O ativismo feminista passou das ruas para o mundo virtual e tornou-se, à vez, mais fragmentado e abrangente. E sem destruir peças de roupa interior! A palavra ainda hoje provoca calafrios a homens e mulheres e gera a imagem pré-concebida de um ser que há muito se divorciou da depilação, com aversão a tudo o que seja feminino e apetência para queimar soutiens na praça pública. Nada mais falso.
As feministas de hoje têm, infelizmente, muitos e bons motivos pelos quais lutar, mas deixaram de atear fogueiras nas ruas. Passaram a lançar o fogo na internet. Em blogues, em plataformas e nas redes sociais, com debates acalorados em que cada qual luta pelas suas causas. «Decidi não mais pedir desculpa pela minha feminilidade», declarou a autora e ativista Chimamanda Ngozi Adichie.
«A palavra feminismo tem uma bagagem de ódio. Precisamos de a limpar», referiu mesmo na sua apresentação no evento TEDTalk em 2012. A nova visão do feminismo baseia-se mais em criar opções do que em derrubar inimigos. Infelizmente, o movimento nunca deixou de existir, porque nunca deixou de ser necessário.
Cem anos depois das primeiras sufragistas lutarem pelo voto feminino, 50 depois das feministas dos anos das décadas de 1960 e 1970 reclamarem a liberdade sexual, a luta pela igualdade dos direitos das mulheres continua a fazer sentido. Disparidade salarial, menor acesso à educação, tráfico, violência de género e mutilação são ataques que as mulheres sofrem hoje em todo o mundo.
Um (ainda) longo caminho a percorrer
Apesar dos avanços, o caminho a percorrer ainda é longo. Uma realidade que justifica plenamente o título do livro da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, «Todos Devemos Ser Feministas». Considerado o «livro mais importante do ano [2015]» pelo jornal The Telegraph, a obra é a adaptação de uma conferência TED dada pela autora em dezembro de 2012.
De forma clara, incisiva, mas sem nunca perder um certo toque de humor, a autora relata a sua experiência pessoal, na Nigéria e nos Estados Unidos da América, onde põe a nu diversas formas de discriminação que afetam o quotidiano das mulheres. Em ambos os países há um predomínio masculino nos lugares de liderança nas empresas e a disparidade salarial continua a ser uma realidade.
A pressão para que a mulher se comporte de uma forma predeterminada, que não mostre raiva, que seja branda nas suas decisões, que se vista de forma masculina se quiser ser levada a sério nos negócios, são alguns dos outros exemplos que aponta. De acordo com os dados do Eurostat, 80% das vítimas de tráfico humano à escala mundial são mulheres (a maioria destinada à exploração sexual, seguindo-se a exploração laboral).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que, por dia, 6.000 meninas podem ser vítimas de excisão total ou parcial dos órgãos genitais, o que soma três milhões de vítimas por ano, sendo esta uma prática que já deixou mutiladas 140 milhões de meninas e mulheres. O Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) afirma que, diariamente, são feitos 37.000 casamentos infantis, o que se traduz no casamento forçado de 13,5 milhões de crianças, na sua grande maioria raparigas, em apenas um ano.
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Mulheres que ganham menos do que os homens só porque são… mulheres!
No campo laboral e económico, a discriminação é transversal, afetando mulheres de todas as classes económicas e sociais e de diferentes graus de ensino. O relatório «Women in the Workplace 2015», divulgado em setembro desse ano, revela que serão necessários 25 anos para atingir a paridade de género nos cargos mais altos das empresas norte-americanas, sendo necessário que passe um século para que essa paridade chegue à restante estrutura hierárquica.
Por cá, segundo dados do Índice Global das Diferenças do Género do Fórum Económico Mundial, serão necessários 81 anos para que seja atingida a paridade na área do trabalho. De acordo com os números de 2014, em média, o rendimento anual de uma mulher portuguesa é de 21.605 dólares (cerca de 19.265 euros), sendo o do homem de 30.593 dólares (27.280 euros). Uma diferença agravada pela crise.
