espreguiçar umas horas de sesta.
Pitões das Júnias
De Paredes do Rio rumamos às alturas da Serra da Mourela, com a promessa da visita à aldeia comunitária de Pitões das Júnias, recordando formas solidárias de relacionamento, muitas perdidas, como o forno e o moinho do povo, assim como a partilha das propriedades, dos baldios, dos lameiros e do gado. Tradições em extinção embora, aqui, ainda subsista a “Vezeira”, isto é o pastoreio conjunto do rebanho da aldeia.
No caminho para Pitões das Júnias não passam despercebidos vestígios antigos, atestando a presença do homem por estas bandas há cerca de cinco mil anos. Na serra da Mourela estão identificadas mais de 30 mamoas, monumentos megalíticos. De período posterior são os diversos castros celtas identificados na região. O domínio romano vê-se, entre outros traços, nas estradas que atravessam o Barroso e fazem a ligação a Braga, Chaves e Astorga. A história desta região também se fez com os povos bárbaros. Alanos, Vândalos, Suevos, Visigodos, percorreram estas montanhas. Os árabes, por seu turno, tiveram um domínio curto por estas bandas, não mais de 40 anos.
Pitões das Júnias vive numa terra extrema, no planalto frio e despido. Tomada a uma certa distância a localidade parece procurar aconchego em si mesma, rodeada por hortas e lameiros. As casas estão tão próximas que, dizia Bento Cruz, médico e escritor, “as almas das pessoas parecem nascidas todas do mesmo ventre”. Não chegam a duas centenas os habitantes da aldeia.
Já dentro de Pitões das Júnias, calcorreamos ruas estreitas e tortuosas. Regatos contidos em canais de pedra serpenteiam ruas, perdem-se em becos, rumam aos campos. De quando em vez a malha de casario abre nesgas para espaços menos finitos. Vemos, então, para Norte, as cumeadas agrestes e graníticas da Serra do Gerês, muralha divisória com Espanha. Muito abaixo, o vale do Beredo, aninha um extenso carvalhal.
Embrenhamo-nos na paisagem, atrevemo-nos por caminhos em pedra próximo a Pitões das Júnias. Ouve-se o som esguichado de um milhafre em voo alto, tocamos na pedra, sentimos um sol tépido aconchegar-nos as costas, vemos as águas frenéticas de um ribeiro escondido na teia de salgueiros e freixos. Descemos o vale, espera-nos um encontro com quase nove séculos, com o mosteiro de Santa Maria das Júnias. As ruínas vão-nos revelando a fachada românica da igreja, o pórtico, as arcadas e claustros, a biblioteca, o dormitório, o refeitório.
Uma paragem para a Cozinha Barrosã
Antes dos pratos de resistência algumas entradas em jeito de degustação, pois a mesa é farta e substancial. Lascam-se umas fatias de presunto do Barroso, cortam-se umas rodelas de Chouriça e de Salpicão, provam-se, grelhadas, a Morcela, a Alheira e a Ceboleira.
Entretém-se a conversa com uma sopa do Barroso enquanto não chega o Cozido, opulento, verdadeiro prato de resistência. Pede a tradição que no Cozido à Barrosa se preparem as carnes de porco com 48 horas de antecedência. Vão ao lume, entre outras, a Orelheira, o Chispe, o naco de Presunto, o Salpicão, a Chouriça, a Sangueira, o Chouriço de Abóbora. Não se esquecem os produtos da horta, com as couves, os nabos e as batatas.
Ainda nas carnes a mesa da região oferece a Vitela Barrosã que se prova assada, cozida, frita e grelhada. O Cabrito assado ou estufado, assim como o de caldeirada, com batata de Montalegre, é ementa em muitos restaurantes.
Na caça, destaque para o Coelho Bravo, para Perdiz e Javali. Não se esqueça, ainda, o Folar de Centeio com a sua carne de porco, com a chouriça e cebola.
