Depois de um acidente, um músico ficou incapacitado e recorreu à hipnose para recuperar as suas aptidões. Logo na primeira sessão, enquanto esteve sob estado hipnótico, voltou ao tempo em que tocava e conseguiu executar peças difíceis, como antes era capaz de fazer.
Isso foi-se sucedendo até recuperar todas as suas capacidades e conseguir tocar normalmente, acelerando, assim, o processo de fisioterapia a que estava a ser submetido.
Esta é apenas um dos casos de sucesso que o psiquiatra Mário Simões já tratou com a ajuda da hipnose clínica, que não é mais do que um estado modificado de consciência (relaxamento diferenciado), que focaliza a atenção para o problema que se quer tratar. Nesta entrevista, este psiquiatra voluntário no Hospital de Santa Maria e professor Agregado de Psiquiatria e de Introdução às Ciências da Consciência da Faculdade de Medicina de Lisboa, desvenda todos os mitos desta técnica cada vez mais procurada como complemento aos tratamentos convencionais.
O que é a hipnose?
É uma modificação da nossa percepção, em relaxamento, através da palavra e ou da música, que faz com que a percepção fique diferente em relação aos estímulos externos e aos internos. A atenção e concentração, no assunto em terapia, aumentam, o que nos leva a perceber as coisas de modo diferente.
Algumas teorias defendem que podemos entrar num estado de hipnose de forma natural e que isso acontece com frequência. É verdade?
Sim. Todos nós nos hipnotizamos diariamente, às vezes por segundos, outras por minutos, e, nestes casos, a hipnose corresponde a um estado de sonolência, semelhante ao que sentimos quando estamos a acordar ou a adormecer. Também podemos entrar num estado de hipnose quando estamos perante uma obra estética, a contemplar uma paisagem ou absorvidos na leitura de um livro.
Contrariamente ao que se pensa, o estado de hipnose não é sinónimo de estar inconsciente…
Exacto. Alguns estudos conseguiram demonstrar a existência de um alter-ego (hidden observer, ou observador escondido), que observa o decorrer da sessão de hipnose e que, se o terapeuta fizer alguma sugestão que vá contra a ética da pessoa, a acorda. O paciente nunca está totalmente inconsciente mas pode acordar sem memória do que se passou, quando a hipnose decorre num estado profundo. Este é usado, frequentemente, para promover analgesia e anestesia e, nos restantes casos, fica-se num estado de hipnose superficial ou médio.
Então as pessoas nunca fazem ou dizem algo que não querem...
Correcto. Nem o paciente perde o controlo nem o terapeuta tem o controlo total da sessão (controla 80 por cento) e, muitas vezes, ambos ficam surpreendidos com o que está a acontecer. Há uma margem de manobra para ambos criarem, serem diferentes na abordagem dos problemas.
Qualquer pessoa pode entrar num estado de hipnose?
Sim. É uma característica própria de cada ser humano, mas o grau de hipnotizabilidade é variável. Cinco a dez por cento da população é facilmente hipnotizável, enquanto dez por cento sente grande dificuldade. A maioria tem um grau médio.
Como se induz um estado de hipnose a um paciente?
A hipnose começa por um estado de relaxamento, que tem início com a respiração e com música relaxante (pode ser clássica ou new age, o importante é que não tenha palavras). Depois, a própria palavra do terapeuta, repetida de forma cadenciada, dando sugestões relacionadas com o estado de relaxamento, tais como, «o seu corpo está pesado, a sua respiração é suave e prolongada, durma, durma...» ajuda o paciente a entrar em hipnose.
É possível uma pessoa auto-hipnotizar-se?
Sim. Com frequência dizemos aos pacientes para dar continuidade às sessões de hipnose em casa.
Para isso, ensinamo-los a pronunciar as palavras certas e recomendamos que as gravem e ouçam quando estiverem a fazer a auto-hipnose.
Um paciente pode ficar viciado nas sessões de hipnose?
A dependência do terapeuta é outro mito. Aliás, um tratamento que use a hipnose em circunstâncias ligadas à psiquiatria demora, em média, apenas sete a oito sessões.
Qualquer pessoa pode ser submetida a sessões de hipnose?
Existem algumas contra-indicações quando a pessoa tem uma doença mental grave, seja depressão ou esquizofrenia, primeiro porque é difícil que a pessoa entre em hipnose, segundo porque pode até complicar o problema, dado que neste estado vêm ao de cima componentes subconscientes, que estão muito na linha da própria doença.
Não aconselho também a grávidas, porque há interacções, vivências e emoções fortes que não sabemos até que ponto podem prejudicar o feto. Por último, também desaconselho a pessoas com uma doença cardíaca que não esteja controlada.
