Desde os anos 70 do século XX que tem havido tentativas recorrentes de implementação do teletrabalho. Recorrendo aos avanços tecnológicos seria possível aumentar o conforto dos trabalhadores, diminuir custos para trabalhadores e empresas, melhorar a gestão do tempo, evitando, por exemplo, os longos períodos perdidos em deslocações, e até diminuir as emissões atmosféricas poluentes.

Mas se há tantas vantagens na implementação do teletrabalho, porque é que nos 50 anos seguintes ele não vingou? Dados do Reino Unido mostram que em 2019 apenas 5% dos trabalhadores se encontravam a trabalhar a partir de casa; entre 2005 e 2015 o teletrabalho aumentou apenas em 2 a 3 pontos percentuais. Acontece que estes números foram súbita e drasticamente alterados pela pandemia pelo novo coronavírus e a necessidade de confinamento por ela imposta.

De acordo com os resultados de um inquérito às empresas produzido pelo Instituto Nacional de Estatística e pelo Banco de Portugal, na última semana de abril de 2020, 58% das empresas tinha funcionários em teletrabalho e em um quinto dos casos, mais de metade da equipa estava a trabalhar de casa.

Em empresas de maior dimensão, essas percentagens chegaram mesmo a valores superiores a 90%. Poderá dizer-se que a necessidade de manter as pessoas fisicamente afastadas veio acelerar um processo inevitável e que só não havia acontecido por resistências de empresas e trabalhadores. Há mesmo quem diga que agora, uma vez posto em prática, o teletrabalho veio para ficar, dadas as suas inúmeras vantagens. Mas será mesmo assim?

Ainda que, em teoria, trabalhar a partir de casa traga muitos benefícios, as circunstâncias atuais vieram mostrar outro lado do trabalho à distância. Por um lado, muitas funções laborais não são sequer compatíveis com o teletrabalho, mesmo que os estudos mostrem que durante a pandemia, até nesses casos se está a trabalhar a partir de casa.

Por outro lado, nem todos têm as condições ideias para trabalhar em casa (nem as tiveram oferecidas pelas empresas). Muitos mantêm as mesmas metas e objetivos, mas as circunstâncias obrigam a que o tempo seja partilhado com outras ocupações, como sendo tarefas domésticas incluindo a própria confeção das refeições.

Frases como “dei por mim a fazer uma conferência com o meu chefe enquanto preparava o almoço para a família e durante o almoço com eles à mesa!” são cada vez mais ouvidas

A gestão do tempo é, aliás, uma das principais dificuldades do trabalho em casa porque a ausência de uma rotina laboral com deslocações, horas de entrada e horas de saída, resulta muitas vezes numa total desregulação das rotinas pessoais e numa fusão (indesejável) do tempo do trabalho com o tempo fora dele. A impossibilidade de “desligar” é vivida por muitos com enorme stress.

Além de tudo isto, a COVID-19 trouxe ainda uma cereja para colocar no topo desde bolo (já de si algo instável): o encerramento das escolas e o ensino à distância. Embora ainda não existam dados estatísticos sobre esta matéria (pode consultar e participar nos estudos em curso do PIN), a nossa prática clínica durante e após o confinamento tem mostrado que a coexistência do teletrabalho e da telescola tem dificultado a vida das famílias, deteriorando por vezes as relações entre pais e filhos, já para não falar na perda de rendimento e de produtividade para todos.

Dizia alguém, com graça: “o terceiro período do meu filho acabou ontem… estou ansioso por saber quanto tive a matemática!”. Mas a realidade é que muitos dos pais em teletrabalho não se estão a rir. Desempenhar tarefas laborais e em simultâneo supervisionar o desempenho escolar dos filhos, apoiar a gestão das aulas à distância, gerir as novas dificuldades das crianças e jovens (eles próprios com as suas vidas normais subitamente interrompidas), além das restantes rotinas domésticas (que infelizmente não desapareceram), é vivenciado por muitos como um stress intenso e prolongado, o que se torna fator de risco para o desenvolvimento de perturbações mentais, particularmente perturbações de ansiedade e perturbações depressivas.

É por isso importante que, a ser posto em prática, o trabalho a partir de casa deva obedecer a regras fundamentais para a manutenção da efetividade, sem prejuízo do equilíbrio: ferramentas e treino adequado; expectativas definidas claramente à priori relativamente a metas e objetivos; flexibilidade na gestão do tempo e prazos por parte dos empregadores; confiança na qualidade do trabalho, mesmo quando feito à distância e sem supervisão tão próxima; e finalmente, manutenção de barreiras entre o trabalho e a vida pessoal, mesmo que tudo se passe no mesmo espaço.

Apesar de tudo isto, e mesmo depois das crianças voltarem à escola e de todas as adaptações necessárias a um teletrabalho eficaz acontecerem, há uma coisa que só continuaremos a conseguir numa ida ao escritório: o convívio e a camaradagem. O trabalho não é só o trabalho; são também as relações.

Um estudo americano mostrou que dois terços das pessoas consideravam o “aspeto social” do trabalho uma razão importante para ir trabalhar. Mas não só pelo prazer de estar com os outros. A comunicação a propósito do trabalho em si também desempenha um papel importante.

Diziam-me recentemente “se eu precisasse de submeter um formulário e não soubesse qual, ia à mesa ao lado e fazia discretamente a pergunta… agora tenho que fazer uma videochamada para o meu chefe e mostrar que não sei!” ou “tinha começado na nova empresa pouco tempo antes da pandemia… e agora estou a chefiar à distância pessoas que mal conheço, porque não posso ir almoçar com a equipa, tomar um café no intervalo…”.

A espécie humana evoluiu para ser uma espécie social! A cooperação entre seres humanos aumentou a nossa sobrevivência ao longo das eras. E isso continua relevante nos locais de trabalho atuais: vai ser sempre preciso tempo e espaço para desenvolver padrões relacionais menos formais com os colegas. Porque isso também é preciso para fazer bem o trabalho.

Texto: Gustavo Jesus - Médico Psiquiatra, Diretor Clínico PIN Lisboa