Fotografias com gafanhotos vivos entre os dentes dos consumidores têm a particularidade de irritar Rui Nunes, presidente da Portugal Insect, associação que reúne oito empresas pioneiras neste setor em Portugal.
O consumo humano de insetos é assunto para se levar a sério, não fosse esta uma realidade apontada pela própria Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) como um caminho futuro na dieta alimentar de um mundo com 9 mil milhões de seres humanos.
Por isso, para Rui Nunes, a mensagem associada à ingestão de insetos tem de ser fundamentada, apelativa, sustentada em produtos capazes de conquistar o palato do consumidor, como barras energéticas e bolachas que incorporem, por exemplo, grilos, larva da farinha, e mesmo gafanhotos.
O presidente da Portugal Insect lamenta que neste âmbito vivamos numa “Europa a dois ritmos”. As autorizações para o consumo humano de insetos carecem, ainda, do selo de Bruxelas. Não obsta, porém, que alguns países do norte do continente se tenham antecipado, estando “ilegalmente” a produzir insetos para consumo humano.
A Portugal Insect é uma associação portuguesa que, curiosamente, tem a sua origem numa conversa fora de Portugal. Quer contar-nos?
Sim, na verdade os três impulsionadores da Associação [Entogreen, a Portugal Bugs e a Nutrix], onde me incluo, encontrámo-nos em Bruxelas em 2017, para uma reunião no âmbito de uma plataforma internacional, a International Platform of Insects for Food and Feed (IPIFF), de empresas ligadas à produção de insetos para a alimentação humana e animal. Na altura já percebíamos várias coisas, uma delas é que não estávamos a ser tão bem representados como queríamos no Parlamento Europeu. Estavam a acontecer coisas aí que não iam ao encontro dos nossos objetivos, enquanto país do sul da Europa.
Na altura ocorreu-nos, ´estamos aqui três empresas portuguesas, porque não nos juntarmos em Portugal e com a rede já criada?`. A pergunta teve uma resposta prática e aproximámo-nos de outras empresas do ramo. Criámos a Portugal Insect - Associação Portuguesa de Produtores e Transformadores de Insetos para pôr isto a mexer, a funcionar, ao encontro daquilo que a própria Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) aponta há anos. Em síntese, somos 7 mil milhões de seres humanos, passaremos a ser 9 mil milhões dentro de 30 anos. De onde vem a proteína para estes 2 mil milhões a mais? Os insetos poderão ser uma fonte proteica.
Nascemos com sete associados, hoje somos oito, ligados à produção e transformação de insetos para alimentação humana e animal, mas também entidades do meio científico e académico. No caso da minha empresa, a Entogreen, esta só produz para alimentação animal.
Somos 7 mil milhões de seres humanos, passaremos a ser 9 mil milhões dentro de 30 anos. De onde vem a proteína para estes 2 mil milhões a mais? Os insetos poderão ser uma fonte proteica.
Referiu há pouco que não estávamos bem representados em Bruxelas no que toca à questão da produção e consumo de insetos. Quer detalhar?
Somos pequenas empresas, ou startups que estão a produzir a investigar em garagens, caves, embora algumas empresas já tenham locais de produção implantados. Contudo, grosso modo, são produções experimentais, com produtos experimentais. Como sabe em Portugal não podemos usar insetos para alimentação humana. E isto passa-se porque um regulamento europeu [2015/2283] o impede. Na prática, tem de ser criado um dossier de segurança alimentar para cada produto que não tenha um histórico de consumo na Europa. Este tem de ser submetido à Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), que efetua uma avaliação e adota um parecer científico sobre a segurança do novo alimento. Só assim, com o ´carimbo` que atesta a segurança o alimento pode integrar a alimentação humana.
