“Na minha vida falto eu” (edição Lua de Papel) coloca as leitoras (e os leitores) perante várias perguntas: O que é ser mulher? Se olhar para dentro, o que vê? De que forma se revela durante toda a vida? Como se define?
Escreve Natalia de Barbaro: “Serás A Submissa, sempre sorridente, que diz ‘Sim’ a tudo, mesmo quando grita ‘Não’ por dentro? A Rainha das Neves, que se atira implacável ao trabalho (ou à casa, ou aos filhos), numa extenuante procura da perfeição? Ou serás A Mártir, nascida para sofrer enquanto se sacrifica pelos outros?” Para a psicóloga, também poeta e cronista, “podes ser qualquer uma delas, todas ou nenhuma”. Natalia de Barbaro vê estas personagens apenas como arquétipos, ou modelos, criados para si mesma (e para as suas pacientes), de modo a organizar o mundo e dar-lhe uma nova moldura.
A partir destas referências, a autora propõe alternativas: A Menina Selvagem pode erguer-se, gloriosa, das cinzas da Submissa; A Adulta pode finalmente libertar-se da frieza masoquista da Rainha das Neves; e A Afetuosa pode, sem negar o seu passado de Mártir, descobrir em si mesma, e nos seus sacrifícios, uma nobre vocação para o amor.
Publicamos abaixo um excerto do livro:
Um jogo viciado
As três personagens: a Submissa, a Rainha das Neves e a Mártir, são interdependentes e geram este jogo viciado. Há mulheres (não sei quantas são, mas receio que se realizasse um estudo sobre o assunto, os resultados não me proporcionariam grande alegria) que nunca abandonam o jogo. Nascem e morrem a interpretar estes papéis. É uma ideia que me enche com uma dor que consigo sentir no corpo todo.
Vista de fora, a vida delas parece feliz e satisfatória, com a exceção de não ser sua. Imagino as coisas assim: acordas de manhã sem alegria, saltas da cama com o primeiro toque do alarme, sem te dares sequer os “bons dias”, e começas o dia a toda a velocidade, como se tivesses acordado sentada ao volante e não pudesses permitir‑te um segundo de descontração.
Como um soldado no quartel, realizas movimentos mecânicos: lavas os dentes, aplicas o creme, acordas os miúdos, que não se querem levantar… São apenas sete da manhã e já estás cansada. Preparas o pequeno‑almoço para todos e, apressadamente, agarras numa sandes para depois comeres no carro. Acontece tudo de maneira automática, como se estivesses a correr com os olhos fechados: não sabes que aspeto tem o céu ou se a árvore por detrás da janela já perdeu as suas folhas. “Andem lá, vamos chegar atrasados”, solta a Rainha, que repreende as crianças e as apressa. A Submissa cumpre as ordens sem reclamar enquanto a Mártir faz uma careta ao ver os cereais deixados na tigela: “Não gostas daquilo que a mamã te preparou?” Quando consegues deixar os miúdos na escola, passas ainda mais vinte minutos ao volante. “Vais desperdiçar este tempo?”, é a pergunta retórica da Rainha, enquanto te lança um olhar reprovador. A Submissa apressa‑se a colocar a tocar um audiolivro em inglês: “Good girl”, repete, “I am a good girl.” Sais do carro. “O carro parece uma pocilga”, diz com desânimo a Rainha. “Como é que isto ficou assim?”, acrescenta a Mártir. Depois chega a hora do trabalho: os objetivos, as sinergias, as reuniões, os telefonemas…
Envolves‑te numa linguagem que não é tua, mas como já vestiste a camisola e subiste ao palco, vais interpretar o papel que te cabe. “A renda não se paga sozinha”, grita a Rainha sempre que, numa reunião inútil e desnecessária, se te começam a fechar os olhos com o cansaço. Tu, no entanto, lutas pela otimização dos processos, pela maximização dos lucros. “Não percebo porque é que isto ainda não está feito”, diz a tua Rainha para um elemento mais jovem da equipa. A tua chefe diz‑te o mesmo logo a seguir e a tua Submissa começa a pedir desculpas e a assegurar‑lhe que vai cumprir o prazo. “Sabes que se não cumprires…”, não é preciso a Rainha acabar a frase, porque a Submissa fá‑lo por ela. Bebes o quarto café, aqueces a comida no micro‑ondas e, se te doer alguma coisa, tomas uma dose dupla de comprimidos, porque não há tempo para a dor, e não tencionas dar‑lhe importância. Voltas para casa, o teu marido já foi buscar os miúdos e a Rainha obriga a Submissa a verificar, pelo sim, pelo não, os e‑mails no telemóvel: nunca se sabe quando é que a tua chefe vai precisar, mesmo, da tua resposta.
