O seu livro fala-nos de um encontro fortuito. Antes de aí chegarmos gostaria de perceber se o seu encontro com a escrita foi fortuito ou partiu de uma intenção num determinado momento da sua vida?

A escrita está presente na minha vida desde pequena de uma forma que, julgo, acontece naturalmente com a maior parte dos escritores. Quando descobrimos a literatura e os livros, acabamos por também tentar escrever. Depois de terminar o meu curso, estagiei na Casa da Criação, como guionista. Desta forma, comecei a escrever diariamente. Trata-se de um outro tipo de escrita. É uma fábrica de escrita, mas que me fez desenvolver algumas ferramentas, também elas importantes para o caminho que me levou aos livros. A minha chegada aos livros foi fortuita por ter acontecido após a maternidade. Comecei a escrever alguns artigos, enquanto mãe, para uma plataforma de parentalidade. Artigos esses que falavam da minha experiência, das minhas expectativas, daquilo que eu sentia. A minha futura editora, também ela mãe de um bebé, conheceu dessa forma a minha escrita. E surgiu o convite para escrever o meu primeiro livro, A Ilha das Quatro Estações.

A Marta trabalha como argumentista para televisão. Sente que a escrita nesse contexto é um exercício mais controlado e espartilhado?

É completamente diferente porque, na maior parte das vezes, estamos a responder aos pedidos dos clientes. Ainda que exista muita liberdade criativa, existe também um compromisso, o de levarmos ao cliente a história que há a contar. No livro, não é necessariamente assim. No meu caso, tive toda a liberdade para escrever este livro e o anterior também. Por outro lado, a escrita para televisão também decorre sob pressão, porque há um objetivo diário que tem de ser cumprido, independentemente do que esteja a acontecer. Julgo que também isso transparece quando atravessamos uma boa fase, a nossa escrita é muito mais produtiva e muito mais interessante.

Este não é o seu primeiro livro. Estreou-se na ficção com a Ilha das Quatro Estações, também escreveu livros infantis. Enquanto escritora, o que sente quando vê os seus livros nos escaparates?

[Risos] É uma experiência muito estranha, porque é uma história muito nossa. Mas, a partir do momento em que os livros chegam às livrarias, aquela história passa a ser de todos. E é muito interessante receber as críticas, porque entendemos que uma mesma história não é lida da mesma forma por diferentes pessoas. Há pessoas que sentem ali uma empatia numa parte da história, que gostam de um aspeto específico, de algo que nunca imaginaríamos ser tão importante e que as tocaria. Acredito que as histórias são algo universal, mas, ao mesmo tempo, há a dimensão individual, porque há aspetos que podem interessar a umas pessoas e não interessam a outras. Julgo que os leitores gostarão naturalmente daquilo que escrevemos desde que sejamos verdadeiros na nossa escrita.

Marta Coelho nasceu em Lisboa em 1986 e licenciou-se em Ciências da Comunicação. Trabalha como argumentista para televisão desde 2007 e o seu dia é preenchido a dar vida a personagens. Estreou-se como escritora com A Ilha das Quatro Estações, tendo publicado, posteriormente, três livros infantis, sendo o último destes o primeiro livro bilingue em português e nepalês a ser editado no mundo. Vive com a filha em Lisboa, onde escreve e é feliz.

De certa forma, os leitores também fazem uma interpretação daquilo que o autor escreve...

Exatamente. E acredito também que se uma escrita não for verdadeira, não vai ressoar em ninguém, ninguém vai acreditar naquilo que lê. Claro que, dada a experiência que tenho na minha escrita diária, sei que existem alguns ingredientes-chave que poderão agradar aos leitores. Sou uma leitura ávida e, portanto, também sei aquilo que gosto de ler num livro. Procuro com os meus livros que as pessoas tenham a mesma experiência de leitura que tenho enquanto leitora.

É autora do primeiro livro bilingue em português e nepalês a ser publicado em todo o mundo. Como nasceu este projeto, o Depois da Chuva Chega o Arco-Íris?

Sim, mais uma vez trata-se de um encontro fortuito com a escrita. A Fundação Aga Khan Portugal trabalha, entre outras, junto da comunidade nepalesa na zona do Martim Moniz e da Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Também aí trabalha com algumas escolas e, nesse contexto com a escola onde a minha filha frequentou o pré-escolar. Estávamos em plena pandemia e surgiu a ideia de desenvolver uma história com as crianças do primeiro ciclo. Dentro da comunidade nepalesa, as pessoas que fazem o trabalho de campo recebiam algumas “queixas” por parte das mães. Falavam da dificuldade de partilharem a leitura de livros com os filhos. Porque os filhos nascidos em Portugal dominam a língua portuguesa, mas não conseguem ler nepalês. Logo, pais e mães não conseguem comunicar com os filhos através da leitura. Foi o ponto de partida para este projeto. Um livro que conta a história entre dois meninos, um português, o outro nepalês, que se encontram na rua e que percebem que apesar de haver algumas palavras que são mais difíceis de dizer, há algo que os une: são crianças e, independentemente da local do mundo, gostam de brincar. Aceitei o desafio de escrever esta história, fui trabalhando com as pessoas da Fundação, contámos com uma tradutora nepalesa também da comunidade e com um ilustrador nepalês. O livro foi distribuído de forma gratuita da comunidade.

