"Vivemos num sistema global de alimentação. Vivemos, também, numa sociedade global de informação. Raro é o dia em que não somos alertados pela comunicação social para fraudes alimentares ou doenças provocadas por alimentos contaminados". A leitura deste parágrafo, retirado do prólogo do livro de Susete Estrela, “Sabe o que anda a comer?”, deixa-nos alertas para o que podemos esperar num futuro próximo.

Um livro que faz a apologia do conhecimento e da diferença entre este e a mera informação, vincando uma mensagem: enquanto consumidores temos uma responsabilidade por exercitar - a nossa responsabilidade individual. O que Susete Estrela nos diz é que temos de exercer o nosso poder e para o fazermos temos de conhecer.

Como tal, “Sabe o que anda a comer?” é um exercício de aproximação a esse conhecimento, partindo do geral para o particular. A autora leva-nos do sistema global de alimentação e dos mecanismos criados para o gerir, até à segurança alimentar dentro dos nossos lares onde, por exemplo, as boas práticas na refrigeração dos alimentos podem evitar distúrbios na nossa saúde.

“Num mundo em que se diz que devemos produzir mais, devemos sim educar para evitar desperdício”
Susete Estrela

Isto numa abordagem que não esquece todo o percurso que nos trouxe até ao presente. Da “comida de mãe” aos infinitos lineares do grande consumo, onde a comida tem um rosto, o da embalagem e dos rótulos. O que se perdeu e ganhou pelo caminho com a tecnologia alimentar, a indústria e agricultura inteligentes, os laboratórios que integram o sistema alimentar?

Algumas das respostas temo-las, aqui, na reprodução da conversa que mantivemos com Susete Estrela. Uma troca de impressões que navega, sempre, à vista deste seu primeiro livro e que não esquece a frase sublinhada pela autora logo na abertura da obra: “A única coisa que nos faz mal é a falta de conhecimento”.

A Susete nasceu numa pequena aldeia na região Oeste, estudou no estrangeiro e trabalha hoje fora do país. Uma verdadeira cidadã do mundo…

Sou filha de agricultores. Em casa, numa aldeia do concelho de Caldas da Rainha, a prioridade era estudar, com consciência que a vida de agricultor era, e ainda é, difícil. Os meus pais queriam dar-me um estatuto social, porque ainda hoje, o agricultor socialmente não tem esse estatuto na sociedade.

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Tal não invalidou que a mensagem fosse sempre a seguinte: os trabalhos de casa eram prioridade, mas assim que os terminasse sabia que havia muitas tarefas para serem feitas no campo. Tal como todas as pessoas da minha aldeia, aprendi a conduzir um trator antes de ter carta de condução, era o normal.

Sabia que, por exemplo, nas férias da Páscoa tinha que apanhar lenha ou preparar o terreno para a apanha da fruta durante o verão. Não lhe vou dizer que gostava, mas o meu pai dizia-me: “podes ter todos os diplomas que quiseres, mas antes disso vais aprender a produzir todos os alimentos que vais comer”. Trabalhar no campo é muito duro e os agricultores deveriam ser mais bem pagos.

Independentemente do tipo de agricultura que praticam, todos os agricultores, licenciados ou não, têm de ser bons agrónomos, bons ecologistas, excelentes meteorologistas, mestres em economia e, acima de tudo, precisam de ser muito optimistas e resistentes. Excerto do livro `Sabe o que anda a comer?`

Entretanto chega o momento das grandes decisões académicas e envereda pela engenharia alimentar e hoje vamos encontrá-la no Dubai. Como se faz este caminho?

Poderia ter optado pelo curso de enfermagem, mas entrei em Engenharia Alimentar na Universidade do Algarve e, ainda bem, porque tinha descoberto que não gostava muito de sangue [risos]. Quando terminei os estudos, trabalhei um ano numa empresa no Porto, em matadouros. Fiz, também, auditorias a hipermercados, consultoria e formação. No fundo corri profissionalmente todo o país, incluindo as ilhas.

