"Dizer a verdade é a ferramenta mais poderosa que todos temos". As palavras foram proferidas pela apresentadora de televisão e empresária norte-americana Oprah Winfrey que, no dia 7 de janeiro, subiu ao palco da cerimónia dos Globos de Ouro para receber o galardão Cecil B. DeMille.

Inevitavelmente, o seu discurso não pôde deixar de mencionar aquele que foi – e ainda continua a ser - um dos assuntos mais comentados em Hollywood: os casos de abuso e assédio sexual no trabalho levados a cabo pelo produtor Harvey Weinstein durante os últimos 30 anos.

A avalanche de denúncias, que neste momento já vão em 93, fizeram com que o movimento #MeToo ganhasse notoriedade. Inicialmente fundado pela ativista Tarana Burke em 2006, esta iniciativa, que tinha como objetivo consciencializar a sociedade para a magnitude do assédio e abuso sexual, ganhou uma nova dimensão nas redes sociais após a atriz Alyssa Milano ter incentivado outras mulheres a quebrarem o silêncio e a partilharem as suas experiências através do uso da hashtag #MeToo.

Só nos Estados Unidos milhares de pessoas, anónimas e figuras públicas, partilharam as suas histórias através das redes sociais. Todas têm algo em comum: são histórias marcadas pelo abuso de poder, pelo sofrimento, pelo medo e, em grande parte, pela impunidade do agressor.

Mas esta é uma narrativa transversal a todas as indústrias e que, diariamente, se repete em outras partes do mundo. Portugal não é exceção.

Os dados mais recentes sobre o tema, apresentados no estudo “Assédio Sexual e Moral no Local de Trabalho” desenvolvido pelo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género no âmbito de um projeto de parceria promovido pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), dão conta de que esta é uma realidade na sociedade portuguesa. Que o digam Alice e Beatriz Cabral. Ambas foram vítimas de assédio sexual nas empresas onde trabalharam.

Assédio. O que é e onde denunciar

O assédio é todo o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

Existem dois tipos de assédio no local de trabalho: o moral/mobbing e o sexual. Para saber mais sobre estes conceitos clique aqui.

Se está a ser vítima de assédio no trabalho pode apresentar queixa junto da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego ou da Autoridade para as Condições do Trabalho. Poderá ainda dirigir-se ao Serviço de Informação Jurídica da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres ou às Centrais Sindicais.

Fonte: APAV

Beatriz tinha 21 anos quando começou a estagiar numa estação de televisão privada portuguesa. Enquanto Relações Públicas, parte das suas funções consistia em fazer o acompanhamento dos convidados que marcavam presença nos diversos programas de entretenimento da estação. Ir buscá-los à entrada, levá-los para a maquilhagem e conduzi-los até ao cenário eram algumas das tarefas que desempenhava diariamente. A reportar a um dos produtores, Beatriz presenciou, logo de início, comportamentos considerados impróprios por parte daquele que era o seu superior hierárquico.

“Ele era uma pessoa que estava sempre com brincadeiras impróprias, 'toquezinhos' e que contava anedotas ordinárias quando estava num grupo de várias pessoas. Ouvi-o fazer comentários do género: ‘Estão a ver aquela repórter? Ela quando começou também estava a fazer o mesmo que vocês mas depois fez contactos’. Era sabido que havia várias pessoas que se atiravam às estagiárias,” explica em entrevista ao SAPO Lifestyle sobre o ambiente que se vivia no seu local de trabalho e cujo dress-code consistia no uso de uma camisa branca e de umas calças pretas.

Nos primeiros dias de trabalho, de forma inesperada, o seu superior hierárquico questionou-a sobre a sua aparência física: “Ó Beatriz hás-de me explicar como é que és tão magrinha e tens essas mamas tão grandes”. Na altura, a jovem afirma que ficou sem reação, acabando por virar costas.

