Ao longo da história, muitas mulheres tiveram de recorrer a pseudónimos masculinos de forma a conquistarem o seu espaço no mundo literário. Sentes que, cada vez mais, este é um mundo de mulheres?
Embora ainda haja algum preconceito quanto aos livros escritos por mulheres, já não existe tanto a necessidade de nos escondermos atrás de um nome masculino. No entanto, em géneros literários como a fantasia ou thrillers, existe ainda essa tendência que, espero, vá desaparecendo cada vez mais.
Qual a tua relação com a leitura e qual o papel que teve durante a tua infância e adolescência?
Sempre gostei de ler. Quando era pequena, os meus pais tinham o hábito de me lerem histórias e as minhas avós de as inventarem, para eu adormecer. Conforme comecei a crescer, lembro-me de me comprarem sempre livros de acordo com a minha idade de preferências, primeiro mais simples, depois passando para algumas bandas desenhadas e então livros infantojuvenis de fantasia, maioritariamente.
Sentes que os livros são fundamentais para a nossa construção e formação enquanto seres humanos?
Embora não lesse tanto como atualmente, livros nunca me faltaram conforme ia crescendo, e acho que isso é importante para a construção do nosso pensamento, da nossa criatividade e formas de argumentação. Além de nos permitirem viajar para outros mundos e outras vidas, podem ser aliados perfeitos numa fase em que estamos ainda a decidir quem vamos ser e a criar a nossa personalidade.
Como é que começou o gosto pela literatura e pela escrita?
Tenho livros desde que me recordo, e sempre gostei de ler. O gosto pela escrita começou quando estava no meu oitavo ano, altura em que descobri que era comum escrever-se fanfics (ou ficção de fãs) acerca de histórias já existentes. Decidi experimentar, e criei a minha primeira história a partir de uma série de televisão, inserindo uma nova personagem e misturando um novo enredo. A escrita foi um bichinho que foi crescendo em mim e daí até passar a escrever originais foram poucos meses. Na altura, consumia muitas histórias de fantasia, o que de certa forma influenciou também o meu estilo de escrita e levou à criação da saga de fantasia infantojuvenil “A Defensora do Oculto”, que começará este ano a ser reeditada pela Edições Velha Lenda. Com o passar dos anos, a mudança de mentalidade e de gostos, voltei-me para os romances e quis mostrar sempre mulheres fortes e um pouco do nosso país através das minhas histórias. Assim, lancei no ano passado o romance Young Adult “Até Onde as Ondas Nos Levarem”, passado em Peniche, e também o New Adult “Amor na Porta da Frente”, cuja história se desenrola entre a Avenida da Liberdade, em Lisboa, e uma aldeia chamada Luadas no centro do país. Este ano, em maio, será lançado um terceiro romance, também com personagens nacionais que desta vez irão numa roadtrip por Espanha, uma viagem com muita comédia, amor e algum picante à mistura.
Embora ainda haja algum preconceito quanto aos livros escritos por mulheres, já não existe tanto a necessidade de nos escondermos atrás de um nome masculino
Em todos os teus livros a personagem principal é sempre uma mulher. Porquê?
Sempre acreditei em defender o poder das mulheres e aquilo que podemos fazer, por isso, sempre que tenho a ideia de uma nova história, sei que a quero contar do ponto de vista de uma mulher, tendo-a como personagem principal. As personagens principais que crio são mulheres reais, com todas as suas qualidades e defeitos, como todas temos, e também sonhos e ambições. Uma das coisas que sempre me fez confusão na literatura foi ver as mulheres descritas como seres domáveis e dependentes dos homens, que lhes podiam fazer de tudo e no fim elas simplesmente aceitariam o “felizes para sempre” porque não conseguiam respirar sem um homem que, analisando bem, nunca foi bom para elas. Relações tóxicas dão um bom entretenimento, desde que o leitor esteja ciente de que não é nada mais do que isso, mas não é essa a ideia que quero passar das mulheres. Tento passar o oposto com os meus livros, apresentando mulheres independentes que sabem os seus valores, que amam, que choram e que entendem o valor do perdão quando este é merecido. O tipo de mulheres que quero que as raparigas de hoje leiam e desejem ser, com força e determinação para superar obstáculos, com o entendimento de que a vida não é fácil e que caímos para nos voltarmos a levantar.
Enquanto jovem mulher e escritora, consideras fulcral o consumo de literatura feita por mulheres e sobre mulheres?
