Quando pensa em jovens com dificuldades intelectuais (DID, vulgo “atraso mental”), o que lhe vem imediatamente à cabeça? E se lhe pedirmos que pense na sexualidade destes jovens? Certamente responder a este desafio pode não ser fácil, nem imediato. A primeira sensação pode até ser de estranheza, como se ambos fossem incompatíveis.
Para muitos de nós, as pessoas com DID dividem-se em dois polos opostos, ou são “crianças eternas”, isto é, pessoas sem pensamentos nem desejos sexuais, ou são “tarados sexuais”, com um ímpeto sexual muito superior ao da população normativa e com dificuldades em controlarem os seus impulsos. Mas trata-se nada mais nada menos que um mito. As pessoas com DID são como todas as outras. Logo, algumas podem ter comportamentos sexuais mais evidentes e outras serem reservadas.
Mas então o que está na base destes mitos e estereótipos?
Em primeiro lugar, muitas pessoas com DID têm dificuldades acentuadas ao nível da comunicação, o que dificulta a expressão dos seus desejos e necessidades também ao nível sexual, podendo levar o outro a assumir a sua inexistência e, consequentemente, a reforçar o mito da “criança eterna”.
Mesmo na ausência de dificuldades de comunicação, pode existir falta de vocabulário para explicar o que sentem, desejam e querem pelo que, mais uma vez, rapidamente pode haver a assunção de que nada desejam ou que “ainda não está desperto para essas coisas”.
Em segundo lugar, não é fácil para a maior parte das famílias olharem para estes jovens como seres sexuais. Podem pensar: “se ainda nem consegue lavar os dentes sozinho/a, como pode ele/a ter una vida sexual ativa?” ou “se sempre me disseram que tinha a idade mental de uma criança, como ter ela pensamentos tão adultos?”.
É difícil a aceitação e compreensão que, embora haja um défice no desenvolvimento cognitivo, o desenvolvimento psicossexual segue as etapas normativas (mesmo que mais tarde do que o esperado).
Em terceiro lugar, é comum assumirmos que, porque alguns destes jovens exibem comportamentos sexuais em público, são sexualmente descontrolados e até perigosos. Normalmente, quando isto acontece, há um sinal de alarme que se estende a todos os contextos. Um medo enorme que seja um sinal de que aquele jovem é um potencial abusador… “E agora, quem o/a pára?” poder-se-á pensar. Estes comportamentos são um reflexo da dificuldade na adequação do comportamento, na leitura das pistas sociais e na antecipação das consequências sociais.
Não são uma prova de “perversidade”, mas uma prova de que é necessário iniciar um processo de educação sexual adaptado e orientado para as necessidades de cada jovem. E aqui, é preciso desmistificar de novo: falar sobre sexo não é perigoso. Falar sobre sexo não torna as pessoas com DID obcecadas com o tema.
Falar sobre sexo é efetivamente necessário, benéfico e uma ferramenta incontornável na prevenção do abuso sexual e na promoção de uma vida sexual saudável.
A educação sexual dirigida a esta população deve ser organizada, baseada em evidência científica e realizada com sensibilidade às dificuldades na compreensão e na expressão verbal. É importante não cair na tendência de estruturar este tipo de programas à volta da temática de evitamento do sexo e dos perigos que este acarreta.
Por sua vez é, sem dúvida, imperativo falar sobre partes do corpo, zonas corporais e comportamentos privados e não privados, e sobre formas de prevenção de potenciais abusos sexuais mas também de cometerem atos sexualizados desajustados para com outras pessoas.
É fundamental falar sobre como identificar comportamentos inadequados e sobre como pedir ajuda. Mas estes não devem ser os únicos temas. É preciso falar sobre a anatomia do corpo, sobre a contraceção, a masturbação e sobre carícias.
Deixar claro e concreto como acontecem as relações sexuais, o que é esperado e quais as sensações que daí advêm. Silenciar estes temas é potenciar problemas, não é proteger.
Também é importante evitar seguir um guião heteronormativo centrado na assunção e que todos os jovens com DID são heterossexuais. Ter um défice cognitivo não é sinónimo de ser heterossexual, embora muitas vezes expressões de homossexualidade nesta população sejam vistas como uma parte do desenvolvimento até à heterossexualidade desejada...
Alguns poderão estar a questionar-se de como falar sobre sexo com pessoas com DID? Ficam algumas sugestões concretas:
- Utilize uma linguagem simples e discurso mais diretivo.
- Evite metáforas abstratas. Pode ser desconfortável falar sobre sexo com o seu filho com DID, mas não devemos assumir que compreende o que está a insinuar com a sua metáfora. Seja claro e concreto (ex. “As minhas mamas são privadas. Não podes tocar nelas”).
- Recorra à repetição como um aliado. Falar mais do que uma vez, utilizando exemplos diferentes para auxiliar na generalização do conhecimento
- Sempre que possível, tornar concreto. Mostrar imagens e vídeos adequados.
- Adapte o conteúdo a idade, tendo em atenção as dificuldades cognitivas
- Ensine a pedir ajuda. Identificar uma pessoa de confiança no contexto do jovem ou do adulto a quem possa reportar situações que lhe causaram desconforto.
- Esclareça o que são comportamentos expectáveis e não expectáveis
- No caso de comportamentos sexuais em público, se esqueça que o objetivo não é eliminar esses comportamentos, mas sim adequar o sítio onde acontecem.
- Normalize. Ter desejo sexual é saudável e normal. Ajude o seu filho a dar um nome às emoções que está a sentir e a ter estratégias para lidar com elas.
- Peça ajuda. Não está sozinho neste caminho. Existe toda uma comunidade e profissionais especializados que o podem ajudar a navegar no mundo da sexualidade.
Por fim, é importante falar sobre consentimento. E este é um grande desafio para quem lida com esta população. Como conseguir conjugar o direito de expressar a sua sexualidade, com a capacidade de manifestarem consentimento num envolvimento sexual?
Esta não é uma pergunta que tenha uma resposta rápida e óbvia, muito menos uma resposta que seja aplicável a todos os casos. O primeiro passo para tentar responder é ensinar sobre o que é consentimento.
Ajudar a clarificar que comportamentos deixam a pessoa confortável, que experiências tem o desejo de viver e quais os avanços, comportamentos e experiências que não está pronta ou não quer de todo vivenciar.
De uma forma geral, queremos deixar claro que as dificuldades intelectuais não apagam os seus direitos sexuais. Não eliminam o direito a viver uma sexualidade saudável e segura.
Embora saibamos (até bem demais) que existem tantos outros temas e tantos outros obstáculos a ultrapassar, a sexualidade não deve ser deixada para último plano. Uma atitude preventiva é preferível a uma intervenção de emergência. Adotar essa atitude pode deve começar HOJE.
Texto: Mariana Carpinteiro e Ana Beato - Consulta da Sexualidade
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