Entretanto o meu pai adoeceu com gravidade, despedi-me e regressei à minha aldeia. No seguimento constituí a minha empresa de consultoria. Mais tarde abri outra, fornecia para padarias e pastelarias produtos com a minha própria marca.

No sentido de fazer crescer a empresa, mas também ter crescimento internacional, enveredei por um curso de Gestão de Vendas. Nas várias feiras onde participava era inquirida para fazer consultoria no estrangeiro. Acabei por aceitar desafios internacionais, indo ao Dubai. Ficava naquele país da Península Arábica três semanas, depois seis, depois oito. Pensei que devia ir trabalhar e não gastar dinheiro num MBA. Logo, no Dubai, tinha a oportunidade de adquirir experiência, em ambiente de multiculturalidade, sou mediadora entre chineses, indianos. No meu leque diverso de atividades profissionais faltava-me o food servisse, a hotelaria de luxo. Por exemplo, não percebia porque os chefes de cozinha preferiam carne neozelandesa e não portuguesa.

Encontrou resposta para a questão de vermos os nossos produtos preteridos?

Sim. Em países que já andam neste negócio da internacionalização há muito tempo, existe um grande apoio do estado nestas áreas, há uma marca internacional. Há, ainda, muito turismo, os chefes de cozinha foram fazendo formações no estrangeiro, como por exemplo em França, onde visitam vinhas, em Espanha, com visita a produtores de presunto. Nós, só agora, estamos a começar a atrair curiosidade pelos nossos produtos. Talvez dentro de cinco a dez anos, cozinheiros de outras nacionalidades queiram apresentar novos produtos e comecem a optar pelos nossos. Por exemplo, o azeite português já chegou ao Dubai, mas em pequenas quantidades.

Só na Europa, entre 2002 e 2012, triplicou a procura destes produtos [biológicos]. Um outro exemplo incrível é o caso da agricultura biológica na Índia, onde o movimento dos agricultores biológicos quadruplicou entre 2014 e 2017. Excerto do livro `Sabe o que anda a comer?`

Historicamente somos um povo que sai e contacta com outras culturas, mas, neste, como noutros aspetos, falta-nos afirmação. Concorda?

Sim, concordo. Somos reconhecidos na Ásia e Médio Oriente, as pessoas que nos visitam afirmam que temos excelente gastronomia e muito acessível economicamente, mas ficam admiradas por ninguém nos conhecer. A marca gastronómica de Portugal não tem a força de congéneres do Sul da Europa como a Espanha, a França ou a Itália.

Mas Portugal tem representações na área do produto alimentar em várias feiras. Falta alguma coisa nessas representações?

Sim, marcamos presença com stands pequenos. A Gulfood é a maior feira alimentar, anual, do mundo. Há uma outra bianual em Colónia, na Alemanha. Nestes dois certames fui ver as empresas representadas, que vão com apoio governamental, ou a título individual. O stand português é pequeno. Encontrar 12 empresa não me fascina. Temos uma dimensão difícil de gerir, algumas empresas são grandes para o mercado nacional, mas depois são pequenas para o mercado internacional. Passa também pelo posicionamento. Por exemplo, uma empresa quer ser nicho, vai exportar só um produto? Muitas vezes os custos de um único produto são elevados em termos de exportação, principalmente se for em pequenas quantidades.

Os chefes de cozinha podem ser promotores dessa mudança?

A nacionalidade dos chefes também tem grande influência nestas questões, pois tendem a elaborar menus com os produtos dos países de origem ou de países onde já estiveram, reconhecendo os produtos como de qualidade. Veja, se eu tentar convencer um chefe de cozinha gaulês a usar manteiga dos Açores ele pergunta-me, espantado, porque vai usar essa se a dele, francesa, é reconhecida como sendo a melhor.

O chefe de cozinha australiano vai dizer-me que as melhores manteigas são as da Austrália ou as da Nova Zelândia.