Sem dúvida. E cada vez mais tenho vindo a sentir esta entreajuda entre autoras, seja através de dicas ou mesmo de partilha dos nossos trabalhos. Sinto que as barreiras entre as várias editoras nacionais são completamente ultrapassadas quando falamos com outras autoras que nos estendem a mão e que apoiam o nosso caminho. A verdade é que não é fácil ser-se um novo nome na literatura portuguesa, temos um mercado muito fechado nesse aspeto, e essa dificuldade triplica quando somos mulheres. Mas acredito que aos poucos o mercado vá mudando, como tem começado já a acontecer, dando-nos oportunidade de mostrar o nosso valor.
Ao enquadrar-se nos géneros literários Young Adult e New Adult, qual a tua maior preocupação durante o processo de construção das tuas personagens? E que tipo de mensagens e lições pretendes passar aos teus leitores?
A minha maior preocupação é construir personagens reais, quer as personagens principais como as personagens secundárias. Há mil e uma outras coisas em que temos de pensar, como certas expressões que podemos ou não utilizar, porque, vivendo na época do “politicamente correto”, é muito fácil ofender alguém e há que ter em mente que a nossa história será lida por pessoas com as mais variadas experiências e formas de pensamento, pelo que há que ter algum cuidado no que dizemos e como o dizemos. É uma preocupação minha que os meus leitores se sintam representados e se revejam a eles próprios nas personagens.
Tento ser o mais fiel possível à forma de pensar, falar e agir das minhas personagens, tendo em conta as suas idades, origens e ideologias. Nunca gostei de ler um livro em que um adolescente usa palavras caras como se tivesse 80 anos ou pertencesse à família real de Inglaterra, porque não é algo que aconteça no dia a dia.
A verdade é que não é fácil ser-se um novo nome na literatura portuguesa e essa dificuldade triplica quando somos mulheres
Os teus livros – que variam entre o romance e a literatura fantástica - incidem sobre temáticas que, durante muitos anos, foram negligenciadas pelo mercado português. Porque motivo é que achas que isso se verificou?
Acho que o nosso mercado ainda tem muito por onde evoluir, mas surgem cada vez mais novos autores com histórias que abordam as mais variadas temáticas, oferecendo uma maior variedade de livros aos leitores portugueses. Somos um país que tem receio de abrir os braços a um autor desconhecido e prefere apostar todas as suas fichas na reedição de clássicos ou em autores já com provas dadas. Felizmente têm aparecido cada vez mais editoras nacionais focadas em apostar em autores nacionais, como é o caso da Edições Velha Lenda, dando-nos uma oportunidade de mostrar que existem histórias contemporâneas de qualidade capazes de conquistar os nossos leitores.
Somos um país que tem receio de abrir os braços a um autor desconhecido e prefere apostar todas as suas fichas na reedição de clássicos ou em autores já com provas dadas
Um inquérito do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa revelou que os jovens portugueses leem cada vez menos. Como achas que se pode contrariar esta tendência?
No nosso país, no geral, lê-se pouco. Se os pais não lerem, não passam esse hábito aos filhos, e é uma bola de neve. Uma das coisas que mais prazer me deu foi fazer apresentações em escolas, com crianças do sexto ao nono ano, e lembro-me de uma das crianças me dizer que não tinha ideia que os livros podiam “ser fixes”. A verdade é que sim, podem ser fixes, desde que os jovens tenham acesso a histórias próprias para as suas idades sobre temas que lhes interessem, para que comecem a ganhar o gosto pela literatura. Um jovem não tem de começar a gostar de ler através de Saramago ou Eça de Queirós, pelo contrário, deve começar por livros que lhe apelem para depois ir evoluindo e poder desfrutar dos clássicos se for esse o seu desejo. Este aconselhamento deverá passar não só pelos professores, como também pelos pais ou mesmo as bibliotecas municipais que, modernizando o catálogo de livros disponíveis, devem conseguir aconselhar a cada pessoa um livro que vá ao encontro dos seus gostos.
Acreditas que a solução está em apostar numa maior diversidade dos géneros literários de forma a cativar os jovens de hoje em dia?
Sem dúvida. Cativar os jovens através de géneros literários que sejam interessantes para eles é o caminho certo, desde fantasia a romance. Por vezes, os jovens ficam intimidados com o tamanho das obras e, nesses casos, bandas desenhadas podem ser uma boa solução.
Um jovem não tem de começar a gostar de ler através de Saramago ou Eça de Queirós, pelo contrário
Durante muitos anos o talento e a versatilidade das autoras femininas foram postos em causa, geralmente associadas a géneros literários considerados menores – como os romances e a literatura light – ou acusadas de se debruçarem sobre os mesmos temas. Consideras que, nos dias que correm, a literatura produzida por mulheres é levada a sério e valorizada?
