Uma máquina pulsátil em busca de harmonia interior e com o mundo. Assim somos nós, descreve J. L. Pio de Abreu, psiquiatra, no seu mais recente livro, em tom de ensaio, «O Bailado da Alma», publicado pela editora Dom Quixote. «Hoje sabemos que todos os componentes do organismo, desde órgãos, a células e genes, pulsam com um ritmo mais rápido ou mais lento, mas sempre harmonizado», contou em entrevista à Prevenir. «Em particular, os neurónios cerebrais desempenham a sua atividade com pulsações cujas frequências são hoje conhecidas», refere.
A pulsação implica um ritmo e o ritmo implica o tempo, tal como a vida. «É tempo de entendermos o corpo através da vida e isso permite entender melhor todos estes conceitos e usá-los em novas descobertas», recomenda. Ganharemos com isso? «Nem sempre as novas descobertas e a lucidez nos fazem ganhar, depende do modo como as partilhamos e usamos. A novidade pode causar algum desconforto, mas não podemos fugir a este destino», assegura o especialista.
Desde que nascemos, como se constrói a nossa sincronia com o mundo?
As crianças, ao imitarem os adultos e o mundo, procuram sincronizar-se com eles. A interação com os progenitores (as chamadas danças conversacionais) é um jogo de sincronização. Mas os rituais familiares (as rotinas de cuidados e as refeições, por exemplo) e sociais são importantes marcadores de ritmos e, por isso, de sincronizações.
No seu livro, descreve os ritmos da infância «como fundadores da nossa harmonia». O que devem os pais fazer para que o seu contributo seja o mais saudável possível para a construção desses ritmos?
Não há conselhos. A situação é tão complexa e pouco esclarecida que nos arriscaríamos a criar teorias apressadas que levassem a grossa asneira. O mais importante é continuar a interação humana, a dança da vida. Brinquem com as crianças e deixem-nas brincar.
O que já constatou a ciência sobre a relação entre os ritmos biológicos (nomeadamente a sua alteração) e a saúde mental?
Existem muitos estudos sobre os ritmos circadianos e o sono, nomeadamente a tendência ao sono adiantado (advanced sleep) e retardado (retarded sleep). Geralmente, têm que ver com a perturbação bipolar e a manipulação destes ritmos pode alterar o seu curso. Todos os outros ritmos, bem como a sua relação, têm sido estudados em diversos âmbitos.
A perturbação dos ritmos tem, geralmente, consequências patológicas ao nível do psiquismo e do organismo. Aliás, quando uma pessoa entra num hospital em situação de emergência, procede-se, desde logo, à monitorização dos seus ritmos cardíacos, respiratórios e outros. Existem, hoje, procedimentos terapêuticos (relaxamento e biofeedback) exclusivamente baseados no autocontrolo dos ritmos orgânicos e cerebrais.
Que impacto estão a ter ou podem vir a ter o uso de novas tecnologias ao nível dos ritmos biológicos?
A perturbação dos ritmos começou com a luz elétrica. A internet e a televisão, na medida em que isolam as pessoas umas das outras e reduzem a interação social, também os perturbam. Apesar de estarem aglomeradas, as pessoas vivem hoje muito mais sozinhas e isso não é bom para a saúde mental. Ainda está por saber qual será o futuro das pessoas que já nascem embebidas em toda esta parafernália tecnológica. Diferentes, pelo menos, serão.
Veja na página seguinte: O papel da intuição no nosso bem-estar pessoal e interpessoal
Que papel desempenha a intuição no nosso bem-estar pessoal e interpessoal?
Todos os nossos automatismos, tudo aquilo que fazemos sem pensar, implica o funcionamento da intuição. As coisas que são autoevidentes para nós, são-no através da intuição. Mas a intuição depende da nossa experiência e, por vezes, transforma-se em mero preconceito. No entanto, se a intuição for bem treinada, ela leva ao acerto sem que possamos explicar porquê.
O chamado olho clínico dos médicos permite-lhes diagnosticar uma doença ou um estado grave ao primeiro olhar. Um perito em arte pode suspeitar que uma obra é falsa sem saber dizer porquê. Muitas emergências da vida não dão tempo ao raciocínio e a intuição vem em nossa ajuda.
Porque há pessoas com a intuição mais apurada?
