«Quando eu era criança tinha liberdade para descobrir o mundo que me rodeava, sem medo dos micróbios ou de me sujar (como dizia a minha mãe: suja-se, lava-se), sem medo dos acidentes de trotineta ou de trepar às árvores. Desse tempo tenho as melhores memórias», admite... Clara de Sousa!
«Cresci num ambiente saudável e feliz. Também tive as minhas más experiências, como as da escola primária onde as orelhas de burro à janela funcionavam como castigo humilhante; ou quando soube que a minha avó paterna tinha partido serenamente enquanto dormia; ou ainda a primeira e única vez que decidi colocar os dois dedos numa tomada eléctrica.»
«Mas há uma memória marcante que é a mais antiga de todas. Teria cerca de ano e meio. Já andava desde os dez meses, não parava e levava tudo à boca.»
«Os produtos de limpeza estavam num local acessível e, bastaram uns segundos de desatenção, já eu estava a provar o amargo sabor da lixívia. Provar é pouco. Dei uns valentes goles, tanto mais que era Verão e devia estar com sede. Instalou-se o pânico.»
«Lembro-me de ser levada para o Hospital e de estar sentada numa maca muito alta, à frente de um médico que me enfiou um líquido pela boca para me obrigar a deitar tudo para fora.»
«Mais do que as poucas memórias visuais, o que ficou sobretudo foi uma memória sensorial. Foi um dia demasiado mau. É claro que anos mais tarde a minha mãe me contou tudo e pude enquadrar melhor a história.»
«A lixívia tinha sido comprada a um vendedor que todas as semanas ia ao nosso bairro numa carrinha, uma mini mercearia sobre rodas, e que a minha mãe lhe agradeceu. Perguntarão porquê.»
«Pela simples razão de que ele acrescentava água à lixívia. A minha mãe ria-se a contar esta história por causa da cara que o homem fez, meio sem jeito, sem saber o que dizer.»
«Agora chegou a minha vez de lhe agradecer publicamente. Muito obrigada ao merceeiro da carrinha que vendia no bairro alentejano da Parede nos finais da década de 60, inícios de 70.»
«No momento em que a suas mãos colocaram água naquela garrafa de lixívia só podiam estar a ser conduzidas pela mão de Deus. Eu quero acreditar que sim.»
Declarações recolhidas por: Mariana Menezes
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