Considero que Portugal continua a ser um mercado ainda muito elitista e agarrado ao passado. E se é verdade que, tendencialmente, há mais mulheres a escrever romances e literatura light, também é verdade que são essas as obras literárias que têm a capacidade de cativar novos leitores que não têm o hábito de ler. Hoje em dia, um livro compete diretamente com uma série da Netflix ou com um podcast, com conteúdos rápidos e de fácil consumo, por isso há que oferecer livros capazes de cativar e entreter, levando o leitor a preferir desfrutar de umas páginas antes de ir dormir do que dois episódios da série da moda. Existem vários tipos de leitores – ou de potenciais leitores – , e é importante que para todos existam ofertas que vão ao encontro do que procura. Acho que, nos dias que correm, as mulheres estão a ganhar terreno, a serem mais valorizadas e procuradas.
Na tua opinião, o que é que distingue um bom livro de um mau livro?
Para mim, um bom livro é aquele que me agarra de início, ou por ter uma escrita cativante ou por oferecer uma história que me fomente logo curiosidade de saber mais. Leio tanto clássicos como livros mais light e o importante, para mim, é que me sinta impelida a continuar a ler. Claro que existem coisas que para mim tornam um livro num mau livro, como erros ortográficos ou demasiadas incoerências, mas, a nível de história, há que ter em mente que todos temos gostos diferentes e que um livro que não funcione para mim, pode perfeitamente funcionar para quem o ler a seguir.
Acho que, nos dias que correm, as mulheres estão a ganhar terreno, a serem mais valorizadas e procuradas
O que é que a literatura escrita por mulheres, e sobre mulheres, pode ensinar aos homens?
A literatura escrita por e sobre mulheres pode ensinar muito aos homens sobre as experiências, perspetivas, e desafios que enfrentamos. Pode ajudá-los a compreender os desafios que as mulheres enfrentam em áreas como o trabalho, relações, e a sociedade como um todo. Além disso, potencia o desenvolvimento de empatia e compaixão para com as mulheres. Ao experimentar as emoções e perspetivas das personagens femininas, os homens podem adquirir uma compreensão mais profunda sobre os nossos pensamentos e lutas diárias. Depois existe, também, a questão dos estereótipos e preconceitos, uma vez que a literatura pode desafiar as noções pré-concebidas dos homens sobre as mulheres e ajudá-los a reconhecer e superar os seus próprios preconceitos. Ao expor os homens às injustiças enfrentadas pelas mulheres, a literatura pode motivá-los a tomar medidas e a trabalhar para uma sociedade mais igualitária.
A literatura pode desafiar as noções pré-concebidas dos homens sobre as mulheres e ajudá-los a reconhecer e superar os seus próprios preconceitos
Sentes que, em pleno século XXI, as mulheres têm a divulgação e reconhecimento que merecem no panorama literário nacional e internacional?
Penso que estamos, aos poucos, a conquistar o nosso lugar. No panorama literário internacional há nomes cada vez mais sonantes, desde o romance à fantasia ou mesmo ao thriller, como acontece com autoras como a Colleen Hoover, a Sarah J. Maas ou a Cara Hunter, já para não falar do fenómeno Harry Potter, que além de serem bastante reconhecidas lá fora, são autoras que os leitores portugueses abraçam cada vez mais. No que diz respeito ao nosso mercado, acho que temos tido uma evolução lenta, mas que se mostra constante. A Sandra Carvalho é um excelente exemplo de um nome sonante da fantasia nacional, um estilo ainda pouco apreciado no nosso país, e a M. G. Ferrey, que lançou o primeiro livro de uma saga de fantasia em 2021, conseguiu encher FNACs e sessões de autógrafos. A editora pela qual publico, por exemplo, este ano tem no seu catálogo a aposta em três novas autoras desconhecidas – a Sofia Wolf, a Carolina Cruz e a Clara Novo – o que mostra que existe uma forte aposta em livros escritos por mulheres. Mas é um trabalho contínuo que tem de ser feito, para mostrar que livros escritos por mulheres merecem ser reconhecidos e têm toda a qualidade.
É urgente que as mulheres tenham cada vez mais lugar de destaque dentro e fora dos livros e que marquem pela diferença?
Sem dúvida. Dentro dos livros, fora dos livros e em todas as outras áreas da nossa sociedade.
Comentários