Há pessoas que dedicam maior atenção a si próprias do que ao mundo e aos outros. Essas estarão mal preparadas para a perceção dos contextos do mundo e das pessoas. A curiosidade, a capacidade de ouvir e a capacidade de pôr em causa as nossas certezas e as nossas primeiras impressões são sempre a maior ajuda para exercitar a intuição. Isto gera um paradoxo. As pessoas que mais acreditam nas suas intuições e as transformam em crenças absolutas são também as menos intuitivas.
Conta que a depressão é entendida, cada vez mais, como a doença do ritmo, em que nos dessincronizamos dos outros e do ambiente. O que pode fazer quem está mergulhado nela para reacertar os ritmos biológicos?
Os marcadores de ritmos (zeitgebers), como a luz solar, as horas das refeições, o sono, são cada vez mais usados como tratamentos da depressão. Mas a depressão é um conjunto complexo e heterogéneo de várias patologias. Em geral, os doentes deprimidos isolam-se e, com essa resposta, mais agravam, em círculo vicioso, a sua dessincronização e a sua patologia. Manter as rotinas é terapêutico.
Como recuperar a harmonia depois da perda?
Toda a vida é mudança e em cada mudança se perdem e ganham coisas. Há que fazer o luto (não há nada que as lágrimas não lavem), que é também uma preparação para a mudança e um tempo para a reaprendizagem. Mas há que estar atento às novas oportunidades e desafios da vida. Às vezes, a sensação de que não há mais nada a perder ajuda a responder a novos desafios.
Aí, a paixão coloca-se na ordem do dia. Pode ser por uma nova pessoa, um filho, um projeto, um ideal ou uma atividade. Como à morte se responde com a vida, à perda responde-se com novos e amadurecidos ganhos.
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O que é a alma?
A alma ultrapassa o corpo exatamente pelas impressões que deixa no mundo. Naquilo que produz, sejam obras, palavras ou simples atitudes. Na memória dos outros e nas impressões que deixa. Nas pessoas que criou e educou. Nas pessoas que influenciou e nas expectativas que deixou alcançadas, porventura, pelas novas gerações que, por sua vez, as deixam a outras. Mas também a nossa alma se encontra ligada aos outros através da língua e da cultura, dos meios que habitamos, tudo isso deixado pelos nossos conterrâneos predecessores e por aqueles que desejaram a nossa existência.
De algum modo, a vida, de que a alma é o produto mais acabado, é um fio que começa muito antes de nascermos e pode terminar muito depois de morrermos. Finalmente, nós, humanos, temos a capacidade de nos transformarmos nos outros contemporâneos, capacidade essa que alicerça as identificações, a empatia e a própria cognição humana. Estes assuntos são hoje cientificamente estudados sob as designações de «theory of mind», «mirror neurons» e «shared attention».
Que fatores favorecem a nossa ligação com os outros?
- O sexo
A atividade sexual e o orgasmo podem ser «fatores importantes para o estabelecimento de sincronias», defende J. L. Pio de Abreu.
- A música e a dança
«Toda a interação, desde a conversa à dança, à participação em coros ou orquestras ou mesmo à sua audição numa plateia (que promove a atenção partilhada), é importante. Muitos fenómenos de massa, como a assistência a concertos musicais, baseiam-se na sincronização de movimentos, expressões e sentimentos», refere o especialista.
- As refeições
«O ritual das refeições é um poderoso reforçador das relações humanas», afirma o psiquiatra.
- Um objetivo comum
«Uma tarefa ou objetivo comum que implica a partilha da atenção», diz o autor de «O Bailado da Alma».
- Os sentimentos positivos
«Qualquer sentimento positivo em relação a uma pessoa (admiração, desejo, interesse) ajuda-nos a sincronizar com ela. As mais precoces são as que mais marcam, e as brincadeiras e jogos que os progenitores têm com as crianças são decisivos», assegura J. L. Pio de Abreu.
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O livro que deve (mesmo) ler
«O Bailado da Alma» de J. L. Pio de Abreu é um ensaio sobre a alma entendida cientificamente como mente. Nesta obra, o autor reflete sobre o conceito como algo que dança, uma procura de um equilíbrio que resulta de sincronias e harmonias. Através de um diálogo entre a neurociência e a filosofia, é permitido explorar questões como a sincronização interpessoal e orgânica, a intuição, os hemisférios cerebrais e a ontologia.
Texto: Carlos Eugénio Augusto e Nazaré Tocha com J. L. Pio de Abreu (psiquiatra)
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