Comecemos por contar uma história, a da galinha Ian. Num filme promocional vemos o galináceo na companhia de uma multidão de pares. Uma imagem comum num mundo de alimentação massificada. No momento seguinte, alguém desenha uma galinha no papel e junta ao esboço um grupo de células. A voz off informa-nos: “O Ian, tem dentro de si um número ilimitado de outros Ians”. Traduzindo, um número exponencial de células desta galinha. Vemo-las reproduzidas ao infinito em papel. É aqui que começa o grande contributo de Ian para esta história. Os investigadores retiram-lhe uma pena. Esta vai para laboratório e é-lhe extraído tecido. Este contém células, muitas. Os seus constituintes são estudados, isolados. Há tecnologia de ponta. No plano seguinte, um homem frige um nugget de carne de frango. Carne proveniente de Ian. Mas a galinha não está na mesa, passeia-se entre os comensais. O que estes ingerem é a carne cultivada a partir das células do animal.
O que o vídeo nos entrega (pode ser visionado aqui) não são imagens do futuro. É o presente, denomina-se “carne cultivada ou carne celular, o termo ainda está em aberto”, informa-nos Vítor Espírito Santo, o engenheiro biomédico português que em 2018 se mudou para o soalheiro Silicon Valley, na Califórnia, Estados Unidos da América, para integrar um projeto de carne desenvolvida em laboratório. O investigador luso integrou o projeto Clean Meat da empresa JUST Meat.
No encontro “Food Talks - Think, Talk & Act” que decorreu na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Vítor Espírito Santo apresentou aos portugueses a galinha Ian como exemplo de um processo de cultivo de carne em laboratório, procedimento que em 2019 entregará a alguns restaurantes asiáticos com estrela Michelin os primeiros nuggets de frango, com assinatura da JUST e que não conheceram no seu caminho até à cozinha uma exploração animal ou matadouro. Uma produção em pequeno número que, de acordo com o engenheiro biomédico poderá ganhar escala “dentro de dois a cinco anos”. Vamos por partes, compreendamos antes todo o processo, pela voz de Vítor Espírito Santo.
“Como engenheiro biomédico, a minha formação não é na área alimentar. Considero-me, antes, um engenheiro de tecidos e de órgãos”, sublinha o convidado para esta “Food Talks”, homem que encaminhou muita da sua investigação para a cultura celular, “sempre com o objetivo de produzir tecidos e órgãos”. Isto em ambiente laboratorial e com diferentes finalidades. Por exemplo, a “medicina regenerativa, nomeadamente osso e cartilagem, com a finalidade de responder a lesões desportivas, não com próteses que lá ficam [no corpo] e não se regeneram”. Vítor passa profissionalmente, mais tarde, por Oeiras, no Instituto de Biologia Experimental e Tecnologia. Ai gerando tecidos e órgãos em laboratório, neste caso diferentes tipos de cancro, com o intuito de desenvolver novos fármacos. “Esta experiência na área da cultura celular permitiu-me passar para a área alimentar, até porque muita da tecnologia utilizada para cultivar carne é muito semelhante”.
Em 2018, o cientista muda-se para a Califórnia, para a empresa JUST Meat para integrar uma equipa que faz, diariamente, uma pergunta: “Como transpor esta reprodução celular para gerar carne para consumo humano?”. Um processo já hoje, como vimos, exequível, embora ainda não fazível do ponto de vista económico. “Faz-se, mas é caro. Temos de chegar a uma distribuição de carne cultivada a um preço acessível para os consumidores e com qualidade”, salienta Vítor Espírito Santo. Uma premência em encontrar alternativas num mundo onde, estima a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), que a procura por carne deve aumentar em 70% até 2050.
O que é a carne?
Uma pergunta que obtém resposta por parte do engenheiro sediado nos Estados Unidos. “A carne é um pedaço de tecido de um animal, apto a ser consumido, essencialmente composto por músculo. Mas temos outros compostos que são importantes para o sabor e a qualidade da carne. Por exemplo células da gordura e do tecido conectivo”. Há, para além destas, carnes que não derivam das fontes atrás citadas, como as processadas, da charcutaria, ou o foie gras.
