Depois de descobrir que uma pessoa passa, em média, 33 anos da sua vida a dormir, Matthew Blake quis escrever uma história. O anteriormente investigador e redator de discursos no Palácio de Westminster, iniciou uma pesquisa exaustiva sobre crimes relacionados com o sono e a misteriosa doença conhecida como Síndrome de Resignação, uma patologia psicológica reportada pela primeira vez na Suécia, nos anos 1990. A investigação de Blake levou-o a uma pergunta: quem comete um homicídio durante um episódio de sonambulismo é culpado ou inocente? Da pergunta e de toda a reflexão que se lhe seguiu nasceu o romance Anna O (edição Singular).

Sobre o livro, lemos na apresentação ao mesmo: "Há quatro anos que Anna O não abre os olhos. Não desde a noite em que a encontraram mergulhada num sono profundo junto aos corpos esfaqueados dos seus dois melhores amigos, tornando-se suspeita de um arrepiante duplo homicídio".

"Para o Dr. Benedict Prince, um psicólogo forense e especialista na área de homicídios relacionados com o sono, conseguir acordar Anna O pode ser um ponto de viragem na sua carreira. Como especialista em transtornos do sono, sabe tudo sobre os recessos mais escuros da mente e os segredos que estão enterrados no subconsciente".

"Ao iniciar o tratamento de Anna O – estudando os sonhos, vasculhando-lhe as memórias, visitando o local onde os horrores aconteceram –, vai puxando paulatinamente o fio de um mistério muito mais profundo e sombrio".

"O despertar de Anna O não é o fim da história, mas apenas o começo".

Do livro publicamos o excerto abaixo:

Capítulo Um

BEN

– O ser humano passa em média trinta e três anos da sua vida a dormir. – Ela inclina-se mais, o suficiente para eu lhe captar a fragrância do perfume caro. Normalmente, é neste momento que fico a saber.

– E é isso que tu fazes?

– Sim.

– Um médico do sono?

– Estudo pessoas que cometem crimes quando estão a dormir. O meu nome vem antecedido de «Doutor» nos cartões de visita. Doutor Benedict Prince, Clínica Abadia, Harley Street. Sou especialista do sono. Em lado algum afirmo ser um doutor de medicina.

Ela vê que estou a falar a sério.

– Como é que isso é sequer possível?

– Nunca te perguntaste o que poderias ter feito enquanto estavas a dormir?

A maior parte das pessoas fica pouco à vontade quando se chega a esta parte. A maioria dos crimes comporta um fator de distanciamento. Deliciamo-nos com histórias sobre pessoas iguaizinhas a nós; mas que também não são como nós. Mas o sono não permite essa qualificação.

O sono é o único aspeto universal, sendo a noite tão constante como o dia.

– Que tipo de crimes?

Ela não mudou de assunto. Continuo a ter a sua atenção.

– Os mais horríveis que se possam imaginar.

– De certeza que as pessoas não acordariam?

– Não se forem sonâmbulas. Já conheci doentes que trancam as portas de casas e conduzem os carros enquanto ainda estão a dormir.

Algumas pessoas até chegam a matar outras.

– De certeza que a pessoa não se lembraria?

– Pelas rugas à volta dos olhos, diria que dormiste cinco horas e meia ontem à noite.

Ela franze o sobrolho.

– É assim tão óbvio?

– Tens alguma memória do que aconteceu durante essas cinco horas e meia?

Ela não responde de imediato, de queixo apoiado na palma da mão direita.

– Lembro-me de que sonhei com qualquer coisa.

– Tipo o quê?

– Não me recordo.

– O meu ponto de vista está provado, então.

Os olhos dela mudam de repente. Agora olha-me de maneira diferente. A voz é mais sonora, a linguagem corporal mais animada.

– Espera, houve aquele caso. Como é que se chamava…

É chegado o momento. Poucos encontros chegam a este ponto. Aborreço-as com a descrição do meu trabalho. Assusto-as com histórias de crimes cometidos durante o sono. Se isso não funcionar, então esta última coisa apanha-me sempre. Ninguém quer permanecer quando se apercebe de quem sou. Ninguém.

– Anna O – completo. Dou um último gole no meu vinho, um Merlot caro, o que é mesmo uma pena, e depois pego no meu casaco.

– És aquele sujeito. Da fotografia. O psicólogo.

Sorrio vagamente. Verifico as horas no relógio.

– Sim – digo. – Era.

Refere-se à fotografia que apareceu na primeira página de todos os principais jornais diários depois de aquilo ter acontecido – depois daquele final brutal e sanguinário. O momento fatídico depois do qual nada poderia continuar a ser como dantes. Antes do exílio e da queda. Sou aquela figura de óculos e cabelo desgrenhado e com uma certa propensão para usar roupas que me dão um ar intelectual.

