Aos 12 anos, Ana Paula Silva foi obrigada a trocar as brincadeiras de rua por repouso absoluto, as guloseimas por uma dieta alimentar absolutamente rigorosa.
Insuficiente renal crónica há 38 anos, não esconde que a doença lhe roubou a adolescência e condicionou toda a sua vida.
Numa época, em que os conhecimentos sobre a insuficiência renal eram ainda muito escassos e os meios técnicos muitos rudimentares (hoje tudo seria diferente), viu-se obrigada a viver numa redoma de vidro.
Actualmente, com 50 anos, continua a manter acesa não só a luta contra a doença mas também a vontade de viver, graças à diálise e à alegria que encontrou no trabalho.
Uma adolescência perdida
Aos 12 anos Ana Paula Silva descobriu que não era uma criança como as outras e que jamais poderia ter uma adolescência igual à de tantas meninas da sua idade: «Os primeiros sintomas foram edemas. Se havia outro não me apercebi».
«À noite, por exemplo, deitava-me e tinha os pés muito inchados e, de manhã, o inchaço tinha-se estendido à cara ou aos olhos e não desaparecia. Fui ao médico e detectaram-me uma infecção nos rins», relembra.
«Na altura, há 38 anos, ainda se sabia muito pouco sobre esta doença, não se falava em insuficiência renal. Era uma infecção nos rins e era grave», recorda.
«Comecei logo com repouso absoluto e uma dieta rigorosíssima, sem sal nenhum, carne picada, puré, caldo de legumes... Tudo o que não obrigasse a uma sobrecarga dos rins. Com o corte total do sal na minha alimentação, desinchei logo, porque a minha função renal não estava ainda totalmente perdida: eliminava líquidos mas não eliminava as toxinas produzidas pelos alimentos sólidos», explica Ana Paula Silva.
Frente-a-frente com a morte
De um dia para o outro Ana Paula Silva foi obrigada a crescer muito depressa, longe da realidade e do ambiente normal de uma criança da sua idade e a gerir emocionalmente esta partida do destino: «Sabia que a doença tinha gravidade porque num momento estava a brincar e noutro vi-me deitada numa cama».
Mas só um pouco mais tarde, quando foi internada pela primeira vez, para fazer uma biópsia (após um mês de tratamento sem melhoras), é que Ana Paula Silva teve a percepção que podia morrer.
«Internaram-me no hospital Curry Cabral (o único em Lisboa que dava assistência a doenças graves e que dispunha de máquinas de diálise) e o que vi foi chocante: as pessoas iam para ali para morrer. Era o corredor da morte. Todos os dias chegava alguém para fazer diálise, estava um dia, dois, uma semana, um mês, nunca se sabia quanto tempo seria», sublinha.
«Era enquanto a pessoa tivesse capacidade ou resistência física para aguentar um tratamento muito rudimentar e que servia apenas para prolongar a vida. Uma pessoa estava ali de manhã e à tarde podia já ter morrido», conta ainda.
Hoje com 50 anos, Ana Paula Silva reconhece que, apesar de tudo, teve muita sorte com os médicos que a acompanharam: «Na altura, uma médica disse à minha mãe que se eu não tivesse muito cuidado ia acontecer-me o mesmo que àquelas pessoas que tinha visto no hospital».
Assim, seguiu à risca as recomendações médicas e conseguiu protelar os tratamentos de diálise, que eram, na altura, um «pronúncio de morte», até à idade adulta.
Os meandros da insuficiência
A insuficiência renal crónica pode ter várias causas. Ana Paula Silva padece da mais comum e, felizmente, menos nociva. «A minha doença chama-se glomerulonefrites, que pode ter sido causado por um estafilococo, uma infecção de garganta, qualquer coisa que não foi devidamente tratada e alojou-se no rim e o foi minando», desabafa.
«Quando apareceram os edemas e a minha doença foi detectada, já tinha os dois rins afectados e a doença já estava muito desenvolvida. Não havia hipótese de cura», acrescenta ainda.
Mas os médicos que a acompanhavam não baixaram os braços e ao tomarem conhecimento de um novo tratamento à base de anticoagulantes introduzidos no soro, não hesitaram em administrar-lho.
«Estava 24 horas consecutivas a receber soro com anticoagulantes, que é um produto que dilui o sangue (também usamos na diálise). Estive nove meses internada, porque precisava de fazer análises diariamente. Fiz lá os 14 anos. Foi a coisa mais traumatizante da minha vida», recorda.
«A minha adolescência foi-me roubada. Abandonei a escola e, até aos 26 anos, altura em que comecei a fazer diálise, não trabalhava. Vivia uma vida muito restrita em casa», revela.