Segundo o Eurostat mostram a diferença salarial entre as mulheres e homens portugueses subiu 3,8% entre 2008 e 2013. Para Maria Alice Samara, investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa, a desigualdade revela-se ainda no sentimento de posse que transparece em alguns episódios de violência contra as mulheres, o célebre «Não és minha, não és de mais ninguém».
O sentimento paternalista que (ainda) não acompanhou as mudanças políticas
Mas não só. Esse sentimento paternalista revela-se também na mentalidade vigente que ainda não acompanhou as mudanças legais e políticas. «O século XX foi muito importante para as mulheres. Na primeira república foram conquistados alguns direitos, como o divórcio, mas foi sobretudo no pós 25 de abril que a situação mais evoluiu», sublinha a especialista.
«A igualdade está na Constituição [da República Portuguesa], mas não existe de facto, porque as mentalidades mudam mais devagar. Basta ver o parlamento recém-eleito [em que só um terço das deputadas são mulheres] ou os cargos decisórios», diz a investigadora que, no entanto, se mantém otimista quanto à evolução da situação.
Novo feminismo é a quarta onda?
Mais de um século depois da campanha pelo direito ao voto emerge um feminismo novo e multifacetado criado na blogosfera e nas redes sociais por novas militantes. Jovens mulheres, educadas na era digital, que, até entrarem no mercado de trabalho, achavam ter conquistado os mesmos direitos que os homens. Alguns especialistas já descrevem esse fenómeno como o surgimento da quarta onda feminista.
A discriminação é visível mesmo nas pequenas coisas. Chimamanda Ngozi Adichie, a autora de «Todos Devemos Ser Feministas», recorda como é ignorada pelos empregados de um restaurante de Lagos, na Nigéria, quando está na companhia de um homem, ou como, mesmo sendo ela a dar gorjeta ao arrumador de carros, é ao amigo com quem está que este agradece. Num casal, para a mentalidade nigeriana, é óbvio que é o homem quem ganha o dinheiro.
Por seu turno, a blogger e jornalista brasileira Juliana Faria reuniu opiniões de 7762 mulheres sobre assédio sexual. Os resultados são preocupantes. Cerca de 90% das inquiridas já trocou de roupa antes de sair de casa para evitar provocações, 81% já deixou de fazer alguma coisa por medo de ser abordada por homens e 83% assume que não gosta de ouvir piropos na rua.
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A luta real que ocorre no mundo virtual
São estes pormenores que, muitas das vezes, trazem novas ativistas à luta pelos direitos das mulheres. Hoje há toda uma geração de mulheres nascidas nos chamados países desenvolvidos que cresceu e foi educada a acreditar na igualdade. Até ser confrontada com os factos, com a entrada no mundo laboral, com a mudança de país ou, simplesmente, através de um maior acesso à informação e ser confrontada com as desigualdades que ainda existem.
Esta nova vaga de feministas tem nos blogues e nas redes sociais os seus principais meios de ação. Mas, ao contrário do que aconteceu no passado, este é um movimento mais fragmentado, com a existência de grupos distintos, cada um com a sua visão e estratégia para alcançar um mundo mais igualitário.
Há quem aponte esta como sendo a quarta vaga do feminismo, caracterizada não apenas pelo uso das tecnologias e pelo caráter multifacetado, mas também pela procura de soluções políticas para os problemas. Depois de uma primeira fase, no início do século XX, em que o objetivo era alcançar direitos políticos, como o direito ao voto, seguiram-se as lutas que marcaram as décadas de de 1960 e 1970, em que as mulheres se batiam pelo fim da discriminação e pelo fim de uma estrutura de poder a que apenas os homens tinham acesso.