Mas desde então reinventei-me. A barba dá-me um aspeto mais envelhecido, o cabelo está mais grisalho nas pontas. Os meus óculos assemelham-se a um daqueles artigos rejeitados pelo departamento de adereços da saga Harry Potter. Mas não posso mudar os meus olhos ou o meu rosto.

Sou uma pessoa diferente. Sou a mesma pessoa. Fico à espera da pergunta, porque é a pergunta que me fazem sempre. É o único mistério que vai persistindo, apesar de tudo. Divide as famílias, os cônjuges e até os amigos.

– Ela era culpada? – pergunta o meu par, ou a mulher que até agora era o meu par. Para ela, não passo agora de um espírito maligno, de uma anedota que se conta por ocasião do Natal ou do Ano Novo. – Quando ela esfaqueou aquelas duas pessoas. Ela safou-se realmente desses homicídios?

anna o
anna o créditos: Singular

PARTE UM

Um ano antes

Capítulo Dois

BEN

Londres

O telemóvel toca.

É disso que me lembro sempre.

A primeira coisa, o início.

É tarde, a escuridão já é pesada, entranhada. Estou meio a dormir, refastelado num cadeirão com um tabuleiro de caril morno e um copo meio vazio de vinho baratucho. Continua a dar um filme a preto e branco na televisão que brilha num canto da sala. Hoje à noite é O Desconhecido do Norte Expresso, o meu preferido. Toda a gente prefere o Psico ou A Mulher Que Viveu Duas Vezes como a obra máxima de Hitchcock. Mas estão errados. O Desconhecido do Norte Expresso tem aquela cena da partida de ténis.

O som do telemóvel a vibrar arranca-me dos meus devaneios. As pálpebras caem-me. Limpo a gordura das mãos e verifico quem está a ligar: «bloom, prof (Clínica Abadia)». Faço deslizar o botão de atender e preparo-me, engasgando-me com um bocejo inesperado.

– Estou?

– Ben, desculpa ligar-te tão tarde. Mas desta vez a coisa não podia esperar.

Parece estar séria. E, na escuridão indistinta da noite, isso assusta-me. A professora Virginia Bloom é normalmente a primeira a dizer uma piada ou um aparte. Pode ser encontrada amiúde a marchar pela Oxford Street abaixo, de cafetã e saltos altos, ou sentada à sua mesinha de canto no Langham, com uma garrafa de cristal com uísque e uma bolsinha de estimulantes.

Ouço o ruído distante de pés e vozes do outro lado da linha. Parece que a Bloom ainda está na clínica. Verifico as horas no relógio.

É quase meia-noite.

– Passa-se alguma coisa?

– Pode-se dizer que sim. – A Bloom aclara a voz, fazendo um som roufenho e rabugento. – É uma coisa para ti, receio bem. Um novo pedido que acabou de chegar. Um assunto sensível.

Sou psicólogo forense. Já prestei consultoria à maior parte das agências criminais. A Agência Nacional do Crime, o FBI e a Interpol têm o meu número. Mas isto parece-me ainda mais sigiloso do que o habitual.

– Esse pedido tem um nome?

Mais ruído de fundo do outro lado da linha. A Bloom parece distraída.

– Vem ter aqui à clínica, pode ser? Disseram-me para não discutir nada sobre isto numa linha aberta.

Estou oficialmente de licença por uma semana. O prazo para entregar o meu último artigo para o jornal está prestes a terminar. Tenho três fichas de doentes para preencher. Estava a planear trabalhar em casa amanhã e dar conta da montanha de papelada que tenho à espera. Mesmo assim, uns quantos casos relacionados com o sono são demasiado sensíveis para serem discutidos numa linha aberta. Estou a ser chantageado pelo mistério, tal como a Bloom pretende.

– Tens de me dar alguma coisa.

Ouço o som de alguém a inalar ar profundamente do outro lado da linha. A Bloom permanece calada e depois suspira alto.

– És capaz de não me agradecer por isto.

Lá fora está um clima ártico, um céu sujo, cheio daquela chuva fina de setembro. Já temo de antemão a viagem de Pimlico até à Harley Street. Podia ficar aqui, no quentinho da sala com o meu filme de Hitchcock e outro copo de vinho. Mas não é assim que estou programado para funcionar.

É por isso que atendo. É por isso que atendo sempre os telefonemas.

– É o caso da Anna O – diz a Bloom, por fim. – Há algo que eles querem que nós vejamos.