Depois há a questão logística, se quiser uma carne de raça bovina Mirandesa tenho que encontrar alguém que faça a exportação nas devidas condições de refrigeração e não é fácil.

“Num mundo em que se diz que devemos produzir mais, devemos sim educar para evitar desperdício”
Susete Estrela a Engenheira Alimentar autora do livro "Sabe o que anda a comer?"

O Dubai, onde opero, tem um excelente sistema de registo, nenhum alimento entra no país sem um código de barras nacional. É registado e passa pelo laboratório onde fica guardada uma amostra, o pressuposto não é só confiança, mas que todos são sujeitos a controlo.

Neste aspeto, o Dubai quer sempre estar no topo. Quando elabora legislação rege-se pelo Codex Alimentarius [Código dos Alimentos, guia internacional para a higiene e qualidade dos alimentos, nutrição, normas microbiológicas, aditivos alimentares, etc.]. Se não encontrarem recomendação seguem as indicações da Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos [EFSA].

Quando passeio pelos corredores de um supermercado e observo os carrinhos de compras, percebo que a maioria das pessoas se socorre dos alimentos mais baratos, que são normalmente os mais industrializados. Excerto do livro ´Sabe o que anda a comer?"

A Susete acaba de me dar o mote para introduzir a questão da segurança alimentar em Portugal. Vivemos num país a dois tempos, com empresas a seguir à risca as obrigações e outras a arriscar, estando em causa a saúde pública. Estou errado?

O governo não está numa posição fácil. É necessário melhorar continuamente e ministrar formação. Mas, depois, o fecho compulsivo da empresa não cumpridora coloca as pessoas no desemprego. Há uma fronteira muito sensível entre questões sociais e de Saúde Pública. No livro que agora lancei, “Sabe o que anda a comer”, refiro situações em que o consumidor pode estar exposto a perigos alimentares.

O mais importante é estar informado sobre o que é prioritário e o acessório. As empresas sabem que podem ser fiscalizadas pela ASAE [Autoridades de Segurança Alimentar e Económica], contratam empresas privadas para lhes fazerem um checklist elementar e pagam 10 ou 15 euros. Mas é um pró-forma. Eu nunca trabalhei assim, tive sempre como intenção ajudar os clientes a melhorarem. Não faço dez auditorias num só dia, quanto muito, três. Verifico e explico os porquês. Mas muitas pessoas, já com uma certa idade, sempre fizeram de uma determinada maneira e não querem mudar.

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créditos: Diana Oborska

Toca na questão da informação para a formação. É uma questão transversal a todo o seu livro…

…é sempre mais fácil criticar do que nos sentarmos durante uma ou duas semanas, lermos o livro e percebermos como opera à escala local, nacional e internacional toda esta questão da segurança alimentar.

Hoje vivemos num mundo onde todos os passos na indústria são pensados, planeados e executados milimetricamente. Este controlo tornou o mundo mais ou menos seguro, quando comparado com o mundo antes das prateleiras do grande consumo?

Não lhe consigo dar uma resposta de sim ou não. Do ponto de vista microbiológico temos mais critérios de segurança e controlos alimentares [os produtos têm mais tempo de vida]. Em termos químicos, vamos encontrar muitos antibióticos nos alimentos, o que nos deixa alertas de riscos.

Hoje, o agricultor tem de ter conhecimento para produzir carne que não chegue ao consumidor contaminada e com antibióticos. No que respeita à segurança alimentar temos mais cuidado, mas para produzir com mais tempo de vida e mais barato surgiram problemas novos. Com a questão da ganância abriu-se outro capítulo, a fraude alimentar.

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Pode explicar o que refere como fraude alimentar?

O próprio Codex Alimentarius refere recomendações sobre fraude e integridade alimentar. É importante distinguir. Podemos, por exemplo, ter dois produtores de queijo de cabra. Um usa leite de cabra. O outro coloca no rótulo que estamos perante um queijo de cabra, mas usa leite de vaca. Até tal ser descoberto em laboratório esse queijo é servido às pessoas. É fraude.