A Mártir começa a fazer muffins para uma venda na escola da tua filha e recebes uma notificação da professora: a tua filha teve suficiente a matemática. Entras no quarto dela sem bater à porta. “Não percebes que com estas notas não consegues entrar num bom colégio? E que sem entrares num bom colégio não entras numa boa universidade e vais acabar a trabalhar como caixa num supermercado? É isso que queres? Ser caixa? Olha a nossa casa, tão bonita, os bons empregos que eu e o pai temos, não queres ser como a mamã?” Tiras os muffins do forno. “Puseste muito pouco chocolate”, ergue a Rainha a sobrancelha, e a Submissa, ansiosa por reconhecimento, tira uma foto aos muffins, colocando por detrás a fruteira, e coloca‑a no Facebook, #cansadamasfeliz. Pões‑te a ver vestidos na internet e são quase onze da noite. Tiras com cuidado a maquilhagem. “Não deves querer parecer mais velha que as tuas amigas”, diz a Rainha, e a Mártir acrescenta: “Vais ter olheiras, mas já se sabe: quando temos filhos e tanta coisa em que pensar, é normal estar exausta…” Um comprimido para dormir e… cama! Outro dia produtivo sem ti e sem teres vivido. Não és mais do que uma lista de tarefas com itens para riscar. Amanhã vai voltar a acontecer o mesmo.
Quando a Submissa, a Rainha das Neves e a Mártir entram em sintonia, dominando o nosso panorama interior, tornamo‑nos numa esposa de Stepford. O nome vem de um romance, escrito em 1972 por Ira Levin, que esteve na base de dois filmes. Vi Mulheres Perfeitas, na sua versão de 2004. O conceito era interessante, o filme em si, bastante mau, e creio que posso fazer um spoiler com toda a tranquilidade do mundo: após um ataque de nervos, uma estrela televisiva (interpretada por Nicole Kidman) muda‑se com o marido e os filhos para a localidade de Stepford. Trata‑se de uma povoação com grandes mansões brancas, vegetação cuidada, cercas brancas e um céu sem nuvens. E está cheia de mulheres perfeitas – versões quase idênticas da Barbie – com saltos altos até no ginásio, vestidas com roupa dos anos sessenta e com um sorriso rasgado nos lábios, mesmo enquanto dormem, com vozes doces e polidas até resplandecerem. Acontece que foram todas submetidas pelos maridos a um processo de transformação – não me peças mais pormenores – e otimizadas, ou seja, transformadas na sua versão “ideal” (do ponto de vista dos maridos). Mas há uma que continua a usar uma t‑shirt velha e, perante a pergunta do marido sobre se pôs a roupa a lavar, responde que acabou de escrever um capítulo do livro. O marido acaba por ceder à pressão social e, com a ajuda da Associação de Homens de Stepford, ou como quer que se chamavam, submete‑a ao mesmo processo de “transformação”.
