“O lixo só é lixo por decisão nossa”. A expressão de Eunice Maia, fundadora da mercearia biológica Maria Granel, encerra a chave para nos libertarmos de uma das redundâncias do mundo em que vivemos. Adquirimos, rejeitamos como resíduo e voltamos a adquirir. Isto sem que de permeio olhemos para os resíduos gerados como um recurso precioso. E, não basta reciclar. Querendo, sigamos o modelo dos cinco “r”, mundialmente aplicado na produção de menos lixo: recusar, reduzir, reutilizar, reciclar e compostar (do inglês rot).
À expressão inicial podemos juntar uma outra que nasce das palavras de Eunice Maia ao longo desta conversa: “compostar é vida”. No fundo, tornar a matéria orgânica dos resíduos num fertilizante natural e, com ele, a possibilidade de enriquecer o solo e gerar mais alimento.
Um milagre da multiplicação que não precisa de milagreiros. Todos nós podemos compostar ou contribuir para a compostagem. Para além da recolha seletiva de resíduos por parte de alguns municípios, como Lisboa, podemos ter uma atitude ativa “na procura de quintas, hortas, jardins, produtores que recebam os nossos resíduos orgânicos”, sublinha Eunice.
E porque não iniciar um programa de compostagem no prédio, no bairro ou mesmo em casa? A fundadora da loja Maria Granel, explica-nos detalhadamente como o podemos fazer, descomplicando o processo e afastando algumas expressões de repulsa face à vermicompostagem: “as minhocas não saem das caixas, não exalam qualquer cheiro e também não transmitem doenças”.
Sobre o que podemos, ou não compostar e como fazê-lo, Eunice detalha-nos o processo a partir da sua experiência pessoal.
Lembro-me também muito bem de em casa dos meus pais haver sempre ao lado da banca um balde em que guardávamos estes detritos, que depois eram depositados numa parte do quintal.
Antes de entrarmos no tema da compostagem doméstica, a Eunice pode explicar aos leitores do que trata este processo?
Compostar é também reciclar, dar uma nova vida aos resíduos orgânicos como restos, partes de alimentos - cascas, talos, raízes, ramas - que normalmente não são usados na sua confeção. É um processo biológico de valorização da matéria orgânica, durante o qual os microrganismos, como fungos e bactérias, são responsáveis pela sua degradação, transformando-a em fertilizante natural.
No seu livro “Desafio Zero” a Eunice Maia invoca memórias de uma época em que os resíduos, ou parte deles, entravam num novo ciclo produtivo. Quer contar-nos?
Em casa dos meus pais e dos meus avós, estes resíduos sempre foram separados e tinham uma utilidade, um destino: ou eram dados aos animais, ou deitados na terra.
Lembro-me também muito bem de em casa dos meus pais haver sempre ao lado da banca um balde em que guardávamos estes detritos, que depois eram depositados numa parte do quintal. Tínhamos (e temos) um vermicompostor construído pelo meu pai. A vermicompostagem é uma forma prática de acelerar o processo natural de degradação da matéria orgânica, recorrendo a minhocas.
Hoje digo isto com um enorme orgulho e valorizo ter tido esta experiência, mas, quando era adolescente, por vezes pensava que o meu pai devia ser de outro planeta: “como assim, minhocas?” Aliás, nunca me aproximei daquele perímetro sagrado por repugnância e nunca me envolvi no processo. Só sabia que, ao fim de um tempo, saía do cubículo um monte de composto que servia para fertilizar o solo de onde retirávamos os legumes que cozinhávamos. E saber isso bastava.
No presente, converso imenso e aconselho-me com o meu pai sobre o assunto. Longe de mim pensar que teríamos este interesse comum muito mais tarde.
Vivemos numa sociedade que produz uma quantidade absurda de lixo. Só em Lisboa estima-se que diariamente se produzam 240 toneladas de lixo biodegradável. Este, normalmente, vai para aterros. Que ameaças para o ambiente e seres vivos produz este tipo de solução?
