Numa altura em que está a ser debatido um projeto de lei relativo à publicidade de jogos a dinheiro e apostas durante o dia na Assembleia de República, gostaria de começar por referir que a evidência arqueológica/científica nos mostra registos inequívocos de apostas a dinheiro que remontam há mais de 4000 anos em diversas partes do mundo (Mesopotâmia, antigo Egipto e China). Recuando ainda mais na história do mundo, foram encontrados dados de jogo primitivos feitos de osso com dezenas de milhares de anos.
As descrições de pessoas a caírem em desgraça com jogos de azar remontando à Grécia e Roma antiga têm talvez como exemplo mais proeminente o de Nero. Para além de ter sido o responsável pelo fogo que destruiu grande parte de Roma, haverá registos em como perdeu a cabeça com apostas, transformou o seu palácio num “casino” e por fim encomendou a morte da própria mãe - episódios sugestivos de clara perturbação psíquica.
A ubiquidade do jogo quer no tempo quer na sua transversalidade cultural e geográfica, desde que existem sistemas monetários organizados, provará certamente que o interesse pelo jogo, motivado pelo desejo de ganhar/recuperar dinheiro e a perda da racionalidade associada estão inscritas em vias biológicas intrínsecas à nossa natureza humana e será um fenómeno ao qual dificilmente poderemos fugir se expostos o suficiente.
O que tem variado verdadeiramente ao longo da história e das culturas é a posição dos governantes que foram tomando posições desde a proibição (numa atitude paternalista - de proteção do cidadão de si próprio) até ao aproveitamento dessa apetência (através da organização de jogos ou da sua taxação).
Trata-se de um equilíbrio complexo de respeito pela liberdade individual/responsabilidade governamental no qual o próprio juízo do governante vai influenciar o seu financiamento (superior na liberalização pela aplicação de taxas e menor necessidade de combate a atividades ilícitas). Por outro lado, estudos revelam que são as famílias mais pobres as que mais jogam, quem sabe se alimentadas pela ilusão de que vão resolver de forma mágica os seus problemas financeiros.
Os dados no nosso país mostram uma prevalência de jogo a dinheiro de 65,7% (Balsa et al - 2015), e desde que aumentou a acessibilidade com a possibilidade de jogar através da internet e dos telemóveis, um aumento alarmante do jogo entre os jovens a partir dos 14 anos. Não há dados sobre a prevalência em Portugal, mas na Europa considera-se que a Perturbação de Jogo terá uma prevalência aproximada de 0.3% e os Problemas relacionados com jogo variando entre 0,5% e 3% (por exemplo em Espanha os problemas de jogo têm prevalência entre 0,9% e 2,5%). De forma geral os estudos mostram que esta perturbação estará subdiagnosticada recomendando-se maior atenção pelos médicos assistentes.
Os problemas relacionados com o jogo estabelecem-se num continuum entre o jogador a dinheiro normal e o jogador com critérios para "Perturbação de jogo" num crescendo de fenómenos psicopatológicos e de impacto na vida da pessoa.
Os sintomas valorizados no diagnóstico da perturbação de jogo são:
- A atividade tornar-se frequente e dominar a vida e espaço mental da pessoa;
- Ansiedade por jogar mesmo que episódica;
- Alterações do humor como irritabilidade ou sintomas depressivos quando impedido de jogar;
- Comportamento persiste mesmo após episódios de perda do controlo com acumulação de dívidas, mentiras, fraude ou roubo;
- Quebra do funcionamento familiar e/ou afetivo;
- Alterações no padrão de socialização incutidos pelo hábito de jogar;
- Impacto laboral ou problemas profissionais relacionados com o jogo.
O seu tratamento atualmente passa pelo acompanhamento psicológico individual e em grupo bem como o tratamento de co-morbilidades (ansiedade, depressão e dependência de substâncias). O acompanhamento da situação financeira por alguém com formação como um contabilista poderá ajudar a pessoa a melhorar o seu controlo financeiro, estabelecer metas realistas e consolidar créditos, sendo esta vertente muitas vezes posta erradamente em segundo plano.
Em relação à prevenção, as abordagens mais eficazes serão em primeiro lugar a não exposição (evitamento do jogo a dinheiro mesmo que esporádico e puramente lúdico) e programas de informação sobre os riscos de jogar e as reais probabilidades de ganhar dinheiro com esta atividade.
A publicidade nesta área é nitidamente falaciosa, incidindo quase exclusivamente na ideia de que se jogássemos iríamos ganhar dinheiro e dando a impressão que estamos a perder, estupidamente, oportunidades de ficarmos milionários. Adicionalmente, nos convívios, as conversas sobre o jogo recaem de forma tendenciosa para histórias em que dinheiro foi ganho (histórias sobre sorte e audácia são muito mais interessantes do que histórias de azar e promovem o individuo socialmente).
Confesso que não conheço os resultados das medidas antitabágicas algumas décadas à frente das medidas para limitar o jogo no nosso país. Admito que regulação mais apertada da publicidade poderá ser um passo na direção certa. No entanto, poderá não ser mais que fogo de vista num país onde se vendem raspadinhas nos hospitais, onde o governo sorteia carros com faturas da sorte e onde apostar a dinheiro reverte a favor de instituições de solidariedade social como que significando que é uma forma de ajudar quem precisa...
Um artigo do médico João Reis, psiquiatra responsável pela Consulta de dependências comportamentais do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e especialista no Hospital Lusíadas Lisboa.
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