Apesar de ser pouco frequente, fazer de conta que nada se passou é um dos comportamentos tidos pelas vítimas de assédio sexual no emprego (22,9%). Apesar de os comentários não se terem repetido, a jovem refere que o agressor, cuja idade rondava os 40 anos, procurava sentar-se ao pé de si, tentando, inclusive, o contacto físico com 'toquezinhos'. Atitudes desconfortáveis e constrangedoras que se repetiram todos os dias durante três meses e que são suscetíveis de serem classificadas como assédio sexual.

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“Repetir sistematicamente observações sugestivas, piadas ou comentários sobre a aparência ou condição sexual” e “promover o contacto físico intencional e não solicitado, ou excessivo ou provocar abordagens físicas desnecessárias” são dois dos comportamentos que constam no guia informativo para a “Prevenção e combate de situações de assédio no local de trabalho: Um instrumento de apoio à autorregulação” elaborado pela CITE.

Então e uma mulher que experiencie um episódio isolado no local de trabalho poderá estar a ser vítima de assédio? Daniel Cotrim, Assessor Técnico da Direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), esclarece melhor esta questão. “Se quisermos ser muito rigorosos, o assédio implica um conjunto de comportamentos repetitivos. Agora, como é óbvio, quando são feitos certos comentários que objetifiquem a mulher, mesmo que seja uma vez só, em ambiente de trabalho e pela entidade patronal é obviamente uma forma de assédio. É sobretudo um comportamento indesejado e as vítimas devem queixar-se disto às entidades competentes.”

Brincadeira vs. Assédio. Uma linha ténue e confusa

Ao longo da sua vida, 12,6% da população ativa portuguesa já foi alvo de assédio sexual no local de trabalho. A investigação de 2015 refere que as principais vítimas são mulheres enquanto os agressores são, maioritariamente, do sexo masculino e ocupam cargos de topo (ver caixa). Para o Assessor Técnico da Direção da APAV, estes dados não espelham a realidade portuguesa. Nos últimos seis anos, a CITE recebeu 12 queixas de assédio sexual. O medo de represálias e a falta de informação sobre o tema são algumas das justificações encontradas para o baixo número de denúncias.

“Apesar de nos últimos tempos e com os Globos de Ouro se ter falado no assédio contra as mulheres, normalmente o assédio está numa linha ténue. As pessoas não sabem muito bem se estão a ser vítimas de assédio. Muitas vezes confunde-se o assédio com uma brincadeira que é repetitiva e de que a vítima não gosta mas também não se queixa porque, se for no trabalho, tem medo das consequências”, refere Daniel Cotrim, em entrevista ao SAPO Lifestyle.

Os números do assédio sexual no trabalho

As mulheres são as principais vítimas de assédio sexual no trabalho (14,4%). O superior hierárquico ou chefe (44,7%) e o colega (26,8%) são apontados como os principais agressores dentro das organizações.

O comércio por grosso e a retalho (20,9%) é o setor onde mais se vive esta realidade.

Olhares insinuantes que a fazem sentir ofendida (23,5%), contactos físicos não desejados (20,1%) e piadas ou comentários ofensivos sobre o seu aspeto (14,5%) estão entre as práticas mais frequentes de assédio.

A maior parte das vítimas desabafa com os amigos (37,4%), seguindo-se os colegas de trabalho mulheres (36,9%) e, por fim, a família (35,8%).

* Fonte: Assédio sexual e moral no local de trabalho em Portugal (2015).

Hoje com 27 anos, Beatriz admite que durante os três meses que exerceu funções na estação de televisão privada portuguesa nunca teve plena noção de que estava a ser vítima de assédio sexual. No caso de Alice a história, que remonta a agosto de 2013, é ligeiramente diferente.

Após ser recrutada para o departamento de Marketing de uma empresa ligada ao setor da construção civil, a jovem de 25 anos sentiu logo que algo não estava bem. Em causa estava o facto de o chefe ter exigido que, no primeiro dia de trabalho, viajassem os dois para Londres com o propósito de visitarem uns clientes. “Isso deixou-me totalmente desconfortável mas fui porque receei que se dissesse que não me rejeitassem. Eu precisava de trabalhar pois estar parada em casa não faz parte do meu perfil”, recorda.

