Aqueles que leram o texto da semana passada “Tenho o autismo na barriga: A gravidez no espectro do autismo” estarão recordados da história da Laura e do Raúl, e de que Laura é uma mulher autista e que está a passar pelo processo de gravidez.

Pois bem, Laura e Raúl foram de férias. Provavelmente umas férias bastante diferentes de quaisquer outras que tenham tido. O bebé a crescer dentro da Laura não a deixava pensar em outra coisa. Raúl sente que passou a ser um interesse muito intenso e inicialmente ressentiu-se. Mas ambos já sabiam da importância de poderem falar sobre o que se ia passando. E foi possível sentirem-se mais tranquilos com essa partilha. O bebé é muito importante, assim como cada um deles e a sua relação e o bem estar da mesma.

No momento de descobrir a sua gravidez, a maioria das mulheres relata uma gama típica de sentimentos, que vai desde o medo e sentimento de falta de preparação para a gravidez, ao se sentir frequentemente emocionada. E isso não tem sido diferente com Laura.

A casa que já tinha bastantes livros, passou a ter prateleiras cheias de livros sobre a gravidez, o parto e o puerpério. Laura não queria que lhe faltasse nenhuma informação. E isso fazia com que se sentisse ligeiramente mais confiante e em controlo de algumas coisas que se iam passando. E com isso a sua ansiedade parecia ser menor.

Laura dizia, sentir-se como uma cientista a observar cada mudança no seu corpo. O bebé agora já comunicava muito e de uma forma mais evidente com a Laura. No entanto, todas estas alterações fisiológicas e transformadoras são amplificadas dentro de si.

Laura recorda das vezes que acorda em sobressalto porque a sensação sentida é tão intensa e real que pensa ter o seu bebé ao colo. Antes de irem de férias ainda não sabiam o sexo do bebé.

Entretanto, já passaram mais uns meses e Laura e Raúl sabem que vão ter um rapaz. Vai chamar-se Ricardo como o avô materno. Laura sente estar mais emotiva e a falta do pai que falecera há 10 anos continua a ser uma grande falha na sua vida. Mas sente que esta gravidez e o facto de Raúl estar muito contente com o facto de ser um rapaz e de concordar em lhe chamar Ricardo parece fazer com que se sinta apaziguada. Ainda que não saiba explicar muito bem porquê, mas sente-o.

Mas com o aproximar do momento do parto, que passou a ser mais real com a marcação do mesmo junto do hospital e com toda a explicação feita pela obstetra que tem seguido a Laura e quem esta já conhecia por outras razões de ordem médica, fez com que Laura se sentisse muito mais confortável. E este factor é muito importante para a Laura, sentir-se confortável. E no presente momento ainda mais. Mas a marcação do parto acelerou a ansiedade de Laura para além de ter trazido consigo o inicio das contrações e as situações de maior agitação lá por casa.

Raúl já tinha experiência nestas coisas de emergências. É engenheiro e tem formação em Higiene e Segurança no Trabalho. Simulacros e outras situações similares são conhecidas suas. E como tal procura implementar algumas dessas ideias, ainda que as mesmas necessitem de ser supervisionadas pela Laura. Raúl já sabe isso e respeita essa necessidade e desejo.

Na Perturbação do Espectro do Autismo há um conjunto de condições médicas e psiquiátricas associadas e que acabam por trazer maiores complicações neste processo já em si mais delicado, seja físico mas também emocional. Verificam-se situações de síndrome dos ovários policísticos, hipotireoidismo, enxaquecas, úlceras, intolerância à lactose, ansiedade, depressão, perturbação obsessivo-compulsivo e perturbação da conduta alimentar (i.e., anorexia), entre outras.

O que acaba por necessitar de um maior conjunto de cuidados médicos e psiquiátricos e de um planeamento conjunto entre todos, inclusive a mãe. No entanto, continuam-se a verificar situações em que as mulheres não divulgam aos seus obstetras o seu diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, nomeadamente por receio de incompreensão por parte deste. E isso acaba por acarretar um conjunto de riscos e de dificuldades na comunicação. Não é o caso da Laura, felizmente.

Nomeadamente, uma das queixas muito frequentes nestas mães autistas é a incompreensão por parte dos profissionais relativamente às suas hipersensibilidades. As mesmas costumam ser enquadras na questão da gravidez e como tal são desvalorizadas ou então não são devidamente valorizadas. E a questão da sensorialidade é um tema fulcral, e ainda mais no momento do parto.

