A culpa está tão enraizada na nossa existência social, cultural e até emocional que se estende a todos os aspectos da nossa vida. A crise que o mundo atravessa só ajuda a aumentar o sentimento de culpa. «Apetece-me tomar um banho de imersão mas um duche poupa mais água», «Devia ir ao supermercado a pé. A distância é curta demais para levar o carro mas está a chover tanto e já estou atrasado»... Os exemplos sucedem-se. O sentimento de culpa está por toda a parte mas qual é a sua origem?
«O nosso cérebro nunca lida diretamente com a realidade mas com uma representação da realidade», explica o psicólogo Joaquim Quintino Aires. «Os mitos, as tradições culturais, aquilo que uns e outros dizem entra na formação desta representação, o que torna muito difícil ser objetivo na avaliação da própria vida e do mundo». Para o psicólogo, quando uma sociedade está em mudança, o que em psicologia se denomina «crise», o problema ainda maior.
«Quando já existem novas realidades culturais mas ainda não foram apagadas as anteriores, é mais difícil ser objetivo», defende o especialista. «É por isso que, por vezes, sabemos que o que estamos a fazer é o mais indicado, mas ainda assim não o conseguimos sentir». É neste momento que a angústia e a culpa ganham espaço, «podendo mesmo levar à depressão», sublinha o autor de «A arte de dizer não», publicado pela editora Lua de Papel.
O sexo feminino e a culpa
Mas será a culpa um sentimento mais característico das mulheres? Segundo Joaquim Quintino Aires, «o sexo feminino vive uma crise de mudança mais marcada. Ainda escutamos com frequência a obrigação da mulher cuidar da casa e educar os filhos, ao mesmo tempo que ouvimos e lemos sobre mulheres de sucesso no campo profissional». Uma vez que esta duplicidade de papéis é mais exigida à mulher e não tanto ao homem, «ela perde-se mais na construção da representação de si própria», diz.
O psicólogo identifica dois momentos particularmente difíceis. O primeiro acontece quando a mulher inicia, em simultâneo, a carreira e a sua família. «Parece-lhe ter a obrigação de acompanhar as duas áreas e não conseguir», sublinha. Já o segundo momento ocorre por volta dos 40 anos, quando os filhos começam crescer e a mulher começa a fazer um balanço da vida. «Muitas vezes, sente-se desiludida por não ter feito mais em cada um dos dois campos», explica o psicólogo.
Sinais de alarme
Sentir-se culpado depois de ter devorado os chocolates que tinha em casa ou por uma reunião de última hora o ter impedido de ir buscar o seu filho à escola a horas é perfeitamente normal. Mas, tenha cuidado, existe uma fronteira entre um sentimento de culpa saudável e um comportamento exagerado.
«Sempre que a pessoa tem mais expetativas do que é razoável realizar e a avaliação da diferença entre o que gostaria de ter feito e o que fez causa sofrimento, tal deixa de ser saudável», explica José Quintino Aires, que aponta alguns sinais de alarme. «A autocrítica sistemática, a tristeza e a ansiedade e a permanente sensação de estar aquém», enumera o especialista. É neste momento que a pessoa começa a isolar-se e a entrar em risco.
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O que fazer para combater a culpa
«Parar e avaliar tudo o que fez e o que é possível qualquer humano fazer» é o conselho do psicólogo, que sugere que esta avaliação seja escrita num papel. «A mente de quem está deprimido deturpa a análise dos dados». Pode ser boa ideia pedir a opinião de um familiar ou amigo com quem tenha mais confiança. «Por vezes as pessoas não têm uma ideia integrada de si próprias», acrescenta o famoso psicólogo.
«Conhecem-se em função de cada uma das áreas da sua vida, como pais, profissionais de sucesso ou alguém sempre socialmente correcto e não como sendo sempre a mesma pessoa, como uma unidade», salienta. É então que estabelecem expectativas que acabam por se transformar em objetivos. «Naturalmente que estes objetivos não são possíveis de alcançar em todas as áreas, pelo que a constatação de ter falhado leva à depressão. E afinal só falham porque são apenas humanas», desculpabiliza.
Conselho de especialista
Partilhe os sentimentos e as perceções dolorosas com outras pessoas. «O silêncio e o segredo, tão frequente como resultado da vergonha, impedem a confrontação das próprias com as de outros», refere Joaquim Quintino Aires.
Texto: Sónia Ramalho com Joaquim Quintino Aires (psicólogo)
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