Mas, repare, alguns países, de forma ilegal, já tinham a sua própria produção e mercado, essencialmente países do norte da Europa, nomeadamente a Holanda, a Finlândia, o Reino Unido, a Dinamarca, a Bélgica e a Áustria. Ora, do ponto de vista puramente legal, na legislação anterior, não podiam ter estes produtos no mercado. No entanto, quando a legislação alterou, em 2015, foi dito, `certo, há aqui países com produtos no mercado`. Desta forma, foi-lhes concedido um regime transitório, podendo comercializar os seus produtos até ser adotada uma decisão pela Comissão, na sequência da apresentação de pedido de autorização. Ou seja, os dossiers têm de estar submetidos até 31 de dezembro de 2019.
Isso acaba por prejudicar países terceiros sem esse histórico de produção.
Isto criou uma Europa a dois ritmos. A lei atual basicamente diz-nos: ´Não é permitido o consumo de produtos à base de insetos no sul da Europa, mas sim em cinco países no norte do continente`. Neste contexto, a Portugal Insect não se sente por isso representada pela associação europeia do setor, a IPIFF, preferindo trabalhar, a nível interno, com as autoridades portuguesas, com objetivos concretos, ligação entre consumidores, produtores, transformadores e instituições oficiais e a criação deste novo setor da economia nacional.
No atual contexto, que caminhos pretendem seguir?
Temos, aqui, dois cenários. O primeiro, num mundo perfeito, estes dossiers de segurança alimentar são submetidos e aprovados mais tarde ou mais cedo. Por exemplo, a utilização de uma espécie de grilo para consumo humano aprovada num país, imediatamente é aprovada nos outros. Desta forma, vamos aguardar. Um destes dossiers há de ser aprovado. Estamos a aguardar, já passaram dois anos desde que se apresentaram os dossiers. Deixa-nos a pergunta se quando submetidos seria mesmo para serem aprovados.
Um outro cenário, seria os restantes países prejudicados com a atual situação, atuarem no sentido de dar a volta ao cenário injusto que vivemos. Alguma forma havemos de encontrar com o legislador português.
Neste momento, o que acontece é que nem por um caminho, ou por outro, temos soluções.
Não obstante, alguns passos temos dado, como o congresso dos insetos comestíveis, na sua segunda edição. O facto de termos ao nosso lado a autoridade para a segurança alimentar que emite, em iniciativas pontuais, uma derrogação para podermos disponibilizar produtos à base de insetos, dando-os a provar aos consumidores. Agora, neste momento não é possível vender para consumo humano.
A Portugal Insect não se sente por isso representada pela associação europeia do setor, a IPIFF, preferindo trabalhar, a nível interno, com as autoridades portuguesas.
Havendo empresas em Portugal a produzir, não encontram na exportação para fora da União Europeia canais viáveis?
De todo. São pequenos empreendedores que estão a preparar o futuro. Ou seja, nas suas explorações experimentais estão a preparar os produtos que o mercado irá permitir lançar dentro de um ou dois anos. Isto para que não fiquemos dependentes dos países que estão a produzir. Basicamente, o que não queremos é ficar atrás destes países.
Pegando na questão dos dossiers já entregues na União Europeia. Que insetos se perspetiva virem a ser brevemente introduzidos na alimentação humana?
Existe uma lista de espécies que foram identificadas como tendo a possibilidade para aprovação Comunitária, como o Tenebrio molitor [larva da farinha], Acheta domesticus [grilo doméstico], Gryllodes sigillatus [grilo tropical], entre outros.
Naturalmente, a sua utilização será feita em produtos de aceitação por parte dos consumidores, como barras energéticas, bolachas, insetos desidratados e condimentados. Inclusivamente a produção de pão com proteína de grilo.
Agora, o caminho não passa, certamente, por ligar a ingestão de insetos a imagens de um gafanhoto vivo entre os dentes de um consumidor.
Presumo que o trabalho das empresas e startups portuguesas que referiu seja multidisciplinar.