Correspondendo em média a cerca de 50% dos resíduos que geramos, o destino mais recorrente dos resíduos orgânicos é o aterro, uma vez que são descartados como lixo indiferenciado. Quando isso acontece, a matéria orgânica é simplesmente enterrada e desfaz-se por um processo anaeróbio, gerando gás metano, mais prejudicial na atmosfera do que o dióxido de carbono. Ora, não faz sentido enterrar algo tão valioso. Estamos não só a contaminar e a poluir o meio ambiente, como também a desperdiçar o potencial fertilizante destes resíduos.
Através da compostagem, esta matéria orgânica transforma-se em adubo e fertiliza o solo, devolvendo-lhe os nutrientes, sequestra o carbono, sob a forma de celulose, e, assim, aquele permanece no solo por mais tempo, antes de se converter em gás metano ou dióxido de carbono.
O lixo só é lixo por decisão nossa. Os resíduos são recursos valiosos. No caso dos resíduos orgânicos, antes do seu descarte ou compostagem, nós podemos evitar, em muitos casos, que cheguem sequer a ser desperdiçados
Numa perspetiva de compostagem, o lixo não é um fim é antes um recurso e uma mais-valia. A Eunice quer explicar-nos?
Sem dúvida, e não é só na perspetiva da compostagem. O lixo só é lixo por decisão nossa. Os resíduos são recursos valiosos. No caso dos resíduos orgânicos, antes do seu descarte ou compostagem, nós podemos evitar, em muitos casos, que cheguem sequer a ser desperdiçados, usando integralmente os limentos e tirando partido de todas as partes [por exemplo cascas, ramas], aproveitando todo o seu potencial nutricionalmente. Quando compostamos, fechamos o círculo e transformamos novamente em vida esses resíduos, porque eles vão gerar adubo, húmus.
Temos no nosso país bons exemplos da utilização destes resíduos?
Temos vários projetos muito bons a decorrer em todo o país e a mobilizar milhares de pessoas, dinamizados por vários municípios e também por associações e comunidades locais. Muitos com programa educativo associado e com um trabalho extraordinário nas escolas e nas instituições das áreas em que estão implantados.
Aconselho muito quem nos lê a procurar no seu concelho informação sobre estes programas. Além disso, há também uma aplicação, ShareWaste app, uma plataforma internacional, com georreferenciação, na qual, após registo, é possível sinalizar a nossa disponibilidade para doar ou receber resíduos orgânicos.
Inclusivamente, podemos entregar os resíduos a terceiros, entidades públicas e privados…
Está em curso a recolha seletiva deste tipo de resíduos. Por exemplo, em Lisboa, no Lumiar, já há um programa-piloto a decorrer, que passará a ser obrigatória e generalizada, fruto de uma diretiva da União Europeia.
No entanto, considero importante sublinhar que, enquanto indivíduos, podemos, e devemos, de fazer muito e não precisamos de esperar pela regulação ou imposição de terceiros.
Podemos procurar quintas, hortas, jardins, agricultores, produtores que recebam os nossos resíduos orgânicos. Julgo que há um enorme potencial nos circuitos instaurados pela entrega de cabazes biológicos que poderiam ser simultaneamente roteiros de recolha e valorização de resíduos orgânicos. Podemos, como já referi, descarregar a aplicação ShareWaste app. Inclusivamente, podemos iniciar um programa de compostagem no nosso prédio, no nosso bairro, na nossa escola, na nossa empresa.
Em concreto, como começou a Eunice a compostar?
Comecei a compostar graças ao projeto “Lisboa a Compostar”. Decidi candidatar-me ao programa promovido pela Câmara Municipal de Lisboa e pela Valorsul. Aconselho vivamente a consulta da página, com um guia de compostagem doméstica muito completo e que pode ajudar quem está noutras zonas do país e quer começar a compostar. No meu caso, percebi que cumpria todos os requisitos (ver caixa).
O processo foi extremamente rápido e simples. Acedi à plataforma online, inscrevi-me no site do projeto e, quase de forma imediata, recebi um e-mail. Alguns dias depois, chegou a indicação da data da formação para receber o compostor. A sessão decorreu na junta de freguesia, demorou cerca de uma hora, foi extremamente elucidativa e prática, contando com a presença de muitas pessoas, incluindo algumas crianças que queriam implementar o sistema nas suas escolas.