Uma diversidade que coloca os investigadores perante um desafio: “Dependendo do produto que queremos desenvolver, temos de escolher tipos de células diferentes para recriar tipos de carnes a que estamos habituados no consumo”.
Hoje em dia temos a produção massificada de carne, dominada por grandes empresas. E é, efetivamente, este, atualmente, o grande problema.
Vítor Espírito Santo não destitui este consumo de carne do seu contexto histórico, como também não o desassocia de problemas atuais, nomeadamente a sustentabilidade no planeta Terra.
“Quando pensamos na história do consumo de carne, esta é antiquíssima. Inicialmente, na Pré-História, caçávamos os animais. Tínhamos o instinto de procurar carne, algo que ainda está vincado na nossa sociedade desenvolvida. Obviamente, com o passar dos anos esse instinto reduziu-se. Na História humana, temos como etapa seguinte a criação dos animais. Este, um elemento cultural, também ligado às condições sociais da época. Um contexto que mudou com a modernização, o aumento populacional e a migração das populações para as cidades. Hoje em dia temos a produção massificada de carne, dominada por grandes empresas. E é, efetivamente, este, atualmente, o grande problema”.
Antes de avançarmos para questões éticas, de produção e distribuição, lóbis e interesses dos gigantes da indústria da carne, há que escavar um pouco mais na História para percebermos que o anseio de produzir carne em laboratório não é recente. Vamos aliás, encontrar uma preocupação num estadista britânico com papel relevante no decurso da Segunda Guerra Mundial. No pós-Guerra, nos anos de 1950, encontramos o “registo fidedigno de Winston Churchill destacando o absurdo de produzirmos animais para consumo. Isto, quando comemos apenas uma parte do animal, como o peito de frango ou a asa”, realça o engenheiro biomédico.
O caminho futuro passará por aumentar a densidade de células na cultura, para baixar o custo de produção e a reciclagem no meio, sendo possível reutilizar células que ficaram na cultura.
Continuando: “A pessoa mais associada à carne celular é o holandês Willem van Eelen, que, nos anos de 1940, desenvolveu a ideia. Foi um preso de guerra, esteve cativo na Indonésia e, nesses tempos de fome, pensou como ultrapassar a carência alimentar. Morreu aos 91 anos, sempre a procurar trazer a ideia de carne cultivada para a realidade. Patenteou alguns métodos ainda nos anos de 1990 de produção de carne in vitro. Neste momento a filha de Willem é uma grande defensora da área da cultura celular”.
Sublinhe-se, de acordo com Vítor Espírito Santo, que “a Holanda é um país líder no campo da carne cultivada. Em 2013 fez-se o primeiro hambúrguer em laboratório pela Mosa Meat. Cinquenta gramas de carne orçaram 250 mil euros para a produzir. Foi cozinhado e provado. Na época, consideraram que em termos de textura e sabor era interessante, mas um pouco seco”. Há uma razão para esta apreciação menos abonatória: “Era constituído por células de músculo, faltava-lhe a gordura”.
Acresce que em termos de preço e de infraestrutura para o produzir não era fazível. “Demonstrou que era exequível produzir, embora sendo necessário desenvolver processos. O preço exorbitante tem uma razão: os equipamentos para cultura celular foram desenvolvidos para meios médicos. São muito puros. É nesse nível que temos de trabalhar, pois essa pureza não é exigível na cultura de carne”.
“O caminho futuro passará por aumentar a densidade de células na cultura, para baixar o custo de produção e a reciclagem no meio, sendo possível reutilizar células que ficaram na cultura. A economia de escala também vai contribuir. Este é o caminho para chegarmos ao custo de uma carne convencional, entre os cinco a dez dólares por quilo”.
Como chegamos à carne de laboratório?
“Para produzir carne em laboratório precisamos, inicialmente, de isolar um pequeno volume de células de um animal. Ou seja, de um único animal obtemos as células suficientes para toda a plataforma. Podemos recorrer a células do músculo, do sangue, da gordura, para dar alguns exemplos”.
Em suma, o que Vítor nos explica é que “não temos de sacrificar o animal. Do ponto de vista ético não estamos a criar animais especificamente para consumo”.