Nos anos da década de 1990, a luta feminista virou-se para o combate da definição estereotipada da mulher e para os problemas que as duas fases anteriores tinham deixado omissos. A atual fase, por ser plural, dá voz a correntes que tinham ficado de lado nas lutas anteriores, caso do transfeminismo, que engloba mulheres transgénero e transexuais. Outra novidade é a entrada cada vez mais participativa dos homens numa luta que era, tendencialmente, vista apenas como de mulheres.
União na diversidade
Os sites, blogues e iniciativas que surgem são tão diversos como os problemas em si. Em Portugal, o site Maria Capaz assume-se como uma plataforma de ideias e discussão da condição feminina e um espaço de afirmação da mulher portuguesa. Reúne cronistas de áreas tão diversas como a política, a investigação o jornalismo ou a moda, e recebe desde entrevistas a ensaios fotográficos, passando por reportagens e crónicas.
Do outro lado do Atlântico a investigadora Cynthia Semiramis criou o blogue Blogueiras Feministas, que reúne textos de ativistas de várias nacionalidades. Também no Brasil, a jornalista Juliana Faria criou, em 2013, a campanha «Chega de fiu-fiu» para protestar contra os piropos ofensivos. Mais radical, Sara Winter, ex-líder do movimento Femen, criou o movimento Bastardxs e usa o poder do corpo como instrumento de protesto.
Já o modo como a imagem da mulher é usada no cinema, publicidade e media em geral, é umas das lutas de Lola Aronovich, autora do blogue Escreva Lola Escreva. Na Europa e nos Estados Unidos da América também se multiplicam os sites com temática exclusivamente feminina. Rendez Vous, Daily Life, Women’s Agenda ou The XX Factor são apenas alguns. Perante uma tal proliferação, há quem tema uma segregação dos problemas das mulheres.
Num artigo publicado no diário The Guardian no início de outubro de 2015, Lou Heinrich advertia que «o modelo dos sites femininos permite uma ghetização das autoras femininas e a segregação dos assuntos das mulheres, substituindo o caráter inclusivo do mainstream». «Enquanto as mulheres podem falar livremente no que designamos como nosso espaço secundário, permanecemos relativamente silenciadas nos media mainstream», critica.
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Figuras públicas como bandeira de uma luta
«Boyhood» foi um dos filmes-sensação na penúltima edição dos Oscars da Academia, em 2015. Para isso contribuíram tanto o caráter inovador do filme, rodado ao longo de vários anos, acompanhando o crescimento do protagonista e restante elenco, como o discurso de agradecimento de Patricia Arquette. A atriz pôs o dedo na ferida ao levantar o problema da desigualdade económica que afeta as mulheres americanas, dentro e fora de Hollywood.
Já depois da cerimónia, a atriz fez questão de dissecar o tema. «Temos mães solteiras que não ganham um salário justo. E 40% das crianças afro-americanas vivem abaixo do limiar de pobreza. Se se preocupa com crianças, fome ou abuso sexual, se se importa com algum destes temas, eles estão relacionados com desigualdade económica», aludiu.
As dicas feministas da atriz britânica Emma Watson
Emma Watson, porta-voz da campanha das Nações Unidas HeForShe, é outra das celebridades que se tem destacado pelo activismo em torno da desigualdade de género. Depois de discursar na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2014, a atriz foi alvo de uma campanha online, com várias fotos em que aparecia nua a serem publicadas na internet.
A atriz britânica não desarmou e, desde essa altura, tem-se multiplicado em ações de promoção da campanha. Numa delas, e numa tentativa de tranquilizar a população masculina, dá algumas dicas de como os homens podem ser feministas:
1. Está tudo bem em deixar que seja ela a pagar a conta.
2. Não é vergonha ser feminista. Se luta pela igualdade, é feminista. Lamento dizê-lo, mas é.
3. Trabalha com mulheres? Certifique-se que elas recebem o mesmo ordenado que os homens na mesma função.
4. As feministas não têm de ser ameaçadoras.
5. Os homens podem chorar. Não é sinal de fraqueza, apenas de que são humanos.
6. Apoie a campanha HeForShe.
Texto: Susana Torrão (feminista)
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