“O nosso receio da opinião de outras pessoas (FOPO) é uma epidemia oculta e pode ser o maior constritor do potencial humano. A nossa preocupação com o que as outras pessoas pensam de nós tornou-se uma obsessão irracional, estéril e doentia, no mundo moderno. E os seus efeitos negativos atingem todos os aspetos das nossas vidas”, escreve o psicólogo Michael Gervais a abrir o seu livro A primeira regra da mestria (edição Ideias de Ler). Fundador da Finding Mastery, uma agência de consultadoria que ajuda as pessoas e empresas a resolverem os desafios relacionados com o desempenho pessoal, Gervais oferece-nos no seu livro um caminho para alcançarmos o melhor desempenho possível e mudarmos o foco daquilo que nos rodeia para o nosso mundo interior.

Para o autor, “o FOPO aparece em quase todas a parte nas nossas vidas – e as consequências são grandes. Jogamos pelo seguro e investimos pouco por termos medo do que possa acontecer do outro lado da crítica. Ao sermos desafiados, parecemos porcos-espinhos, protegendo os nossos egos com a nossa versão de espinhos aguçados, ou renunciamos ao nosso ponto de vista (...) Percorremos o mundo a tentar agradar aos outros e a ser quem achamos que as pessoas querem que sejamos, em vez de sermos quem somos”.

Na introdução à obra, Gervais deixa-nos perante algumas questões: “Agora, pense nas decisões que tomou na sua vida. Escolheu a sua carreira por estar apaixonado por essa área, ou seguiu Direito ou Gestão, ou outra coisa qualquer, por considerar que era o que deveria fazer?” O autor também nos aponta caminhos: “Todos nós temos qualidades e pontos fortes únicos – e é nosso dever aproveitá-los ao máximo”.

Após detalhar os mecanismos do FOPO, Michael Gervais encaminha o seu livro para as competências fundamentais para ultrapassar esta condição. “As mesmas que ensinou aos melhores das mais diversas áreas: dos desportistas a músicos reconhecidos internacionalmente, passando por líderes incontestáveis e artistas de renome”, lemos na sinopse à obra.

Michael Gervais
Michael Gervais Michael Gervais, psicólogo de alto desempenho.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

O segredo de Beethoven

Um artista nunca deve ser um prisioneiro de si mesmo, prisioneiro de um estilo, prisioneiro de uma reputação, prisioneiro do sucesso.

Henri Matisse

Ninguém está imune ao FOPO – nem você, nem eu, nem os atletas de classe mundial. Até mesmo artistas de renome, como um dos maiores e mais prolíficos compositores de sempre, são afetados pelo poder do FOPO.

No entanto, só depois de enfrentarmos as forças do FOPO é que podemos verdadeiramente avançar no caminho da mestria.

Vejamos o exemplo de Beethoven.

Para muita gente, ele parecia um recetor escolhido a dedo por Deus para difundir música oriunda de um plano superior. O seu trabalho transformou todos os géneros da música clássica. Ele quebrou todas as regras para criar algumas das músicas mais transcendentes que o mundo desde sempre conheceu. Encarnou a ideia do génio criativo que se insurgiu contra as convenções e forjou o seu próprio percurso artístico.

Apesar de ser um dos artistas mais destemidos que alguma vez pisou o planeta, Beethoven viveu durante três anos com um medo tremendo da opinião dos outros.

Quase no auge da sua carreira, Beethoven afastou-se da opinião pública. Ele carregava um segredo que achava que, caso fosse revelado, destruiria a sua vida profissional. O arquétipo do artista criativo, que parecia nascido para lutar contra o destino e as injustiças do mundo, preferiu isolar-se socialmente a ter de pronunciar três palavras em voz alta. “Eu estou surdo”.

Beethoven começou a perder a audição em meados dos seus vinte anos. A ironia cruel de perder o sentido mais relevante para a sua arte e o seu sustento levou-o a uma procura fútil de curas, desde tampões para os ouvidos com óleo de amêndoa até banhos com casca de uma árvore tóxica. Durante esses primeiros anos, nunca mencionou a degradação da sua capacidade auditiva a qualquer pessoa que não pertencesse à comunidade médica. À medida que era cada vez mais aplaudido na sociedade, isolava-se num mundo centrado nos seus próprios pensamentos e sentimentos angustiantes.

