Primeiro foi o azeite, depois as sardinhas e os ovos. Agora, tudo indica que sejam os laticínios gordos os próximos a ser absolvidos do estigma de fazerem mal à saúde. Durante anos, disseram-nos que devíamos evitar a gordura saturada do leite, queijo, iogurtes e manteiga. Uma informação que muitos adotaram de imediato. Assistimos à chegada de cada vez mais versões light, fat free e 0% gordura às prateleiras dos supermercados e, em nome da saúde e da silhueta, aprendemos a preferi-los.
Só que os resultados dos estudos de larga escala (feitos ao longo de um largo período de tempo) e revisões de estudos estão a contradizer a ideia até aqui aceite de que a gordura dos laticínios contribui para a obesidade ou para as doenças cardiovasculares. Investigações recentes têm vindo a concluir que o consumo de laticínios integrais, com a sua gordura natural, não tem implicação no aumento de peso ou doenças cardíacas e poderá até ajudar a emagrecer e a preveni-las.
O que já se descobriu
Em 2015, uma revisão de estudos, publicada no European Journal of Nutrition concluiu que quem consome laticínios gordos não tem risco superior de vir a ter doenças cardiovasculares ou diabetes tipo 2 e tem até menos risco de engordar. Outra revisão de estudos, publicada no Annals of Internal Medicine, mostrou não existir correlação entre a ingestão de gordura saturada e os níveis sanguíneos de gordura saturada.
Mais recentemente, já em 2016, uma pesquisa divulgada na revista científica Circulation, em março deste ano, concluiu o mesmo no que toca à gordura saturada dos laticínios, ou seja, que não há razão para preferir produtos magros. Os investigadores analisaram o sangue de 3.333 participantes de um estudo prospetivo, o Health Study of Health Professionals Follow-up, coletados há 15 anos.
Durante esse processo, procuraram os biomarcadores de ácidos gordos dos laticínios. Depois averiguaram a incidência de diabetes nessas pessoas desde então. A conclusão não deixa margem para dúvidas. As que consumiram mais laticínios gordos tiveram menos 46 por cento de incidência de diabetes comparativamente com as que comiam regularmente produtos lácteos light.
O ataque cardíaco de Eisenhower
Mas, afinal, por que é que começámos a fugir das gorduras? «A ideia de que os laticínios gordos são para evitar vem da mesma fonte que, nas últimas décadas, nos andou a dizer para cortar nas gorduras em geral, incluindo as que hoje já sabemos serem boas, como as do azeite e das sardinhas, mas sobretudo, como ainda se defende, nas gorduras saturadas da carne, ovos e laticínios», explica Ana Carvalhas.
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O (mau) exemplo de Dwight Eisenhower
A origem desta história é contada no livro «The Big Fat Surprise», onde a jornalista Nina Teicholz recua a 1955, ano em que o então presidente dos Estados Unidos da América, Dwight Eisenhower, sofreu um ataque cardíaco e o seu médico oficial veio em conferência de imprensa recomendar aos norte-americanos que cortassem relações com as gorduras. A recomendação baseava-se nas investigações do nutricionista Ancel Keys, o primeiro a correlacionar as doenças cardiovasculares com o consumo de gordura saturada.
«Os dados em que Keys se baseou no seu estudo de comparação de sete países foram manipulados, como se veio a revelar mais tarde», conta Ana Carvalhas. «Existe uma correlação não com a gordura, mas sim com o açúcar», sublinha a especialista portuguesa.
«Contudo, o estrago estava feito e rapidamente a indústria alimentar criou milhares de produtos processados sem gorduras, mas com mais açúcar para compensar», esclarece. «Não tenho dúvidas de que a atual epidemia de obesidade e doenças cardiovasculares está ligada a este fenómeno», afirma ainda a nutricionista.
Gordura versus açúcar
Dariush Mozaffarian, que conduziu o estudo publicado em março de 2016, explicou as conclusões à revista Time. «Não há evidência de que quem consome laticínios magros tenha mais saúde do que quem consome laticínios gordos, pelo que não faz sentido recomendar opções com redução de gordura. Pelo contrário, parece até haver benefícios em consumir produtos lácteos gordos, embora ainda não se saiba bem como estes benefícios operam e seja necessário fazer mais estudos», disse.
