E se após a nossa morte estivéssemos condenados a ficar indefinidamente num limbo, até o nosso nome ser pronunciado pela última vez na Terra? Um pesadelo inimaginável, sobretudo para aqueles cuja história é recordada ad aeternum. Está dado o mote ao mais recente livro do neurocientista, professor e autor norte-americano David Eagleman. Na sua estreia na ficção, o cientista propõe-nos o livro A Soma de Tudo – 40 Ficções Sobre a Vida para Além da Morte (edição Lua de Papel). A obra, traduzido em 33 línguas e adaptada aos palcos de Londres e Sydney por Brian Eno e Max Richter, propõe-nos breves narrativas para ensaiar respostas mais ou menos lúdicas sobre o mais inexplicável mistério científico.

Lemos na apresentação ao livro as seguintes palavras: “imaginemos, por exemplo, que na verdade Deus é um micróbio, indiferente ao destino dos humanos; ou que, uma vez chegados ao outro lado, somos confrontados com todas as vidas que poderíamos ter experienciado se tivéssemos tomado decisões diferentes; ou ainda: depois de morrermos, reiniciamos a vida ao contrário, até chegarmos ao ventre da mãe”. Alguns exemplos entre as 40 histórias que abarcam um universo de possibilidades, cuja leitura tem um efeito estranhamente contraditório. “Ao desenhar diferentes versões do nosso futuro imaterial, o neurocientista não convoca tanto a imagem da pós-morte, mas sim do absurdo da nossa existência terrena. Finda a leitura, já não equacionamos de forma tão premente o nosso destino final, mas antes a mais perturbante das questões: Quem somos?”, retiramos da sinopse ao livro.

David Eagleman, nascido em 1971, é escritor, neurocientista e professor no departamento de Psiquiatria e Ciências Comportamentais da Universidade de Stanford. É cofundador de duas empresas, Braincheck (tecnologias para o tratamento do cérebro) e Neosensory (hardware para neurociências), e dirige o Centro Para a Ciência e Lei, uma organização sem fins lucrativos. Bolseiro da fundação Guggenheim e membro do conselho do World Economic Forum, publicou vários bestsellers do New York Times e as suas obras estão traduzidas em dezenas de línguas. É o coautor e apresentador de uma série da CBS intitulada The Brain with David Eagleman, e do documentário da Netflix O Cérebro Criativo.

Escreve o autor na narrativa primeira do seu livro, justamente intitulada “A Soma de Rudo”: “Depois de morrermos, revivemos todas as nossas experiências, só que os acontecimentos estão reorganizados numa nova ordem: todos os momentos com as mesmas características fazem parte do mesmo grupo. (...) Passamos dois meses a percorrer de carro a rua em frente à nossa casa, sete meses a fazer sexo. Dormimos durante trinta anos sem abrir os olhos. Passamos cinco meses seguidos a folhear revistas, enquanto estamos sentados na casa de banho”.

Do livro, publicamos o seguinte excerto.

Mary

Quando chegamos à vida depois da morte, descobrimos que Mary Wollstonecraft Shelley está sentada num trono. Ela é cuidada e protegida por um grupo de anjos.

Depois de algumas perguntas, descobrimos que o livro favorito de Deus é o Frankenstein de Shelley. À noite, Ele fica levantado até tarde com um exemplar gasto nas mãos poderosas, ora lendo ora olhando pensativamente para o céu noturno. À semelhança de Victor Frankenstein, Deus considera‑se um médico, um biólogo sem igual, e tem uma relação profunda e dolorosa com qualquer história sobre a criação da vida. Deus tem muito para dizer sobre a questão de dar vida a seres inanimados. Muito poucas foram as Suas criaturas que se dedicaram a pensar profundamente sobre os desafios da criação e quando Mary escreveu o seu livro, Ele sentiu ‑se um pouco aliviado da solidão que a Sua posição implica.