Quando Nicole Kidman vem visitá‑la, encontra a amiga com um sorriso tão rasgado que até assusta, e com uma casa – que antes estava cheia de livros e de roupas pelo chão – limpa e a brilhar. No centro da cozinha há um ramo de rosas frescas, numa bandeja brilhante estão muffins acabados de fazer, e a fruteira está cheia de laranjas e maçãs, enquanto na parede estão penduradas frigideiras de cobre polidas. “Bem‑vinda, Joanna!”, diz a amiga com voz de rapariga entusiasmada. “Que manhã tão bonita, não achas?” Kidman olha, horrorizada, para a amiga que já não está de t‑shirt, mas sim com um vestido azul e um avental branco. “O que é que te fizeram?”, pergunta, espantada. “Deram‑te algum medicamento? Fizeram‑te uma lavagem cerebral? Diz‑me alguma coisa!”, pede‑lhe.
“Claro, querida”, responde a outra, “mas dá‑me um segundo, primeiro tenho de arrumar.” Vi Mulheres Perfeitas até ao fim por uma razão muito simples: queria observar o meu próprio espanto, repulsa e tristeza ao ver essas donas de casa exageradamente “perfeitas”. Queria verificar até que ponto é horrível aquilo a que muitas vezes aspiramos. O filme – e com razão – foi descrito como um filme de terror. Uma típica esposa de Stepford é a combinação perfeita de Submissa, Mártir e Rainha das Neves: é um robô. A Rainha das Neves, cujos padrões a fazem achar que a sua cozinha impecável está uma pocilga, não tem muita coisa para fazer, está sentada na relva e boceja, porque a Submissa e a Mártir estão felicíssimas a cumprir as suas obrigações. A Mártir não sente raiva, uma vez que o facto de a sua existência servir para proporcionar prazer ao marido é, para ela, algo óbvio. A Submissa deixa‑se submeter com alegria. Uma vez tive a seguinte sessão de coaching: a minha cliente contou‑me que sentia imensa pressão das exigências sociais – da mãe, das amigas do trabalho e de outros sujeitos não identificados – e que a sua voz interior era muito estridente e desagradável, a repetir‑lhe constantemente este mantra, já muito batido, mas nem por isso menos doloroso: “Em que estás a pensar? Não podes fazer isso, o que é que as pessoas vão dizer?” Montanhas de pressão, oceanos de exigências. Existe uma voz na nossa cabeça – seja feminina, seja masculina ou neutra – que está constantemente a questionar e a repreender e mantém a raiva. “Para que é essa saia tão curta? Tem mesmo de ser tão comprida? Porque chegaste tão tarde? E o que é essa franja? E porque não fazes franja? Se continuas a fazer essa cara ninguém vai querer falar contigo. Vais fazer salmão para a ceia de Natal? E porque não gambas? As pessoas normais a esta hora já estão a dormir. Que raio de profissão escolheste! Vais de férias sozinha? Vais deixar o teu marido sozinho em casa?” As mensagens e o cenário vão variando, mas há uma coisa que todas estas vozes têm em comum: “Não és suficiente. Não encaixas no molde, na regra.
Estás a sair da linha. “E se conseguisse?”, perguntei à minha cliente. “Se um dia conseguisse cumprir todas as expetativas, ser absolutamente correta, cumprir todas as normas, como se sentiria?” Ela, que normalmente refletia sobre todas as respostas, respondeu de imediato, sem hesitar: “Teria vontade de me matar.”
Faz uma experiência. Sorri o máximo que puderes. Aguenta. Continua a sorrir. Estou a fazê‑lo contigo. Num primeiro momento não parece assim tão difícil: o teu corpo percebe que estás bem (algumas experiências demonstraram que manter um lápis entre os dentes, numa careta semelhante a um sorriso, pode realmente animar uma pessoa). Ao fim de alguns segundos, no entanto, os músculos querem voltar à sua expressão normal, descontraída. Mas tu continuas a sorrir.
Eu, depois de mais de um minuto, começo a sentir um mal‑estar crescente, sinto que me estou a submeter a uma intervenção opressiva que está a começar a ser incómoda, noto que o meu rosto diz “para”, que se torna difícil engolir a saliva e respirar, mas continuo a aguentar, até que me começam a jorrar lágrimas. Continuo a aguentar. “Sorri, tu não estás triste!” Quando, finalmente, paro, sinto um grande alívio, respiro fundo como se o corpo precisasse de se regenerar depois daquilo que aguentou.