Na breve biografia que acompanha o seu livro lemos que é uma escritora ávida. A que horizontes da leitura, ou seja, temas e autores, a leva essa sua avidez por livros?

Gosto de ler de tudo um pouco. Leio vários autores e estilos. Há poucos géneros literários que não me interessem. Nesta fase em que, de facto, a escrita diária por questões profissionais me consome muito tempo, aquilo que procuro é uma leitura que seja prazerosa. Ou seja, um livro que me cative para a leitura. Por exemplo, quando há um livro muito falado, tento perceber os porquês de as pessoas gostarem de o ler. Mas também pode ter o efeito contrário em mim. Por vezes, esse sucesso afasta-me um bocadinho e procuro ler obras que ninguém lê no momento. Como vê, o critério é diverso. Já li de tudo, de muitos autores.

Há alguma autora ou autor que seja basilar na sua formação enquanto escritora?

Sim, a Sofia de Mello Breyner Andresen. Julgo que foi com esta autora que aprendi, de facto, a beleza das palavras. Na escola, ao ler Sofia, percebi que queria muito trabalhar com as palavras, e de como, com elas, é possível dizer uma coisa de tantas formas diferentes. A Sofia foi, sem dúvida, a minha maior inspiração.

Porque tem o mesmo livro em várias línguas? Porque pensamos de forma diferente consoante a língua em que lemos?

 [Pausa] Gosto muito de ler os livros na língua original em que foram escritos, cajo seja uma língua que eu domine. No passado, mais do que presentemente, havia um tempo de espera entre o lançamento dos livros em países terceiros e o nosso mercado. Logo, procurava comprar os livros em língua inglesa para evitar ter de aguardar. Hoje, a maior parte dos livros que tenho em duas línguas, o português e o inglês, li-os no passado em inglês. Quero que constem na minha biblioteca em português para estarem acessíveis à milha filha quando ela crescer.

Minuscula
Minuscula créditos: Clube do Autor

O título de um livro guarda intenções, anuncia-nos algo. No caso presente, escolheu para título do seu livro a palavra “minúscula”. Porquê?

Devo confessar que não foi o nosso primeiro título. Inicialmente, o título pensado era outro, mas já existia, associado a um livro com uma história completamente diferente. Quando estávamos a trabalhar as capas, foi surgindo a necessidade de, eventualmente, adaptar o título a algo que dissesse mais sobre a história que o livro guarda. Este Minúscula surgiu porque a protagonista sofre de ansiedade. Esta palavra é uma das formas de explicar muito claramente como ela se sente. Ela sente-se a encolher quando não escreve, quando sente ansiedade. Há também um piscar de olho às letras minúsculas e maiúsculas.

No seu livro fala-nos de uma “amiga”. Diz que a tem acompanhado sempre, mas preferia não a ter por perto. Que "amiga" é esta?

É a ansiedade. Também sofro de ansiedade, ainda que a uma escala completamente diferente daquela que sente a Duda, a protagonista da história. Este livro não é autobiográfico, mas a minha experiência com a ansiedade permite-me ter alguma sensibilidade na abordagem do tema e alguma empatia e compreensão por aquilo que a Duda está a sentir. É mais fácil comunicar os sentimentos dela, porque os entendo, não que tenha passado por todos eles, pois não passei. Esta é uma obra de ficção, portanto escrevemos muito sobre coisas que não vivemos. Mas permitiu-me sentir muita empatia pela Duda.

“Os jacarandás estão em flor e o cenário é tão magnífico que me rouba o ar dos pulmões durante alguns instantes. Amparo-me na parede e fico a observar como os casais passam por baixo das árvores, alheios à beleza que os enquadra. Esta é uma das situações em que tiraria de imediato uma fotografia e a enviaria ao Artur. Mas agora o meu peito está pesado e vazio (...) Dou mais alguns passos e olho para o chão, com alguma melancolia. Talvez o amor seja exatamente como estes jacarandás. Quando estão em flor, roubam-nos o fôlego”.

Excerto de Minúscula

Sente que a escrita deste livro está a ajudar os leitores a enfrentarem e a superarem a ansiedade?