Sabe-se que o consumo de laticínios com a gordura natural não está associado ao aparecimento de obesidade e doenças cardiovasculares. O que não se sabe ainda é se contribuem para a melhoria desses problemas, como alguns cientistas defendem. Quem corta nas gorduras saturadas tem maior probabilidade de desenvolver obesidade e diabetes, mas isso pode ocorrer apenas porque as substitui por mais hidratos de carbono e açúcar e não porque as gorduras saturadas sejam protetoras.
Os próximos estudos irão tentar deslindar esta matéria. «A correlação entre gorduras saturadas e doenças cardiovasculares não tem sustentação científica. Ora, os produtos light e magros são precisamente alimentos em que se retirou a sua gordura natural e adicionou artificialmente açúcar e este, sim, é muito prejudicial à saúde», defende Ana Carvalhas.
«Vai demorar algum tempo, mas não tenho dúvida de que acabará por ser unânime que a gordura é benéfica e o açúcar o vilão», refere ainda. Claro que isto não significa que temos luz verde para abusar das gorduras, alerta Dariush Mozaffarian. «Temos de parar de fazer recomendações com base na demonização ou endeusamento de um nutriente e perceber que a comida funciona como um todo», adverte.
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Reduzir na gordura pode… engordar!
Além das questões de saúde, quem aposta no consumo de laticínios magros para manter a linha pode estar a cometer um erro como explica Ana Carvalhas. «Muita gente ainda pensa que comer gordura faz o corpo acumular gordura. Afinal, a gordura até tem mais calorias. Mas os hidratos de carbono são mais facilmente transformados em gordura. O corpo gasta muito mais energia a digerir a gordura e esta tem um efeito muito mais saciante», constata.
«Aliás, o nosso organismo está mais preparado para metabolizar gordura; é isso que faz desde a pré-história e de forma muito eficaz. Mas, pelo contrário, nunca comemos tantos hidratos de carbono como hoje e nunca fomos tão sedentários. Não precisamos de tantos hidratos e menos ainda de açúcar adicionado artificialmente aos alimentos», refere ainda.
«Alguns cereais de pequeno-almoço têm 40 por cento de açúcar», sublinha. «O iogurte light que comemos ao lanche porque nos preocupamos com a linha não tem gordura, que não nos ia fazer mal nenhum, mas pode ter 14 a 20 g de açúcar adicionado, o que mexe com o mecanismo da insulina. Em pessoas mais sensíveis, menos eficazes a gerir este processo da regulação do açúcar no sangue, isto é a receita certa para engordar ou vir a desenvolver diabetes», avisa.
Os benefícios dos laticínios gordos
As principais explicações que sustentam a posição dos especialistas a favor do consumo de laticínios gordos, segundo Ana Carvalhas, nutricionista:
- Regulam a insulina e a glicose
«Ao contrário dos hidratos, a gordura não mexe com o mecanismo da insulina e não causa picos glicémicos», defende a especialista.
- Têm um efeito saciante
«O corpo demora mais a digerir a gordura, o processo é mais gradual. Quem consome gordura tem menos fome e não sente necessidade de compensar com mais hidratos, pelo que vai comer menos», explica.
- Têm menos açúcar
As bactérias presentes em alguns laticínios fermentados (queijo, iogurte) digerem o açúcar do leite. «Por isso, estes alimentos têm menos açúcar do que o leite e vão interferir menos no mecanismo de produção de insulina e produzir menos picos de glicose», assegura.
- Melhoram o metabolismo
«Os ácidos gordos dos laticínios podem ter um papel positivo na regulação hormonal que gere a quantidade de energia que o corpo queima e a gordura que armazena», diz.
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Ingerir menos açúcar será sinónimo de menos gordura corporal
O consumo de açúcar, associado à acumulação de gordura corporal, pode (e deve) ser reduzido através de várias estratégias. Estes são os comportamentos que deve adotar:
- Veja os rótulos
Alimentos que contenham mais de 7 gramas de açúcar por 100 gramas devem ficar na prateleira do supermercado.
- Evite os produtos magros, light ou 0% gordura
Ao contrário do que possa pensar, todos eles têm açúcar adicionado, pelo que nem sempre são a solução milagrosa que muitos procuram.
- Prefira hidratos de carbono complexos
Estão presentes no pão e no arroz integrais. O consumo de hidratos de carbono simples (arroz, batata, massa), para quem é sedentário, não deve ser superior a 100 g por dia, distribuídos por quatro ou cinco refeições.
Texto: Bárbara Bettencourt com Ana Carvalhas (nutricionista)
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