“Numa produção convencional de animais para abate, estes têm a ração; nós oferecemos às células uma ração líquida, com os nutrientes, como o açúcar, as proteínas, as vitaminas e as gorduras”. Nestas condições as células proliferam. É um processo muito parecido a uma fermentação, logo muito presente na indústria alimentar. O que difere é a matéria-prima utilizada, neste caso as células do animal.
“Quando pensamos no vinho, na cerveja, na sidra, no queijo, todos têm reatores. Ou seja, tanques com um meio de cultura líquida, com condições desejáveis para a fermentação. É a partir daqui que surgem as diferenças, ou seja, o tipo de entidade que está a ser cultivado, neste caso é a célula animal”, sublinha Vítor.
“Fazemos vários tipos de isolamentos de diferentes espécies de animais, frango, vaca, porco e peru. Dentro destas espécies, trabalhamos com diferentes tipos de animais, percebendo o sabor na qualidade das células que isolámos e as que queremos levar para a fase seguinte”.
Células que, entretanto, fazem o seu trabalho, ou seja, dividem-se tal como ocorre no corpo do animal. “Num período curto de tempo, uma a duas semanas, obtemos células suficientes para produzirmos carne. Quando pensamos no tempo de vida de um animal, por exemplo, uma vaca que precisa de 18 meses até ser abatida e vamos comer apenas 60% do animal, aqui a eficiência é muito maior”.
No que respeita à diversidade de carnes obtidas por este processo em laboratório, esclarece-nos Vítor: “Pensemos no bife, com a sua estrutura muito própria. Podemos induzir a maturação das células para a textura e estrutura desse tipo de carne. Trata-se de uma segunda etapa. No final poderemos escolher a utilização que queremos para essa carne. Nesta fase é mais fácil produzir carnes picadas. Na JUST Meat é o que estamos a fazer, produzir carne picada para hambúrgueres. Mais tarde podemos desenvolver produtos mais complexos, como um peito de frango”.
“No fundo este é um projeto culinário, em ligação com a cozinha. Temos chefes de cozinha com estrela Michelin que estão a trabalhar com a JUST Meat. O voto final é dos profissionais da cozinha, nos testes de sabor e sensoriais que decorrem dentro da empresa”.
Porque é que se decide investir nesta área?
“A tecnologia chegou, agora, ao ponto certo para concretizar o desejo de produzir carne em laboratório. Acresce que o consumo de carne disparou à escala global. A produção massificada gera um impacto ambiental incrível. Por exemplo, no Brasil há uma desflorestação impressionante para a criação de gado. Um cenário que não é sustentável a curto prazo. É uma realidade preocupante”.
“A carne celular não será a solução única, mas é uma das áreas que pode contribuir para reduzirmos o problema. Diminuindo o número de animais necessários para alimentar a população”.
Ao discurso junta-se uma questão premente, a dos lóbis dos gigantes mundiais da indústria alimentar, nomeadamente da carne. “Num país como Portugal temos estabilidade no que respeita ao aumento da população. Contudo, alguns países asiáticos têm crescido exponencialmente em população. Mais, países sem tradição no consumo de carne e que estão a mudar esse paradigma”, sublinha o investigador, acrescentando, “mesmo na Europa, há que haver um financiamento dos governos para colmatar este consumo de carne insustentável e que envolve questões de ética. Milhões de animais são sacrificados diariamente para consumo humano. Nem sempre nas melhores condições. Não estou a falar do animal criado localmente, mas sim da produção massificada”.
Nesta fase é mais fácil produzir carnes picadas. É o que estamos a fazer, produzir carne picada para hambúrgueres. Mais tarde podemos desenvolver produtos mais complexos, como um peito de frango
Pretexto para introduzir a temática indústria da carne, “um negócio muito rentável, com um lóbi fortíssimo. Nos Estados Unidos encontrámos um atrito enorme por parte dos produtores de carne face à congénere de laboratório. Não obstante, desde há três anos percebe-se uma mudança, e querem entrar na cultura da carne”.