A vontade de viver foi mais forte
Criada numa autêntica redoma de vidro, isolada e com uma alimentação super rigorosa, Ana Paula Silva, contrariamente, ao que esperava, acabou por ganhar uma nova vida a partir do momento em que começou a fazer diálise. «Se até aí a minha vida já era tão restrita, pensava que só podia ser pior. Mas quando entrei em diálise não aconteceu isso, melhorei muito».
Na verdade, graças aos cuidados que tinha com a alimentação, Ana Paula Silva conseguiu protelar a diálise até aos 26 anos, numa fase em que esta técnica já tinha evoluído razoavelmente.
«Quando eu comecei a piorar ainda a hemodiálise não tinha avançado, mas houve uma abertura do Governo português para que os doentes pudessem ir tratar-se a Espanha e foi aí que muitos começaram a sobreviver.
Mas, graças aos cuidados todos que tinha com a alimentação, ainda consegui aguentar mais quatro anos até entrar em diálise», assegura.
«Entretanto, começaram a abrir clínicas em Portugal e os doentes a regressar; salvaram-se muitas vidas. Quando eu entrei em diálise aos 26 anos, em 1983, correu tudo bem», regozija-se.
Uma nova vida
Após iniciar os tratamentos de hemodiálise, Ana Paula Silva sentiu necessidade de mudar a sua vida. «Senti que não me podia deixar condicionar por aquela máquina», recorda.
«Lembro-me que nos primeiros tempos andava muito deprimida, chorava todos os dias e o meu médico aconselhou-me a ir a um psicólogo, que me disse uma coisa que me marcou muito», conta.
«Era eu que tinha de dar um passo para mudar a minha vida e foi assim que comecei a pensar que tinha de fazer qualquer coisa, que não podia ir para a diálise e ficar o resto do tempo todo fechado em casa à espera de ir novamente para a diálise», revela.
O tempo que passava com o irmão mais novo (para quem foi uma segunda mãe) ajudava-a a esquecer a doença, mas não era suficiente. Tinha abandonado a escola, ainda tentou voltar a estudar à noite, mas voltou a ficar muito doente e teve de desistir.
Até que uma pessoa amiga a incentivou a tirar um curso de dactilografia. Seguiu o seu conselho (tinha então aos 27 anos) e, pouco depois, surgiu a oportunidade de trabalhar em part-time. «Ganhava pouco mas foi a melhor coisa que me aconteceu», realça.
«Foi aí que comecei a pensar que havia outra vida e não só a doença. Aprendi a trabalhar e a conviver. O trabalho foi uma salvação. Lutei muito, esforcei-me muito porque percebi que queria mais da vida», revela.
Hoje, Ana Paula Silva trabalha todos os dias na Associação Portuguesa de Insuficientes Renais, onde é administrativa, e isso ajudou-a muito: «Ali somos uma família e funcionamos como um todo. Quando vou de férias, ao fim de algum tempo já sinto saudades do meu trabalho».
Quanto aos cuidados que tem no dia-a-dia, Ana Paula Silva diz que já não precisa de seguir regras tão rígidas porque a diálise evoluiu imenso, dando aos doentes uma outra liberdade. «Passam-se menos horas no tratamento, há mais qualidade no tratamento, pode fazer-se outra alimentação. A primeira asneira que fiz depois de entrar em diálise foi comer favas e não me fizeram nada bem», ri-se.
«Esta doença condicionou a minha vida, mas sei que tenho sido muito forte e agora, que os anos começam a passar, torna-se mais difícil, mas arranjo sempre uma razão que me faz saltar da cama e seguir em frente. E, sem dúvida, que o apoio da família, no meu caso, em especial da minha mãe, tem sido fundamental», confessa.
Para a Ana Paula Silva, o único senão da evolução tecnológica dos últimos anos tem a ver com aquilo que se perdeu em termos humanos: «Há uns anos faltava-nos a tecnologia, os medicamentos, mas o lado humano era muito valorizado. Hoje, é o contrário. Em muitos casos, não há afectividade entre as pessoas, entre os doentes e aqueles que nos tratam».
Os conselhos de Ana Paula Silva
Sociabilizar. «Hoje em dia, felizmente, não é preciso condicionar a vida como condicionei a minha. Os doentes podem e devem continuar a estudar, sair, conviver com os amigos, fazer uma vida normal dentro das limitações que, felizmente, hoje são poucas».
Cuidados, mas poucos. «A diálise evoluiu imenso, dando aos doentes uma outra liberdade. O cuidado mais importante continua a ser a alimentação, mas, se não se abusar, uma pessoa consegue sentir-se bem durante todo o dia».
Namorar, casar e ter filhos. «Na altura em que fiquei doente, as mulheres dificilmente engravidavam, tinham anemias gravíssimas. Hoje tudo isso é possível».
Esquecer a doença. «Hoje há diálise, amanhã não. Vivam um dia de cada vez».
Texto: Evelise Moutinho
Fotografia: Estúdios António J. Homem Cardoso
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