Ao chegarem ao hotel os comentários sugestivos começaram. Desde “brincar” a que teriam de ficar a dormir no mesmo quarto, mencionar que o hotel tinha uma piscina interior muito boa, tecer comparações constantes com a namorada que tinha a mesma idade a deslocar-se até ao quarto de Alice com o pretexto de fazer o check-in online da viagem de regresso foram algumas dos comportamentos adotados pelo seu superior hierárquico durante aquilo que era uma viagem de negócios.

A administrativa que trabalhava com ele, há anos, sabia de outras raparigas que tinham passado pela mesma situação. À semelhança de todas as outras que por lá passaram, ele despediu-me porque não retribuí às investidas

Tal como salienta a investigação sobre o assédio sexual em contexto laboral, 52% das mulheres sexualmente assediadas têm tendência a mostrar imediatamente o seu desagrado pelas práticas que as ofendem enquanto 30,7% opta pelo confronto direto com o agressor, exigindo que a situação não se repita futuramente. Alice enquadra-se nesta porção de mulheres tendo, durante os três dias em que esteve no estrangeiro a trabalho, deixado claro o seu desagrado, desinteresse e recusa face à postura do seu chefe cuja idade rondava os 40 anos. “Fui rude, fria e distante”.

Alice rapidamente percebeu nas entrelinhas das piadas despropositadas e abordagens impróprias que estava perante um caso de assédio sexual. A confirmação chegou após regressar a Portugal e comentar a situação com outra pessoa da empresa: não era a primeira vítima. “A administrativa que trabalhava com ele, há anos, sabia de outras raparigas que tinham passado pela mesma situação. À semelhança de todas as outras que por lá passaram, ele despediu-me porque não retribuí às investidas”, explica.

Assédio sexual. Um preço muito alto para as vítimas

As histórias de quem já experienciou o assédio sexual no local de trabalho
créditos: Pexels

Com uma rede de 18 gabinetes espalhados pelo país, a APAV fornece informação sobre os diversos tipos de assédio, esclarece sobre o seu enquadramento legal e dá apoio psicológico adequado.  Apesar de aconselhar todas as pessoas a denunciarem a situação, Daniel Cotrim refere que em Portugal ainda existe uma cultura em que não se credibiliza as denúncias que são feitas.

“Nós vivemos numa sociedade que culpabiliza a vítima e que, neste caso, culpabiliza a mulher que deveria ter sido capaz de dizer que não. É muito mais fácil culpar a vítima do que punir o infrator,” afirma.

Os homens também são vítimas de assédio

Apesar de estarem em minoria, os homens também são vítimas de assédio sexual no trabalho: 8,6%. O superior hierárquico ou chefe (33,3%) e colega (31,3%) são apontados como os principais agressores dentro das organizações.

O alojamento, restauração e similares (14,9%) são os setores onde mais se vive esta realidade.

Perguntas intrusivas e ofensivas acerca da sua vida privada (22,9%), piadas ou comentários ofensivos sobre o seu aspeto (14,6%) e olhares insinuantes que o fazem sentir ofendido (14,6%) estão entre as práticas mais frequentes de assédio.

Relativamente à forma como reagem perante esta situação, 50% do sexo masculino admitiu fazer de conta que não notava o que se passava. A maior parte desabafa com os amigos (45,8%), seguindo-se os colegas de trabalho homens (37,5%).

* Fonte: Assédio sexual e moral no local de trabalho em Portugal (2015).

Segundo o Artigo 29º do Código do Trabalho a prática de assédio sexual é descrita como “o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.” É proibida e constitui uma contraordenação muito grave que confere à vítima o direito de indemnização.

Neste momento a expressão 'Assédio Sexual' não está presente no Código Penal. Aquilo que existe é o termo 'Importunação Sexual' que, por sua vez, é considerado crime e é uma forma de penalizar comportamentos e condutas que se encaixem no conceito de assédio. No entanto, “no caso de assédio sexual só são consideradas crime as situações que se possam enquadrar no artigo 170º do Código Penal”, salienta a advogada Patrícia Afonso Henriques.