São indústrias que movimentam milhares de milhões de dólares anualmente. No Brasil, líder em matéria de produção de carne, a par com os Estados Unidos e alguns países asiáticos, encontramos a gigante JBS. Naquele país da América do Sul há imenso espaço agrícola disponível, com o custo de mão-de-obra barato”.
Um negócio que envolve toda uma cadeia de interesses, como nos explica Vítor Espírito Santo: “Grande parte dos rendimentos do negócio da carne não estão só relacionados com a venda da carne, mas também com o negócio das rações, com os centros de reserva dos animais, com questões de transporte e logística, com as casas de abate. Quando olhamos para a percentagem do lucro das empresas envolvidas, este é mais equilibrado do que o que seria expetável, face ao que é obtido com a venda da carne”.
Caminhos para alterar o paradigma da carne
De acordo com o investigador, “quando pensamos num processo de carne industrial, temos várias etapas, da criação, ao abate, ao transporte e à distribuição. A carne cultivada elimina algumas etapas, cingindo-se ao crescimento das células e à produção da carne e sua distribuição. Acresce que podemos integrar os dois processos. Na JUST temos propostas com empresas asiáticas e europeias para que integrem os materiais que estamos a produzir nas suas linhas de processamento. É mais fácil do que se pensa fazer a integração desta tecnologia nas linhas que já existem atualmente”. O que diminuirá custos.
Custo que se mantêm como um dos entraves atuais à massificação da carne de laboratório: “Para pormos em prática é necessário um investimento grande em investigação. Depois, a componente realmente muito onerosa é aquela que carece de infraestrutura, a produção em escala”.
Grande parte dos rendimentos do negócio da carne não estão só relacionados com a venda da carne, mas também com o negócio das rações, com os centros de reserva dos animais, com questões de transporte e logística, com as casas de abate.
Uma área de investigação e negócio onde a JUST Meat não está só. Nos Estados Unidos vai encontrar a “Memphis Meats (produção de carne celular) e a Impossible Foods e Beyond Meat, estas duas, que não fazem carne, antes substitutos à base de proteínas extraídas de plantas. “Esta última área está mais desenvolvida e com uma perspetiva de crescimento mais rápida. A Impossible começou com alguns hambúrgueres nos Estados Unidos e cresceu. Nós, na JUST, estamos a fazer o mesmo percurso, mas com dois ou três anos de atraso”.
Continua Vítor Espírito Santo, “para além dos investidores privados, temos governos a apoiar as duas áreas. Pesa a pegada ambiental e a necessidade de apoiar populações. Por exemplo, em 2017, a China financiou com 300 milhões, três empresas israelitas. Este país lidera, a par dos Estados Unidos e da Holanda, esta área da investigação”. O objetivo do gigante asiático passa por importar a partir de Israel a carne de laboratório que aquele país está a produzir. “O objetivo da China é reduzir em 50% a produção convencional de carne”.
No início, a vontade de dois vegans
A JUST Meat, onde atualmente trabalha Vítor Espírito Santo, foi fundada em 2011, por dois vegans defensores dos direitos dos animais. “A intenção foi a de transformar a indústria animal, com produtos baratos, sustentáveis, nutritivos e com capacidade para chegar a todos os consumidores”, explica o investigador. Uma empresa que começou como uma plataforma de descoberta de plantas em todo o mundo, em 53 países, “muitas delas nunca antes testadas em aplicações alimentares. Extraímos as proteínas dessas plantas e verificámos em que tipo de aplicações alimentares poderiam ser usadas. Por exemplo, dulcificações, gelificações. Depois de verificarmos as proteínas com mas potencial, fizemos um teste piloto”.
No mercado a JUST Meat comercializa atualmente maionese e molhos, a maior parte deles disponíveis nos Estados Unidos e na Ásia. “Temos uma colaboração com a Libéria, relacionada com uma missão humanitária, desenvolvendo um pequeno-almoço supernutritivo, baseado num cereal, para crianças em escolas naquele país africano”, salienta o engenheiro.
Um portefólio de produtos que inclui um substituto do ovo, a partir de uma proteína extraída do Feijão Mungo. “Uma espécie de ovo líquido que, por exemplo, numa frigideira ganha a textura daquele alimento. O sabor é neutro”, conclui Vítor Espírito Santo.
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