E as crianças, podem recorrer à hipnose?
Sim, até porque há um processo de indução de hipnose em crianças que está muito associado à brincadeira e foi mesmo proposto para adultos por Milton Erickson, o pai da hipnose moderna.
A hipnose é usada em cada vez mais problemas de saúde. Em quais é verdadeiramente eficaz?
É usada, sobretudo, para tratar fobias, como medo de andar de avião ou de falar em público, dificuldades de afirmação e dificuldades nas relações laborais ou familiares.
Tem havido um alargamento da hipnose para outros problemas e com resultados positivos, nomeadamente na ansiedade, insónias, tabagismo, dor crónica e doenças psicossomáticas.
Começa também a ser usada em doenças graves, onde não há uma psicogenia logo de início, mas onde a utilização da hipnose promove uma adesão maior ao tratamento e promove os recursos internos das defesas da própria pessoa. Entre essa utilização mais clássica e as mais modernas, ainda experimentais, podemos dizer que tem uma aplicação muito vasta.
É mais correcto dizer que é um tratamento complementar?
Exacto. A hipnose clínica deve ser usada integrada com outras psicoterapias.
E a forma como actua para todos esses problemas é a mesma?
Se a indução da hipnose é sempre feita através do relaxamento, existem técnicas diferentes consoante o tipo de problema em que queremos actuar. Se pretendemos fazer uma psicoterapia no sentido exploratório de uma causa eventual localizada no passado utilizamos uma técnica regressiva; se pretendemos utilizar a hipnose para tratar uma fobia vamos expor a pessoa, em imaginação, ao que desperta o medo; se está ansiosa devido a uma acção que acontecerá no futuro, usamos a progressão e levamos a pessoa a imaginar o futuro conseguido.
Esse passado ou futuro são fruto da imaginação ou a realidade?
Se é uma metáfora do inconsciente, uma suposta vida passada ou um mito pessoal, isso depende da interpretação que cada pessoa lhe dá. Há situações em que o inconsciente mantém a censura por lhe ser penoso lidar com o presente, daí que o paciente viaje para o passado ou para o futuro por lhe ser, assim, mais fácil lidar com o problema actual.
Em alguns países, a hipnose é usada nos hospitais para diminuir a dor. Em Portugal também se faz esse uso?
Sim, em parte, e esporadicamente integrada em projectos de investigação. Por um lado, cá, a hipnose ainda é vista com uma certa desconfiança. Por outro, um terapeuta despende cerca de uma hora e meia por sessão e, nos hospitais, não é rentável, a não ser que se verifique que, através da hipnose, se pode acelerar a recuperação.
Apesar de tudo, a hipnose é usada em situações pontuais. No hospital onde trabalho (Hospital de Santa Maria, em Lisboa), a hipnose clínica é usada na consulta da dor e em doentes queimados graves quando estão a fazer os pensos. Já foi usada, com bons resultados, em doentes com fibromialgia e cefaleias resistentes à terapêutica habitual.
Passo a passo
Veja como decorre uma sessão de hipnose clínica:
- Na primeira consulta, o terapeuta analisa a história clínica do paciente. É programada a primeira sessão de hipnose para a segunda consulta, bem como a técnica de hipnose mais adequada ao caso apresentado.
- Na segunda consulta, a pessoa deita-se num divã ou senta-se numa cadeira própria para o relaxamento e procede-se à sessão de hipnose, através da regressão ou exploração da infância, da progressão ou da exposição à fobia ou desenvolvimento de aptidões. O terapeuta vai anotando a conversa e as reacções do paciente.
- Entre as sessões de hipnose podem ser feitas consultas de integração, nas quais o terapeuta discute com o paciente tudo o que foi dito na sessão de hipnose, avalia o progresso e planeia a próxima sessão.
Como escolher um terapeuta
Os conselhos do psiquiatra Mário Simões:
- A hipnose clínica deve ser feita por pessoas que tenham um curso relacionado com as ciências da saúde, como por exemplo a Nutrição, a Psicologia, a Psicopedagogia, a Medicina ou a Enfermagem.
- O terapeuta deve ter um curso de hipnoterapia realizado numa instituição credível. Em Portugal, actualmente, existem duas instituições nessa situação: a Associação Portuguesa de Hipnose Experimental (IMAGINAL) e o Instituto Superior da Maia (ISMAE). A Associação de Hipnose Clínica de Portugal pode indicar terapeutas certificados. Recentemente foi inaugurado um Curso na Escola Superior de Educação João de Deus.
Texto: Rita Caetano com Mário Simões (psiquiatra)
Comentários