Um outro exemplo prende-se com o azeite com óleo misturado; ou rotular um produto com um ingrediente que na realidade não é parte deste. Por ações de fiscalização, mundialmente e diariamente são retirados produtos do mercado. Se a ASAE resolvesse juntar todos os produtos que estão no mercado e fazer uma contra-análise certamente iria verificar que existem alimentos mal rotulados. Esta é uma responsabilidade do embalador/provedor. Alguns intencionalmente não declaram, outros não o fazem por desconhecimento da legislação.

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créditos: Del Barrett

Em seu entender, para o leigo, os rótulos são de fácil leitura e apreensão?

Não. Tenho amigos que me perguntam como devem ler e o que devem ler nos rótulos. Por exemplo, no que respeita aos alergénios, temos 14 que são de declaração obrigatória na UE [União Europeia]. Muitos outros, também causando alergias, em menor número de casos, não merecem destaque nas embalagens e os consumidores desconhecem.

Se eu estiver a fazer um bolo de noz com, por exemplo farinha de arroz, e o meu fornecedor me diz que o fruto seco pode estar contaminado com farinha de trigo, devido aos processos de produção dessa empresa, então tenho de declarar, no meu rótulo, que pode conter glúten. A presença pode ser microscópica, mas num celíaco pode ter um grande impacto.

Alimentar de forma saudável e sustentável 9,8 mil milhões de pessoas em 2050, com alimentos de verdade, em vez de produtos alimentares altamente industrializados, será talvez o próximo grande desafio do nosso planeta. Excerto do livro ´Sabe o que anda a comer?`

No seu livro refere a necessidade de proximidade ao produto e dá-nos um exemplo, o do impacto que determinadas modas no consumo alimentar podem ter na população. Na Colômbia, país produtor de quinoa, este grão era de baixo custo para a população. Agora, com a procura internacional, o valor disparou. Quer comentar?

Estas modas chegam-nos sempre através dos Estados Unidos. Sabem vender muito bem o que é deles. Um nutricionista norte-americano estudou quais eram os superalimentos à escala mundial. A quinoa é, de facto, um deles. Tem uma grande vantagem, é muito boa para a saúde dos pulmões, órgão muito importante para as populações das montanhas colombianas. Um exemplo de alimento perfeito no local onde é necessário.

Outro exemplo, a melancia, um fruto de verão, pois é nessa estação do ano que precisamos de alimentos frescos, que contenham muita água. O Universo é perfeito e nós, com a nossa inteligência, queremos ter tudo e em abundância. Alteramos a ordem do Universo. Não acho correto que os colombianos paguem mais por um alimento na moda. As pessoas estão muito viradas para estes alimentos, têm de perceber que em Portugal existem outros superalimentos e não precisamos de os importar.

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Ainda do seu livro, retiramos uma outra ideia, a do elevado desperdício alimentar. O mundo esbanja alimentos?

Sim, conta o dinheiro. Num mundo em que se diz que devemos produzir mais, devemos sim educar para evitar desperdício. Isto também passa pela segurança alimentar. Na Índia, entre o produtor e o armazém, os alimentos morrem pelo caminho, apodrecem devido às longas distâncias.

Na época em que eu trabalhava no campo, o tomate era apanhado até às onze da manhã, pois cada minuto de sol reduz drasticamente o tempo de prateleira do produto. Atualmente, o camião entra na quinta, o tomate é colocado em postos de refrigeração e transportado também refrigerado. Isto permite exportar para longas distâncias e a proximidade ao produto alarga-se.

Queremos disponibilidade e bens acessíveis a todo o momento. Junta-se que os queremos baratos. As indústrias querem produzir em grande escala, mas os recursos do planeta são finitos. Este não é um caminho para a desgraça?

A responsabilidade é nossa, em dezembro apetece-me comer morangos, mas essa não é época de morangos, não devia querê-los. Como o supermercado sabe que tem clientes para os morangos em dezembro vai buscar a fruta a outra parte do mundo. Claro que isso tem um custo, uma pegada ecológica.