O artigo 170º do Código Penal refere-se ao crime de Importunação Sexual que abrange situações onde estão incluídos “atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual”. É punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Recorde-se ainda que o mesmo artigo criminaliza o piropo, encarado como uma proposta de teor sexual, e que em 2015 deu que falar nas redes sociais.

Mesmo que não seja denunciado às autoridades competentes, o assédio sexual provoca danos graves na saúde física e psicológica das vítimas.

Nos três dias em que esteve no estrangeiro Alice refere que o seu sistema nervoso estava de tal forma descontrolado que esteve sempre com cólicas e sem conseguir comer. “Não conseguia tão pouco estar a respirar normalmente na presença dele”, explica sobre este período da sua vida que terminou ao fim de um mês com o seu despedimento.

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A justificação dada pelo chefe? Que não estava a corresponder ao que era pretendido. “Foi o dia em que senti mais alívio. Nunca pensei em fazer nada porque não quis desperdiçar a minha energia com algo que consegui resolver sozinha. E só fiquei pela necessidade de ganhar aquele ordenado.”

De acordo com as mudanças que foram feitas à Lei n.º 73/2017, que entrou em vigor no dia 1 de outubro de 2017, verificaram-se diversas alterações ao Código do Trabalho, como é o caso de passar a estar prevista a responsabilidade do empregador pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais resultantes da prática de assédio. Para além disso, tornou-se obrigatória a instauração de um procedimento disciplinar, sempre que a empresa tenha conhecimento de uma situação de assédio no trabalho (ver em baixo).

Eu gostava imenso do trabalho mas odiava estar lá.

Mas a verdade é que as consequências deste tipo de conduta nem sempre se limitam só à saúde física e mental da vítima. Para Beatriz esta situação implicou abdicar de um emprego que a realizava. “Eu gostava imenso do trabalho mas odiava estar lá. Depois do estágio pediram-me para assinar um contrato de 12 meses mas recusei. Não ia aguentar um ano de noites mal dormidas e ansiedade”, refere.

Apesar de aplaudir o reforço do quadro legislativo para a prevenção da prática de assédio no trabalho, a APAV afirma que as alterações são insuficientes uma vez que os seus efeitos não são imediatos dentro das organizações. No seu entender, a solução passa por apostar na informação aos colaboradores.

“Deveria haver um trabalho de educação dentro das empresas para trabalhar estas questões. As pessoas deveriam estar informadas sobre o que é o assédio, que formas de assédio existem e que tipo de mecanismos é que têm à mão para fazerem queixa da situação e poderem pedir apoio”, conclui.

*Alice é um nome fictício.


Tudo o que precisa de saber sobre a nova lei

De acordo com as mudanças que foram feitas à Lei n.º 73/2017, que entrou em vigor no dia 1 de outubro de 2017, destacam-se as seguintes alterações ao Código do Trabalho:

- Passa a estar expressamente previsto um direito de indemnização à vítima em caso de assédio laboral;

- Passa a existir um regime especifico de protecção à vítima e às suas testemunhas no âmbito de procedimentos relacionados com situações de assédio;

- Para todas as empresas com sete ou mais trabalhadores, torna-se obrigatória a existência de um Código de boa conduta para a prevenção e combate do assédio no trabalho, constituindo uma contra-ordenação a não adopção deste código de boa conduta;

- Torna-se obrigatória a instauração de um procedimento disciplinar, sempre que a empresa tenha conhecimento de uma situação de assédio no trabalho;

- Presume-se abusiva a aplicação de uma sanção disciplinar ou o despedimento, alegadamente aplicados para punir uma infracção, até um ano após a denúncia ou outra forma de exercício de direitos relativos a igualdade, não discriminação e assédio;

- Passa a estar prevista a responsabilidade do empregador pela reparação dos danos emergentes de doenças profissionais resultantes da prática de assédio.