Ludwig van Beethoven
Ludwig van Beethoven Ludwig van Beethoven numa pintura de Joseph Karl Stieler, (1819). créditos: Wikimedia Commons

Para ocultar a sua perda de audição, disfarçava-se com a retórica do artista genial cujo cérebro estava ocupado com outra atividade intelectual. Quando não conseguia ouvir o que lhe diziam ou um som que referiam, a outra pessoa assumia (com a influência de Beethoven) tratar-se de desatenção ou esquecimento: “É surpreendente algumas pessoas nunca terem reparado na minha surdez; mas como sempre fui suscetível a momentos de distração, atribuem a minha dureza de audição a esse facto. Por vezes também mal consigo ouvir alguém a falar baixinho; ouço os sons, é verdade, mas não consigo perceber as palavras. Porém, se alguém grita, não aguento. Só o céu sabe o que vai ser de mim” (Citado e traduzido em Alexander Wheelock Thayer, The Life of Ludwig van Beethoven – Vol. 1 [1866])

Beethoven estava profundamente preocupado com o impacto que a perda auditiva teria na sua música, em particular na sua capacidade de tocar piano, mas a perceção pública representava uma ameaça igualmente poderosa. “Se eu pertencesse a qualquer outra profissão seria mais fácil, mas na minha profissão a situação é horrível, ainda mais pelo que diriam os meus inimigos, que não são poucos” (The Life of Ludwig van Beethov).  Ele temia que os seus detratores usassem tal descoberta contra ele e que as críticas levassem à sua discriminação e exclusão dos círculos musicais vienenses, aos quais durante tanto tempo pretendera ter acesso. Beethoven, como outros artistas da época, dependia do patrocínio aristocrático. Superar o estigma pode ser uma tarefa mais difícil de ultrapassar do que a própria perda auditiva.

a primeira regra da mestria
a primeira regra da mestria créditos: Ideias de Ler

Contudo, a maior de todas as ameaças pode ter sido dirigida à identidade de Beethoven. “Ah, como poderia eu admitir alguma vez tal enfermidade no único dos sentidos que deveria ser mais perfeito em mim do que nos outros, um sentido que outrora possuía na mais alta perfeição, uma perfeição de que decerto poucos na minha profissão desfrutam ou desfrutaram, escreveu ao seu irmão.

Ele era Beethoven, o deus da música; e, supostamente, os deuses da música ouviam música melhor do que os mortais. A sua perda auditiva não combinava com a ideia que ele tinha de si próprio ou com a imagem pública que promovia. Tinha uma identidade austera – condicionada pela aprovação e o elogio dos outros – que era para ele tão real e imutável como a sua pele e os seus ossos. Conforme reflete numa carta ao seu generoso benfeitor, o príncipe Lichnowsky, a sua identidade beirava a criação de mitos: “Príncipe! Sois o que sois pelas circunstâncias e pelo nascimento. O que eu sou sou-o por mim próprio. Príncipes sempre houve e haverá aos milhares. Beethovens só há um” (Jan Swafford, Beethoven: Anguish and Triumph – A Biography - Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2014).

Beethoven reagiu da forma como a maioria de nós reage quando sente que a sua sobrevivência está ameaçada.Tentou proteger-se. Em vez de olhar para dentro e alterar a forma como se via a si próprio, olhou para fora e tentou conformar a realidade externa à perceção que tinha de si mesmo.

Pagou um preço exorbitante para arquitetar uma realidade que mantivesse afastadas as opiniões de outras pessoas. Muitas vezes não conseguia ouvir alguém a falar, mas tinha medo de lhe pedir que falasse mais alto, com receio de se expor.

Desempenhou o papel de misantropo para manter oculto o seu segredo. Passou vários anos isolado da sociedade, sozinho na sua surdez, chegando mesmo a considerar o suicídio.

Problemas do papa

Desde tenra idade, Beethoven foi influenciado a acreditar que as opiniões externas eram importantes. O pai, Johann, um tenor medíocre cujas aspirações musicais foram frustradas pelo alcoolismo, procurou viver os seus sonhos através do filho. Autodenominava-se instrutor de Beethoven e abusava verbal e fisicamente do filho para o pressionar ainda mais. Manteve-o na linha com gritos, ameaças e espancamentos, chegando ao ponto de o trancar na cave. Numa ocasião, depois de voltar de uma noitada com amigos, Johann obrigou o pequeno Beethoven a subir a um banquinho para alcançar as teclas do piano e tocar para os amigos, batendo-lhe sempre que errava uma nota.