Quando pensamos no nosso lar e em quem nele habita, raramente nos lembramos que também os microrganismos fazem parte do ´agregado familiar´. Uma vez que não são visíveis, é comum que nos esqueçamos da sua presença. Excerto do livro `Sabe o que anda a comer?`

As margens são reduzidas, logo as empresas querem vender para as grandes superfícies para terem escala. Estas `espremem` as empresas que, por seu turno, são empregadoras e têm de produzir continuamente. Se não encontram os recursos localmente, vão buscá-los onde os há e isto tem um custo para a nossa saúde. E, atenção, não estou a falar de pesticidas.

A natureza é perfeita e nós desligámo-nos desta. Quem é do campo sabe que existe sazonalidade e devemos respeitá-la. As nossas bactérias intestinais estão preparadas para digerir os alimentos que temos nas proximidades. Existe biodinâmica e desligámo-nos dela.

Eu gosto muito de papaia, mas quando estou no Dubai sei que não é um fruto natural daquele país. Se me apetece algo mais doce, como tâmaras, um produto local.

O sushi é nos últimos anos muito consumido em Portugal, ou seja, uma confeção que inclui peixe cru. Também passámos a pedir carne malpassada, mesmo crua. São boas práticas alimentares?

Depende do sistema imunitário de cada um, somos livres de experimentar. Acho é que as pessoas estão enfadadas da própria vida e querem algo novo. As pessoas devem experimentar novos alimentos, mas não os tornar de consumo recorrente. Se eu quero comer um tártaro ou um ovo cozido a baixa temperatura parto do princípio que quem o confecionou o estudou e sabe que não constitui um perigo alimentar.

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créditos: Markus Spiske

Se eu estou com gripe e não me ando a alimentar bem há algumas semanas, não vou comer um bife tártaro. O conhecimento de segurança alimentar dá-nos esta perceção. Há alturas em que não nos podemos sujeitar a determinados riscos. Por exemplo, se estivermos a recuperar de uma cirurgia, se estiver grávida.

Por seu turno, os seres humanos contaminam naturalmente os alimentos durante a produção. Em certas situações é difícil fazer as pessoas entenderem o uso dos aventais, das toucas e como estes são fundamentais para prevenir contaminações nos alimentos. Prefiro até que as pessoas não usem luvas, fazem mau uso, e dá-lhes a sensação de falsa limpeza.

A Susete entra agora numa outra questão, a da manipulação dos alimentos. Somos exigentes com a embalagem e acondicionamento dos alimentos e depois nas nossas cozinhas somos menos exigentes na arrumação do frigorífico, higiene das facas e tábuas. Quais os maiores “crimes” que cometemos na cozinha e que são mais graves para nós?

Um que quero salientar é o desrespeito pela temperatura de refrigeração. Os frigoríficos nem sempre estão entre um e cinco graus Celcius o que favorece o desenvolvimento microbiano. Deixamos os alimentos entre os cinco e 65 ºC, temperaturas de perigo, sendo que os 37 ºC é um valor crítico. Por isso no verão existem mais toxinfeções alimentares, as bactérias e bolores multiplicam-se a temperaturas mais altas. Se deixarmos um iogurte ou leite fora do frigorífico à noite, na manhã seguinte vão estar estragados. Repare, de 20 em 20 minutos ocorre multiplicação bacteriana.

Manter os alimentos quentes durante muito tempo é outro erro cometido. O ideal é mantê-los no máximo duas horas, sempre a 65 ºC. Nas linhas de comida, refeitórios, self services, raramente os alimentos estão a 65 ºC. Já quando falamos em manter um alimento, que possa estar à temperatura ambiente, devemos apontar entre os 22 a 25 ºC.

