Sabe-se da grande dificuldade que existe no sentido de coligir meios de prova que permitam concluir pela existência de indícios da prática do crime de violência doméstica. Dificuldade esta justificada por se tratar de um problema ocorrido, na esmagadora maioria das vezes, no seio doméstico onde coabitam a pessoa agressor, a vítima adulta e as vítimas crianças/jovens -quando os filhos menores coabitam com os seus progenitores-, sendo que as vítimas nem sempre sentem existirem condições para colaborar com o processo-crime e, consequentemente, não esclarecem as circunstâncias e contornos em que o crime ocorre. Por outro lado, passando-se o crime de violência doméstica, grosso modo, no espaço doméstico, também é frequente não haver uma devida exploração do cenário do crime em termos de investigação criminal, além da precariedade do meio de prova testemunhal neste tipo de crime, seja porque não existe ou porque continua a subsistir a mentalidade que ninguém se deve meter em “assuntos entre marido e mulher”, e, principalmente, o sistema judicial responsabiliza as vítimas por não quererem falar sobre a violência sofrida e, consequentemente, deixa de haver um investimento ao nível da investigação criminal.
Reunidos todos estes condicionalismos, acabamos por assistir a um número elevadíssimo de arquivamentos de processo-crime de violência doméstica apesar do grande investimento existente ao nível de políticas públicas no combate a este flagelo e das alterações legislativas que têm sido significativas no combate ao crime, proteção e assistência das suas vítimas.
Coloca-se, pois, a questão de saber o que acontece às vítimas quando os processos-crime são arquivados.
É importantíssimo que se perceba que pelo facto de os processos findarem por falta de meios de prova, as vítimas não deixam de ser vítimas. Efetivamente, as vítimas continuam a necessitar de proteção, designadamente quando continuam a coabitar com a pessoa agressora e/ou quando já não há coabitação, mas continuam a ser alvo da conduta criminosa da pessoa agressora e até mesmo quando as vítimas se encontram institucionalizadas.
Há que perceber que se as vítimas continuam a ser alvo da pessoa agressora, quer vivam ou não com a mesma, e independentemente da sua escolha, o sistema tem obrigação legal de as proteger. Precisamente por isso é que o crime é público, que é um crime violento que por si só exige um cuidado acrescido do Estado Português.
Assim, mesmo que já tenha existido um processo-crime que foi arquivado, pode sempre haver nova/s denúncia/s na sequência de novos atos violentos, denúncia/s esta/s que darão lugar a novas avaliações de risco, com possíveis tomadas de medidas de proteção às vítimas e eventuais aplicações de medidas de coação para as pessoas agressoras. O mesmo é dizer que se pode sempre iniciar nova investigação criminal tendo por base a reiteração da conduta criminosa.
Nos casos em que as vítimas estão acolhidas em casas de abrigo para vítimas de violência doméstica e os processos-crime de violência doméstica são arquivados, certamente que as mesmas não serão colocadas na rua, com filhos dependentes, com toda uma vida para reorganizar porque o processo-crime findou. Não podemos descurar que o acolhimento institucional já por si é uma reposta que se destina a garantir primordialmente a segurança de vítimas, independentemente da sua condição socioeconómica, que se encontram numa situação de alto risco para a sua integridade física e moral e/ou para a sua vida e para a qual o sistema judiciário não lhes dá resposta em absoluto ou não lhes dá uma resposta adequada. Assim sendo, e sabendo-se da habitual existência de outra tipologia de processos judiciais, mormente de Jurisdição de Menores e que será muito mais complexa resolução sem o andamento simultâneo do processo-crime de violência doméstica, o apoio prestado às vítimas acolhidas não terá o seu fim com o encerramento dos processos-crime arquivados pelo Ministério Público.
Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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