O que é que nos vai acontecer se continuarmos a manter este sorriso dia após dia, durante várias semanas e anos? Escrevo estas palavras em plena pandemia, mas quando abro o Facebook não vejo ninguém a queixar‑se. Nos perfis dos meus amigos as magnólias e os lírios estão a florescer, as minhas amigas mostram umas posições de ioga impossíveis de fazer, os nossos filhos dizem coisas engraçadas e inteligentes, mas demasiado sérias para a idade deles, e em todas as fotos de perfil temos um sorriso que não fica nada atrás dos das esposas de Stepford. Porque é que fazemos isto?
A experiência com o sorriso que acabámos de fazer – e que eu te convido a tentar – inspirou‑se na curta‑metragem da coreógrafa polaca Ramona Nagabczyńska, encomendada pelo Teatro Studio de Varsóvia no âmbito do Projeto Quarentena, e cujo título significa “não te preocupes, tudo voltará a ser como antes”. Na curta vemos de perto o rosto de Ramona, com um sorriso rasgado. Ao fundo, ouvem‑se ruídos do quotidiano.
Ao fim de alguns segundos começam a aparecer legendas no ecrã. O rosto de Nagabczyńska continua igualmente sorridente enquanto começamos a ler: “Arrependo‑me de ter FOMO (Fear of Missing Out, ou “medo de ficar de fora”, uma necessidade constante de atualizar as redes sociais, que pode gerar ansiedade, stresse ou mesmo depressão) depois de dar à luz. Arrependo‑me de me sentir velha aos trinta e dois anos. Arrependo‑me de ter pensado aos trinta e dois anos ‘estou tão velha que ninguém me quererá’.”
O rosto dela mantém o sorriso, mas agora esse sorriso dói, dói‑me a mim quando o vejo e a ela também teve de doer. “Arrependo‑me de fazer comentários acerca dos corpos das outras mulheres.” O sorriso dela mantém‑se tão radiante como o das esposas de Stepford, mas os olhos dela tornam‑se vidrados, engole em seco, tremem‑lhe os cantos dos lábios. O sorriso parece perder força algumas vezes, mas volta ao sítio numa questão de milissegundos, como se estivesse a dizer – embora Ramona permaneça em silêncio – “Va lá, sorri!”, e os cantos dos lábios voltam a erguer‑se.
“Arrependo‑me de não ter passado mais tempo com a minha meia‑irmã. Arrependo‑me de me ter preocupado com o mundo quando aqueles que tinham poder real para mudar as coisas fechavam os olhos.” A ladainha é longa. “Arrependo‑me de não termos devolvido aquilo que tirámos. Arrependo‑me de ter chorado em vez de ter ficado furiosa. Arrependo‑me de não ter feito unhas de gel decoradas.” Ao fim de uns seis minutos ouve‑se um som que indica o final e Nagabczyńska livra‑se do sorriso como se estivesse a tirar um casaco. Mostra uma expressão normal e séria. O contraste é avassalador.
Vi esta curta‑metragem umas sete vezes e acabei sempre a chorar, como se estivesse a chorar por todas aquelas vezes em que eu própria sorri em vez de chorar ou gritar. Sei que não sou a única porque nos comentários podia ler‑se: “Para te passares.”
“Emocionei‑me. Gostava que todas as minha amigas o vissem.”
“Não fui capaz de ver até ao fim, por causa da pena que senti por mim mesma.”
“Comecei a afogar‑me, não conseguia engolir, sentia um nó muito físico na garganta.”
O que acontece à nossa tristeza? Que mensagem transmitimos ao afastá‑la de nós e manter o sorriso? O que acontece à nossa ira reprimida? O não expressado, o oculto, o que excluímos do cenário, não desaparece, esconde‑se antes em túneis subterrâneos, caves ou sótãos, mas nunca abandona o nosso corpo.
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