Das águas das albufeiras saem as afamadas trutas do Cávado e do Beça. De paragens mais distantes chega o Bacalhau que se come em iscas, casando com o arroz de feijão.
Fecha-se a refeição com paladares mais gulosos. Nos doces Montalegre oferece a Aletria, as Rabanadas com mel do Barroso, o Arroz Doce e o Leite-Creme.
Padornelos
Lançamo-nos à Serra do Larouco. O pico espreita a mais de 1500 metros de altura, emoldurado por um céu de um azul cândido que engana o frio que faz nestes extremos do território. O Inverno é bastante duro e, não raro, as neves descem sobre os picos. Rememoramos leituras, as privações do casebre de Leonardo e Ermelinda em Padornelos, personagens de “Terra Fria”, obra de 1933 de Ferreira de Castro.
A localidade mudou em sete décadas, embora não viva completamente o século XXI. A aldeia ajeita-se a meia encosta da serra. Também aqui se recupera património. Por estas bandas fala-se do Projecto Ecomuseu do Barroso, conta com quatro anos, uma espécie de museu do território, a céu aberto, valorizando as populações e o património natural e cultural. Visita-se o forno da aldeia e lamenta-se que a casa onde viveu Ferreira de Castro não esteja em melhor estado.
Ainda na aldeia uma paragem na Casa de Padornelos, integrada na Rota das Tabernas. Pretexto para uma incursão na genuína cozinha Barrosã. Estamos entre paredes de pedra escura, sob um tecto de madeira maciça, frente a uma lareira com um lume firme. A sala de refeições situa-se no andar de baixo nas antigas cortes de gado, sob a cozinha. Fumegam as carnes para o cozido à Barrosã. O cabrito assado no forno também espevita apetites.
Montalegre
Padornelos espreita ao longe sobre Montalegre. A sede do concelho dista pouco mais de cinco quilómetros e assinala a sua presença, sobre o vale do Cávado, com a poderosa torre do castelo. Montalegre foi povoado castrejo, depois romanizado. Em 1515 por foral de D. Manuel I a localidade é elevada a vila.
A vila cresceu, extravasando para lá do pequeno burgo granítico que se chegava ao castelo. Na parte antiga sobe-se a rua Direita, apontando à fortaleza. Descobrem-se os miradouros da Corujeira e de Santa Catarina, visitam-se as igrejas Nova e Velha.
Não passa despercebida a estátua à “Chega de Bois”. Dois machos possantes, símbolo do comunitarismo ficam, desta forma, fixados em bronze. Recordação de outrora, quando cada aldeia elegia um macho fertilizador que, de tempos a tempos, era chamado a medir forças com os machos de outras aldeias. Defendiam o nome e a honra da localidade, lutando em campo aberto. Os animais batiam-se pelo domínio da manada e cobrição das fêmeas. Neste sentido o “Boi do Povo” tornou-se praticamente extinto hoje em dia. É espectáculo para animar os Agostos povoados de turistas e de emigrantes que retornam às terras.
Ainda em Montalegre um outro testemunho, embora alargando horizontes. Uma estátua recorda João Rodrigues Cabrilho, natural de Lapela e descobridor, corria o século XVI, da costa da Califórnia.
Deixamos Montalegre, apontamos de novo a Braga. As terras do Barroso desfilam uma das maiores transformações que a paisagem local sofreu. Começou em 1950 o esforço do homem para domar as águas com a construção das barragens. O que a região perdeu em terras agrícolas, ganhou em novos contornos. Grandes espelhos de água submergiram vales e tornaram penhascos em margens serenas onde abeiram aldeias como Vilarinho de Negrões. Alguns destes espelhos são imensos, como o da albufeira do Alto Rabagão. Juntam-se, entre outras, as albufeiras do Alto Cávado, de Paradela, de Venda-Nova, de Salamonde, ricas em espécies piscícolas como o escalo e a boga e a truta “de pinta vermelha”.
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