Se optarmos pelo nosso próprio compostor, como podemos fazer compostagem em casa, considerando que vivemos em espaços exíguos, por exemplo apartamentos?
Mesmo que não haja programas por perto, é possível montar o próprio compostor doméstico e tê-lo num apartamento. Lembro-me sempre da Camila Lucena [“Zero Waste Youth Portugal”] que, vivendo numa autocaravana, faz compostagem. Se a Camila consegue num espaço tão exíguo fazê-lo, então, num apartamento também é possível.
Com minhocas ou sem minhocas, com baldes ou com caixas, o que interessa é conseguirmos reciclar a matéria orgânica que produzimos e transformar esses resíduos biodegradáveis num fertilizante rico em nutrientes, valorizando o que antes era lixo e ia parar ao aterro.
Com minhocas ou sem minhocas, com baldes ou com caixas, o que interessa é conseguirmos reciclar a matéria orgânica que produzimos.
Quando a Eunice refere minhocas, julgo que causará arrepios nalguns leitores…
Para quem tem repugnância ou receio de minhocas, convém referir que elas não saem das caixas, não exalam qualquer cheiro e também não transmitem doenças. Conseguimos facilmente encontrar no mercado, prontas para este fim, as minhocas do tipo californianas vermelhas.
Só precisamos de recorrer a três ou mais caixas ou baldes empilháveis de plástico opaco [podemos pedir em restaurantes ou outros estabelecimentos para os cederem e reutilizá-los para esse fim], sendo os dois níveis superiores digestores, com furos no fundo, para permitirem a migração das minhocas e o escoamento dos líquidos. O nível inferior funcionará como base coletora para armazenar o biofertilizante produzido no processo, que deve ser drenado com regularidade. É rico em nutrientes e sais minerais e pode ser usado quer para regar as plantas, quer como repelente natural de pragas.
O que podemos compostar e o que não devemos compostar?
A compostagem só acontece se tivermos a combinação de resíduos orgânicos húmidos [cascas de frutas, legumes, verduras, borra de café, chá], resíduos orgânicos secos [palha, relva seca, folhas secas] e oxigénio.
A matéria seca é fundamental para equilibrar a humidade, fazendo um balanço da quantidade de nitrogénio [húmidos] com a quantidade de carbono [secos]. Se não for colocada matéria seca, os resíduos irão apodrecer e não se irão transformar em terra [adubo].
No caso da vermicompostagem, alguns resíduos devem ser evitados, pois, por se tratar de um sistema que utiliza vermes [minhocas], estes podem morrer ou diminuir drasticamente a população, caso esteja muito ácido, cítrico ou salgado. Por isso, devem ser evitados alimentos cozidos salgados e temperados, carnes, derivados de leite, cítricos [cascas de limão, laranja] e ácidos [cascas de cebola].
Que fatores temos de considerar quando fazemos a compostagem doméstica? É expectável termos uma desilusão inicial?
Na minha experiência e contando com a ajuda de duas vizinhas, o mais difícil é regular e acertar no equilíbrio entre castanhos e verdes ou secos e húmidos.
Na compostagem seca é fundamental remexer o conteúdo com frequência para oxigenar a mistura, favorecer a evaporação do excesso de humidade e aumentar a quantidade de ar. E nem sempre é fácil ajustar a temperatura e regular a humidade. Um outro aspeto em que falhámos no início foi perceber que era necessário que os detritos estivessem mais cortados, com o tamanho mais reduzido, caso contrário, atrasam o processo.
Aconteceu-nos ter de repente uma quantidade excessiva de moscas e outros insetos. É normal e é sinal de que é preciso regular a humidade. Bastou-nos aumentar a dose de secos.
É um desafio, mas acho que é um processo relativamente simples e autónomo. Precisamos de vigiar e, por tentativa e erro, ir aperfeiçoando o desempenho. É uma lição de cuidado, de paciência e de respeito pelo ritmo da natureza e dos seus bichinhos. Depois vem o prémio no final: o composto de elevada qualidade. Compensa todo o esforço. Compostar é vida.
Que destino dá a Eunice ao material compostado?
Neste momento estamos a tentar começar uma mini horta biológica. Comecei pelo parapeito da minha janela da cozinha e sonhamos agora usar o jardim do prédio.
Comentários