A primeira vez que leu Frankenstein, criticou‑o de imediato por simplificar demasiado todo o processo envolvido na criação. Mas quando chegou ao fim, sentiu‑se conquistado. Pela primeira vez, alguém O entedia. Foi por isso que a chamou e a colocou num trono. Para entender a efusão dos Seus sentimentos, é necessário entender a trajetória da carreira médica de Deus. Deus descobriu os princípios da auto‑organização fazendo experiências com leveduras e bactérias. Deliciou‑se com a beleza das Suas invenções. Depois de dominar os princípios gerais, as Suas invenções tornaram‑se bastante mais sofisticadas. Com um apurado instinto artístico, desenhou o espantoso ornitorrinco, o compacto escaravelho, o enorme e lanoso mamute e os reluzentes grupos de golfinhos. As Suas capacidades tornaram‑se muito apuradas e penetrantes e os Seus dedos precisos compuseram – com uma acutilância tremendamente ambiciosa – todos os animais que existiam na Sua vasta imaginação.

Mas depois, inconscientemente, atravessou o Seu Rubicão. Criou o Homem: o Seu bem mais precioso; o Seu tesouro, orgulho, paradigma e obsessão. Ao contrário dos restantes animais, que apreciavam cada dia com a mesma simplicidade do dia anterior, o Homem preocupava ‑se, desejava, errava, cobiçava e sofria – exatamente como acontecia com Deus.

“O livro favorito de Deus é o Frankenstein”. 40 ficções sobre a vida e a morte na escrita do neurocientista David Eagleman
“O livro favorito de Deus é o Frankenstein”. 40 ficções sobre a vida e a morte na escrita do neurocientista David Eagleman créditos: Lua de Papel

Ficou maravilhado quando o Homem se ergueu do chão e começou a fabricar ferramentas. A invenção dos instrumentos musicais chegou aos ouvidos de Deus como uma bela sinfonia. Observou com admiração à medida que os Homens se uniam e fundavam cidades, construíam muralhas. Sentiu a Sua alegria transformar‑se em agitação quando eles começaram a zangar‑se e a lutar. Não demoraram muito tempo até começarem a invadir os territórios uns dos outros. As guerras rebentaram enquanto Ele tentava incutir algum bom senso naqueles que talvez Lhe dessem ouvidos.

Descobriu rapidamente que tinha menos controlo do que imaginava. Eram simplesmente demasiados. Tentou fazer com que as coisas boas acontecessem às pessoas boas e as más às pessoas más, mas não tinha tecnologia para implementar o sistema. O banho de sangue aumentou e foi continuado pelos Assírios e Babilónios; os Greco‑Macedonianos atacaram os seus vizinhos; os Romanos começaram as suas investidas até aos cercos dos Bárbaros e Godos. Bizâncio ergueu‑se e caiu banhada em sangue; os Chineses lançaram os seus engodos e atacaram subitamente; os Europeus atiraram  ‑se uns contra os outros. As cores vivas do Seu solo começaram a escurecer com o sangue dos Homens, e não havia muito que Ele pudesse fazer para os impedir.

E durante esse tempo todo, as vozes dos Homens chegavam aos Seus ouvidos sob a forma de pedidos de ajuda, súplicas para enfrentar os outros. Ele tapou os ouvidos e rugiu para não ouvir os gritos vindos das povoações pilhadas, as orações dos soldados que se esvaíam em sangue, as súplicas de Auschwitz. É por tudo isto que Deus agora se fecha no Seu quarto e se esgueira à noite para o telhado, com o exemplar de Frankenstein na mão. Lê uma e outra vez como o Dr. Victor Frankenstein é atormentado pelo seu monstro impiedoso ao longo do Ártico. E Deus sente‑se reconfortado com a constatação de que toda a criação acaba necessariamente da mesma forma: os Criadores, impotentes, acabam a fugir das criaturas a que deram vida.