Já todos, em qualquer altura da nossa vida, ouvimos falar em hemofilia. Sabemos que se trata de uma doença que, basicamente, faz com que o sangue não coagule tão depressa como deveria e que atinge, principalmente, o sexo masculino. Em cada 10.000 bebés, um nasce com hemofilia, uma patologia rara que está na origem de um distúrbio hemorrágico crónico, de transmissão genética. Em média, segundo dados divulgados por organismos públicos, 40% dos casos identificados são considerados graves.
Em todo o mundo, estima-se que afete 350.000 pessoas. Em Portugal, serão cerca de 1.000. Em declarações à edição impressa da Prevenir, enquanto psicóloga da Associação Portuguesa dos Hemofílicos (APH), em meados da década de 2000, Ana Rita Dagnino lamentava que ainda existia "muito desconhecimento em relação a esta doença". Mais de uma década e meio depois, a patologia continua a suscitar muitas dúvidas. A especialista admite, todavia, que "é normal que assim seja", sublinha.
A explicação é simples. "Porque se trata de uma doença rara", justifica. Mas o que mais preocupa Ana Rita Dagnino são os mitos e as informações erradas sobre a hemofilia, um problema que se mantém atualmente. E, por isso, esclarece que, ao contrário do que se pensa, "os hemofílicos não se esvaem em poças de sangue". "A hemofilia não tem nada a ver com o vírus da imunodeficiência humana (VIH) nem com a sida", assegura a psicóloga. Nem é uma doença contagiosa, apesar de ser hereditária.
Maria João Diniz, coordenadora do Centro de Referência de Coagulopatias Congénitas (CRCC), a funcionar no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC), reconhecido pelo Ministério da Saúde em 2017, define hemofilia como "uma doença hemorrágica crónica de transmissão hereditária", que surge "quando existe uma mutação genética no cromossoma X, onde estão os genes que codificam os fatores de coagulação", esclarece a antiga responsável pelo Centro de Hemofilia do Serviço de Imunohemoterapia do Hospital de São José, em Lisboa. As pessoas com hemofilia têm níveis baixos ou até mesmo ausência de um desses fatores da coagulação no seu sangue.
Esta doença atinge maioritariamente os homens, que têm apenas um cromossoma X. As mulheres têm dois, pelo que um compensa o outro. No entanto, são portadoras do gene da hemofilia e podem transmiti-lo aos filhos. Apesar de esta ser uma patologia hereditária, que só pode ser transmitida desse modo, "pelo menos 30%dos casos ocorre devido uma nova mutação do gene na mãe ou na criança. Nestes casos, não existe história prévia de hemofilia na família", esclarece a especialista.
"Numa família sem história, a existência de hematomas desproporcionais aos traumatismos e hemorragias fazem suspeitar que se está perante hemofilia", refere ainda. "Uma análise simples de doseamento dos fatores 8 ou 9 [os fatores de coagulação do sangue] faz o diagnóstico", explica. Se a mãe for portadora, os testes de diagnóstico pré-natal podem ser feitos, rapidamente, antes de o bebé nascer. "É aconselhável fazer o estudo genético dos doentes", recomenda também Maria João Diniz.
Os principais problemas associados à doença
Ao contrário do que é comum pensar-se, "os hemofílicos não se esvaem em poças de sangue", sublinha Ana Rita Dagnino. As hemorragias são, sim, um problema, mas "as principais e as que causam mais sequelas são as hemorragias internas", explica Maria João Diniz. "Nomeadamente, as hemorragias dentro das articulações, as chamadas hemartroses", refere ainda. São hemorragias espontâneas, não é necessário haver um traumatismo para ocorrerem e são típicas da hemofilia grave.
Os diferentes graus de gravidade distinguem-se pela percentagem de fatores de coagulação. "Os doentes graves têm menos de 1%, os moderados têm entre 1% e 5% e os que têm mais de 5% são pessoas que têm a forma ligeira da doença", esclarece. "Nos casos moderados ou ligeiros de hemofilia, as hemorragias intra-articulares são muito raras", refere ainda. "Muitas pessoas só se apercebem de que sofrem da doença quando fazem extrações dentárias ou quando são submetidas a cirurgias", refere.
Os cuidados redobrados que o período da infância exige
A infância é um dos períodos que exige maior vigilância. "Pequenos traumatismos podem espoletar hemorragias graves. Uma queda pode ser pouco importante para uma criança saudável, mas não para uma com hemofilia", alerta a imunohemoterapeuta. Os médicos que acompanham essas crianças costumam fazer recomendações gerais de proteção. "Devem ter cuidado com os bicos das mesas e, sempre que andarem de triciclo ou de bicicleta, devem usar capacete", refere Maria João Diniz.
Mas a superproteção da criança com hemofilia por parte dos pais não é algo desejável. Muito pelo contrário. "A maneira como a criança encara a sua hemofilia depende da forma como os pais a encaram", assegura a psicóloga Ana Rita Dagnino. Em Portugal, a APH é uma das organizações a que os progenitores podem recorrer para obter mais informação. "Hoje em dia, um adulto com hemofilia pode ter roblemas decorrentes do facto de não ter tido acesso a tratamento precoce", alerta.