Outro erro é a falta de controlo de temperatura no centro térmico do alimento. O peru de Natal é um exemplo, cozido no exterior e não tendo atingido no seu centro térmico a temperatura que garante a segurança alimentar. Outro exemplo prende-se com as salsichas que fazemos no churrasco. Colocamo-las na grelha ainda congeladas. Ficam queimadas à superfície e não cozinhadas no centro. Os bifes são menos problemáticos, as bactérias estão à superfície. Já nos hambúrgueres é mais complicado, as bactérias passam para o interior e podem não ser destruídas se a peça estiver mal passada.

Com frequência ouvimos falar de contaminação cruzada. O que é?

A contaminação cruzada também é muito comum e explica-se assim: usa-se a mesma faca para tudo, estou a cortar carne ou peixe com uma faca, alimentos naturalmente contaminados e depois passo a faca por água e uso-a para cortar o tomate. Não vejo as bactérias, mas elas estão lá, a água não é suficiente para as eliminar.

As tábuas de corte também vão ficando com fissuras e são um meio de contaminação porque as bactérias ficam alojadas nestas frestas. Com a carne e peixe não há problema, porque são posteriormente cozinhados, mas as bactérias passaram para a salada que é consumida em cru.

A limpeza e desinfeção são muito importantes. Se não quero desinfetar a minha tábua de corte com álcool a 70%, então lavo-a na máquina.

Durante algum tempo, criou-se o mito de que era proibido cozinhar com colheres de pau. Na verdade, esta proibição não passa de um mal-entendido, pois o que as regras de higiene e segurança alimentar pedem é que as colheres, de pau ou de plástico, estejam limpas e em excelente estado de conservação. Excerto do livro ´Sabe o que anda a comer?`

Ou seja, a cozinha é um campo rico para contaminações. Até mesmo em objetos sobre os quais pouco refletimos.

Exatamente. Outra questão crítica relaciona-se com os panos de cozinha e esponjas que no fundo são espalhadores de bactérias. Há uns anos a Universidade Católica do Porto fez um estudo e concluiu que as zonas de lava louças e bancadas de cozinha estão mais contaminadas que o tampo das sanitas, porque onde há água, restos de alimentos, temperatura e pH ótimos há crescimento microbiano.

A propósito do que temos estado a falar, os ingleses usam a regra dos quatro C: Cooking (cozinhar nos 75 ºC, dependendo do alimento, e precisamos de termómetro de perfuração de alimentos), Chilling (refrigerar corretamente os alimentos, Cross-Contamination (contaminação cruzada) e o Cleaning (limpar/desinfetar).

E a tão mal vista colher de pau? A Susete não é muito castradora no uso deste utensílio.

Não sou, porque o que pretendemos dos utensílios é que eles não alberguem bactérias. Reconheço que a colher de pau é mais porosa que uma de silicone, é mais suscetível de reter microrganismos, mas se for nova, lisa, sem fissuras e, depois de lavada, for colocada a secar ao alto para não reter água, pode ser usada durante dois ou três meses. Se não estiver íntegra não pode ser usada.

É irónico, mas quando houve migração dos consumidores para a colher de silicone, estes adquiriam as mais baratas e até vinham com certificado. Contudo, derretiam e passávamos a ter contaminação química.

Ou seja, o que nos diz é que nós próprios podemos ter controlo nas nossas casas e evitar perigos alimentares.

Sem dúvida, por exemplo algumas pessoas não guardam os queijos no frigorífico, ou mesmo sobremesas à base de queijo, mas é da natureza dos lacticínios conterem Listeria e pode existir possibilidade de ela vir no leite que serviu de base ao queijo.

Estamos mais seguros face às bactérias mais antigas, como o Clostridium que encontrávamos nos enlatados. Estes são, atualmente, dos alimentos mais seguros.

Também já não consumimos leite de vaca cru, apesar de existir um movimento nos Estados Unidos que afirma que o leite cru cura a asma.  É contraditório à evolução do conhecimento. Então e a descoberta de Pasteur? Ou seja, curámo-nos de uns agentes patogénicos, mas passamos a ter outros. E não são em menor número.