Sim, quando escrevi não era o meu maior objetivo, mas apercebi-me disso aos poucos, após o lançamento do livro. Comecei a receber mensagens de várias pessoas que sofriam de ansiedade e que compraram este livro para tentar sentir-se menos sozinhas. Foi muito interessante. Ou seja, ao escrever o Minúscula quis enveredar por uma história real, algo que pudesse acontecer a alguém que nós conhecemos. E, depois, tem sido uma experiência muito enternecedora falar com outras pessoas e perceber que a ansiedade existe num espectro tão grande e de formas tão variadas. Há muitas pessoas que se sentem perdidas. O meu livro quer passar uma mensagem de esperança.

O subtítulo do livro expressa-se nas seguintes palavras: “ninguém merece estar sozinho”. O seu livro é também sobre solidão?

Neste caso em particular é mais sobre o não estarmos sozinhos na nossa doença, ou seja, sermos capazes de abrir o nosso eu para nos deixarem ajudar. Às vezes, é muito difícil pedir ajuda, às vezes não há essa capacidade e, por vezes, não temos quem nos ajude à nossa volta. Há pessoas que não têm ninguém próximo e há pessoas que têm pessoas à volta que não têm essa capacidade ou essa vontade de ajudar. Quis passar a mensagem de que não estamos sozinhos, independentemente das circunstâncias. Por isso mesmo, no final do livro, deixo uma série de contactos de entidades junto das quais as pessoas podem dirigir-se e receber acompanhamento.

A Marta acompanha o seu livro de uma lista bastante eclética de autores e músicas. Porque quis mencioná-los?

Dizem-me todos alguma coisa, mas em particular, são uma espécie de mapa para esta história. São as referências que me serviram de base à narrativa, seja porque me cruzei com estes livros em alguma fase e percebo que há semelhanças às circunstâncias pelas quais as personagens passam. Quis pintar um pouco o quadro, uma tela que estava muito em branco.

Este é um livro sobre um encontro fortuito. Muitas vezes, mais do que encontros agendados, os encontros furtuitos alteram-nos a vida. A Marta quer falar-nos um pouco da história que dá mote ao seu livro?

Sim, esta é uma história sobre a busca de um sonho, sobre a concretização desse sonho e sobre as dificuldades que, muitas vezes, temos de ultrapassar para tentarmos alcançar esse sonho. É a história de uma menina que está a crescer, uma menina-mulher, que se sente muito perdida na fase em que está, porque deixou de conseguir escrever, e o seu maior sonho é escrever um livro, ser publicada. Ao mesmo tempo, escrever é o que permite à Duda pagar as contas, porque ela trabalha com palavras e deixou de as conseguir levar para a escrita. E, quando conhece o Pedro, encontra uma espécie de saída. O Pedro abre-lhe a porta que lhe entrega a solução para continuar a escrever.

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O que nós vamos acompanhar é o caminho de duas pessoas que gostam muito de escrever e de ler, duas pessoas que começam por ser amigas e que vão descobrir a beleza de não haver a certeza onde vão chegar. É a história de uma menina com ansiedade, uma mulher com ansiedade que, no caminho rumo à concretização do seu sonho, se vê confrontada com as suas fragilidades. Percebe que não tem, de facto, de estar sozinha, que há ferramentas para lidar com a sua tristeza, com a sua angústia. É também a história sobre voltar a abrir o coração depois de termos perdido alguma esperança no amor.

Também já se sentiu perante o bloqueio da página em branco?

Não posso dizer que tenha sentido. O que por vezes acontece é ter uma ideia em particular sobre o que quero escrever, mas precisar de algum tempo para deixar as personagens falarem comigo. E quem escreve, sabe que não vale a pena apressar esse processo. É preciso respeitar essa pausa para conseguirmos chegar onde queremos.

Será por isso que a Daniela Amaro escreve na apresentação que faz ao livro que este é “uma história tão reconfortante como uma taça de cereais”. Quis escrever um livro reconfortante?

Sim, a nota de esperança que quero passar neste livro pode equiparar-se ao conforto que algumas pessoas encontram numa taça de cereais, outras encontrarão numa corrida, outras pessoas numa boa música, ou num concerto. Quis que este livro acabasse numa nota positiva, ou seja, que as pessoas, após tanta angústia, conseguissem respirar um pouco melhor. Acho que consegui.

A Marta já está a trabalhar num próximo livro?

Neste momento ainda não, embora já tenha definida a ideia que gostaria de desenvolver. Já há alguns sussurros, de vez em quando as personagens surgem para falar comigo. Tiro notas e vou juntando várias pistas para chegar ao momento em que me sentarei frente ao computador para conseguir contar essa história.