"Muitos pacientes podem sofrer de patologias a nível muscular e articular e viver com dor crónica. Mas é possível, do ponto de vista psicológico, ajudar as pessoas a aprenderem a viver com essa limitação", acrescenta ainda a especialista. Apesar de se tratar de uma doença crónica, atualmente "é possível viver sem sequelas articulares", corrobora a imunohemoterapeuta Maria João Diniz. O trabalho que tem desenvolvido ao longo dos anos permitiu-lhe ter essa certeza nos dias de hoje.
Como melhorar a qualidade de vida dos dentes
Com a quantidade certa de produtos terapêuticos e um cuidado adequado, as pessoas com hemofilia podem ter vidas perfeitamente saudáveis. O atleta olímpico britânico Alex Dowsett é a prova disso. Nos tempos que correm, a doença é tratada pela administração do fator da coagulação em falta no sangue, que é fabricado a partir de plasma humano ou de processos biotecnológicos, através de uma injeção intravenosa. Esta solução é possível "a partir dos dois ou três anos de idade", explica a médica.
Em Portugal, o tratamento é, por norma, disponibilizado através dos centros de tratamento de hemofilia principais e de vários outros centros regionais com suporte limitado para pacientes com hemofilia. Para além disso, procura-se ensinar os doentes a fazer a terapêutica domiciliária, pelo que, sem ser para ir buscar o tratamento, apenas "necessitam de ir ao hospital semestralmente ou de ano a ano, dependendo da gravidade da hemofilia", acrescenta a imunohemoterapeuta.
"Os benefícios do tratamento domiciliário não incluem só um aumento na independência ou um bónus de não ter de se deslocar ao hospital a qualquer hora para fazer tratamento, mas também uma maior e mais regular assiduidade escolar e laboral e a participação em atividades sociais fica mais facilitada", sublinhou, há uns anos, a APH em comunicado. "Se as hemorragias forem tratadas atempadamente, o período de incapacidade causado por cada episódio é normalmente reduzido", esclareceu.
A fisioterapia como tratamento complementar
Para além dos tratamentos disponíveis, há outras práticas desejáveis para um melhor prognóstico da doença. O desporto, principalmente a natação, é uma delas. "O doente, ao fazer desporto, fortalece os músculos e as articulações ficam mais equilibradas e resistentes a hemorragias", refere Maria João Diniz. Outra prática que se deveria valorizar mais para o tratamento da hemofilia, diz Ana Rita Dagnino, é a fisioterapia. "Para os doentes que têm problemas articulares, mas não só", avisa.
"Mas isto em Portugal ainda não é praticável. Tudo o que esteja fora do âmbito da medicina, ainda não é reconhecido, embora realmente seja necessário", criticou a psicóloga em declarações à edição impressa da Prevenir. Necessário não só pelo ganho em qualidade de vida do doente, mas também ao nível das próprias finanças públicas. "Ao investir-se nessas vertentes de tratamento, ir-se-ia poupar, no futuro, pois o doente não sofreria de incapacidade", considera a especialista.
A hemofilia em Portugal
Apesar dos progressos registados nos últimos anos, ainda há muito por fazer. "A equidade de tratamento em Portugal ainda não está 100% assegurada", defende Ana Rita Dagnino. "É impensável que todos os hospitais possam ter centros de acompanhamento especializados, porque se trata de uma patologia rara", reconhece. "Mas era importante que os doentes estivessem devidamente referenciados e que tivessem um acesso equitativo aos mesmos tratamentos", adverte a psicóloga.
"É mais difícil os que estão fora dos grandes centros urbanos terem acesso a um tratamento igual", lamenta. "Os distúrbios hemorrágicos em Portugal são ainda um tema que requer da comunidade médico-científica e das entidades governamentais um maior acompanhamento e interesse no que diz respeito à planificação, diagnóstico e divulgação destas patologias", refere também João Paulo Silva. "O vazio de políticas específicas para a hemofilia e outros distúrbios hemorrágicos traduz-se numa dispersão de meios, numa pobre planificação e gestão de recursos por parte do estado, numa desigualdade de acesso ao tratamento e ao sub-diagnóstico destas patologias, com implicações graves para a saúde daqueles que delas padecem", aponta.
"É necessário aumentar os conhecimentos sobre distúrbios hemorrágicos e do seu impacto na vida dos pacientes e reforçar a sua importância como uma prioridade na política de saúde", acrescenta o ex-presidente da APH. Em Portugal, existem cerca de 1.000 hemofílicos. "Uma das principais preocupações dos doentes com hemofilia e dos pais de crianças hemofílicas é a possibilidade de contração de infeções como o VIH, hepatite C ou a doença de Creutzfeld-Jacob", alertou, em 2012, a APH.
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