Temos empresas um pouco mais desenvolvidas na área do marketing, outras mesmo na própria produção. Quando falamos da produção de insetos estamos a falar de uma nova era na produção animal. Não são as vacas, os porcos, os frangos. Ao juntarmos a este rol outros animais, nomeadamente grilos, moscas, temos novos desafios. Para isso a Direção Geral de Agricultura e Veterinária (DGAV) também tem sido de extrema utilidade. Foi elaborado o “Manual de Boas Práticas na Produção Processamento e Utilização de Insetos na Alimentação Animal”. Extremamente útil para os produtores, porque tem a regulamentação toda reunida.
O caminho não passa, certamente, por ligar a ingestão de insetos a imagens de um gafanhoto vivo entre os dentes de um consumidor.
Fala na produção animal. Os consumidores estão hoje sensíveis à pegada ambiental associada à produção. Esta pegada é baixa comparando a produção de insetos à pecuária?
Estamos a falar de uma produção com uma pegada ecológica baixa. Basta pensar que os insetos são animais de sangue frio. Não têm de produzir calor. Só nisso, qualquer mamífero gasta uma grande parte do que come. Nesse caso, estamos a dar de comer aos animais para eles se manterem quentes. Um grilo precisa de comer, em média, 1,5 quilos de alimento para se transformar em um quilo de carne, enquanto que a vaca precisa de 10 quilos para obtermos o mesmo quilo.
No que toca ao consumo de insetos, há também aqui uma questão cultural e psicológica que tem de ser ultrapassada. Concorda?
Posso falar por mim. Em casa tenho duas crianças que olham para os insetos da mesma forma que qualquer português olha para um caracol. Não foi preciso nenhuma educação especial, naturalmente entrou na alimentação dos meus filhos. Basta pensarmos que um sushi demorou muito tempo a entrar na alimentação dos portugueses. Hoje temos um restaurante de sushi em cada rua. Há uns anos, a ingestão de peixe cru era encarada com repulsa. Hoje, quer adultos quer crianças já são capazes de o comer. Ou seja, atualmente estamos mais aptos a assimilar as novidades. É preciso é querer dar esse passo.
Em casa tenho duas crianças que olham para os insetos da mesma forma que qualquer português olha para um caracol. Não foi preciso nenhuma educação especial, naturalmente entrou na alimentação dos meus filhos.
Há um número grande de espécies de insetos aptas ao consumo humano?
Se formos ver uma publicação da FAO de 2013, esta já refere cerca de duas mil espécies de insetos comestíveis. Se compararmos com os mamíferos comestíveis, então sou capaz de passar anos a comer insetos diferentes, sempre com sabores diferentes. É claro que uma coisa é estes insetos virem da natureza, outra é produzir em cativeiro e, nesse caso, não são todos interessantes, porque não têm um processo de produção conhecido, ou fácil. Aqui também há que escolher as espécies mais interessantes pelo seu sabor, aporte proteico, mas também as mais eficientes para produção em larga escala.
Temos, aqui, um desafio, o de criarmos novas espécies para produção de larga escala. Todas as escolas de produção animal deviam de estar agora a pensar nisto. Se virmos bem, há poucos anos desenvolvemos novas formas de produção de aquacultura, com novos peixes em cativeiro. Serve-nos de inspiração.
Vamos supor que Bruxelas aprova os dossiers já entregues e que a legislação se torna extensível a todos os países da UE. Teremos capacidade imediata para entrar no mercado?
Sinto que neste momento corremos, se assim nos mantivermos, sérios riscos de sermos completamente esmagados. É isso que o lobby europeu está preparado para fazer. No fundo, dar a garantia aos países que mais cedo iniciaram este processo, para estarem suficientemente maduros para invadirem a Europa, sem que os outros tenham capacidade de resposta.
O que estamos a tentar fazer, enquanto associação portuguesa é, juntos, conseguirmos o desenvolvimento tecnológico, para estarmos a par dessas outras empresas quando o mercado abrir. É claro que num mercado aberto vingarão os mais fortes. Espero que também aí estejamos.
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