Como tirar partido em benefício próprio dos seus maus hábitos? As explicações do "Psiquiatra das Estrelas”
Como tirar partido em benefício próprio dos seus maus hábitos? As explicações do "Psiquiatra das Estrelas”
Ver artigo

À medida que os talentos do jovem Beethoven se tornavam mais evidentes, Johann decidiu fazer dele a próxima coqueluche musical da Europa. O pai desempenhou o papel de agente artístico do século XVIII, um conhecedor do mercado que promoveu Beethoven em todos os círculos musicais de Bona, na Alemanha. Quando Beethoven tinha sete anos, o pai mentiu sobre a idade dele, durante um ano, para o encaixar melhor no arquétipo de prodígio. Alugou um salão em Colónia e publicou um anúncio no jornal local anunciando o seu “filhinho de seis anos”, que já tivera a honra de tocar para a Corte.

Desde muito jovem, Beethoven recebeu a mensagem pouco delicada: “Tens de conseguir mais”. Desde cedo, Beethoven reconheceu que a sua ascensão no mundo musical da Viena do século XIX estaria diretamente relacionada com o estatuto e as opiniões daqueles que o admiravam. A um nível mais profundo, teve a experiência em primeira mão de que a aprovação e o amor vinham em resposta ao desempenho e às concretizações. As iniciativas do pai representavam uma mensagem clara de que Beethoven era amado não pelo que era, mas pelo que fazia. A fusão de amor e aprovação cria muitas vezes um padrão de busca de aprovação na vida adulta – e as luzes da ribalta alimentaram o sentido de identidade de Beethoven.

Santuário

Beethoven tinha um lugar para onde ir que era impenetrável às opiniões dos outros, adverso à dúvida e fora do alcance dos patronos aristocráticos que forneciam a tábua de salvação financeira para a sua música – o seu mundo íntimo.

Ele desenvolveu a capacidade de mergulhar plenamente na sua música e desaparecer dentro de si próprio, alheio ao que o rodeava e sem qualquer sentimento de autoconsciência. Poderia estar em qualquer lugar – rabiscando os seus cadernos ou improvisando no meio de uma grande multidão.

Uma amiga de infância relembrou um desses momentos. Estava a conversar com Beethoven, mas ele parecia ausente, incapaz de ouvi-la. Quando, por fim, ele deu conta da situação, reagiu: “Oh, por favor, não, não, perdoa-me! Eu estava mergulhado num pensamento tão belo e profundo que não aguentaria ser perturbado” (Franz Wegeler e Ferdinand Ries, Beethoven Remembered – The Biographical Notes of Franz Wegeler and Ferdinand Ries- Salt Lake City, UT: Great River Books, 1987)

O biógrafo Jan Swafford descreveu esse estado de espírito como um “transe” onde “ele encontrava solidão mesmo estando acompanhado”. Um amigo da família, que foi fundamental na formação de Beethoven, no início da sua carreira, denominou esse estado de espírito de “raptus”. O raptus de Beethoven tornou-se uma lenda entre aqueles que faziam parte do seu círculo íntimo. Quando se retirava, não era raro ouvir-se: “Ele hoje está novamente em êxtase”.

Com o seu raptus, Beethoven desenvolveu um conjunto de aptidões internas que lhe permitiu concentrar-se na sua música e bloquear distrações internas e externas. Era capaz de ir para um lugar onde as opiniões dos outros não importavam. Sentia-se confortável a aventurar-se no interior da sua própria caverna porque sabia como estar consigo mesmo. Sabia escutar a sua própria música.

O desafio era quando ele emergia do raptus e voltava ao jogo da aprovação.

Enfrentar o FOPO

Beethoven chegou a um ponto em que lhe era impossível esconder a sua surdez. Descreveu a sua perturbação numa carta sincera e angustiada que escreveu aos irmãos, a 6 de outubro de 1802, conhecida como “Testamento de Heiligenstadt”:

“Oh, vós, homens que pensais ou dizeis que sou malévolo, teimoso ou misantropo, como vos enganais a meu respeito. Não conheceis a causa secreta que me faz parecer assim, perdoai-me quando me vedes recuar quando de bom grado desfrutaria da vossa companhia: […] Tenho de viver como um exilado; se me aproximo das pessoas, apodera-se de mim um terror ardente, um medo de que possa estar sujeito ao perigo de deixar que a minha condição seja observada […] que humilhação para mim quando alguém que estava ao meu lado ouvia uma flauta ao longe e eu nada ouvia, ou alguém que estava ao meu lado ouvia um pastor a cantar e, de novo, eu nada ouvia. Tais incidentes quase me levaram ao desespero; um pouco mais disso e eu teria posto fim à minha vida”.