Se no período pré-natal, a maioria das mulheres comenta sobre as dificuldades de processamento das sensações associadas com a gravidez e sobre outras sensibilidades aumentadas ao toque, luz, sons e interação. Algumas descrevem a necessidade de sentir pressão ou toque propositado, enquanto outras desejam limitar as sensações.

Laura não gostava de sentir a sensação do vento a soprar-lhe na cara, ou ter alguma coisa pegajosa nas mãos. Raúl era quem lhe colocava o creme na barriga. Teve de ser assim, caso contrário Laura não conseguia passar o creme gordo na barriga. E a ideia de vir a ter estrias incomodava-a. Não pela questão estética, mas pelo facto de aquilo passar a ser algo novo e estranho no seu corpo. E coisas novas e estranhas no seu corpo já bastava.

Tinha um bebé a crescer dentro de si, e apesar de ser o seu filho, não deixava de ser uma sensação estranha. E isso parecia confundir as amigas quando ela comenta isso com elas. Pareciam não entender. E Laura não entendia quando elas diziam que tudo aquilo parecia ser uma coisa fantástica e maravilhosa.

Depois disso, eram muitas as pessoas que manifestavam vontade de a abraçar, e se havia coisa que a Laura não reagia bem era aos abraços. Não que ela não gostasse. Gostava, quando era o Raúl, não quando eram outras pessoas, mesmo que conhecidas. As sensações eram muitas e Laura descreve muito bem uma delas, logo após o parto - “Senti-me vazia”. As roupas que vestia precisavam de ser ainda mais largas.

Laura parecia não tolerar nada em cima do corpo. Mais ainda do que o habitual. As luzes e os odores eram algo ainda mais desconfortável. E ouvia sempre as pessoas a dizer que também tinham passado por isso na gravidez. E Laura apenas tinha vontade de lhes gritar - “Não, não passaram. Vocês não são autistas e não sabem do que eu vos estou a falar!”. Mas Laura nunca lhes disse isso. Penso que nunca iriam compreender.

Já anteriormente os exames que tinha tido necessidade de fazer tinham sido desagradáveis. As ecografias eram um suplicio. A única coisa que ajudava a Laura a tolerar era o pensamento de que tudo aquilo haveria de ser uma preparação para o parto. O gel usado nas ecografias era indiscritível. Ainda hoje tem pesadelos com isso.

Sete de março de 2021. Laura, mas também Raúl não haveriam de esquecer. As contrações aumentavam, mas Laura sabia que já não havia simulacros. As coisas estavam programadas e sairam de casa há hora programada para se dirigirem para o hospital. Laura não dispensou o seu cobertor. Na verdade o cobertor era o mesmo que tinha sido comprado para o seu bebé, para o Ricardo. E Laura queria levá-lo. Trazia-lhe conforto.

As coisas estavam todas preparadas e a equipa médica e de enfermagem já sabiam que além de irem fazer um parto, este seria um parto de uma mulher autista e as coisas precisavam de ser pensadas de uma forma ligeiramente diferente. Mas precisavam, sob pena de estar a traumatizar a mãe. Tal como muitas mulheres autistas referem que quando mencionaram a necessidade de levar determinados objectos, a equipa médica e de enfermagem as descompuseram e de todo as compreenderam.

Da mesma forma que quando algumas destas mulheres se queixaram da luz mais intensa e também de alguma da linguagem usadas pelos médicos e enfermeiros, sente que foram completamente desvalorizadas e algumas até humilhadas numa situação tão frágil mas também tão especial. Uma mulher disse que iria levar os óculos escuros, tal como em outras situações o fazia e refere que a sua médica se riu e disse que era uma excelente piada.

O momento estava cada vez mais próximo. As dores sentidas por Laura eram únicas, tal como o momento e o desejo de vir a ter o seu bebé no colo dali a alguns minutos. Raúl pediu para assistir ao parto. Foi uma situação que foi debatida entre ambos durante algum tempo e que a médica os ajudou a compreender melhor a importância para um e para o outro.

Eram dezanove horas e 24 minutos do dia sete de março de 2021, segunda-feira. Laura sente que renasceu quando sentiu o seu bebé Ricardo ser pousado em cima do seu peito. Chorou emocionada. Raúl também. Laura já tinha lido sobre tudo aquilo e estava preparada. Bem vindo Ricardo, ouviu-se na sala. E o Ricardo chorou pela primeira vez.

Nota do autor: este é o segundo de três texto que irão abordar o período de gestação, o parto e o pós-parto na mulher autista