Mais informação não estabelece uma relação de causa/efeito com mais e fundamentado conhecimento. As consequências, também no mundo da alimentação, podem ser graves, como bem o sabe João Rodrigues, nutricionista, doutorado em ciências biomédicas que, inclusivamente, alerta para “atitudes criminosas, como fazer alguém acreditar, por exemplo, que consegue curar um problema oncológico com a alimentação”.
Para sublinhar o carácter único de cada alimento [uma maçã não é igual a uma pera, a massa quebrada não é igual à massa folhada], o especialista em nutrição, entrega aos escaparates nacionais o livro “Duelos de Alimentos - Descubra os vencedores inesperados” (edição Marcador).
“Por muito parecidos que sejam dois alimentos, nenhum é perfeito, e por isso o ideal é ir variando, consumindo com maior frequência os alimentos mais nutritivos, como é óbvio”, sublinha João Rodrigues, também autor do blogue “Mundo da Nutrição”.
Mote para à conversa percebermos como as nossas escolhas alimentares pedem esclarecimento e capacidade para “separar o trigo do joio”, saber resistir ao marketing da indústria alimentar, aprofundar a literacia na leitura dos rótulos, perceber que não há superalimentos [embora com uma exceção] ou, no âmbito mais alargado, aprovar e aplicar leis que “protegessem as famílias, e, em particular, os mais novos” e “a criação da figura do nutricionista escolar”.
Ao levar para o ringue as duplas de alimentos, o especialista em nutrição não procura vencedores absolutos: “os duelos não têm como objetivo dizer que um alimento é mau e outro é bom. Em cada duelo procuro expor quais são as principais mais-valias e as principais limitações nutricionais dos alimentos”.
Duelos que trazem surpresas, como veremos no embate entre o chocolate de leite e o chocolate negro, ou na contenda entre o nosso tão querido bacalhau seco e o congénere fresco.
Os últimos meses, de confinamentos domésticos, têm sido encarados como a oportunidade para nos reaproximarmos da “verdadeira” cozinha, de nos afastarmos do fast food, de cozinharmos. Será que nasce de um contexto muito específico e que voltaremos ao “velho” normal?
É verdade, este período que vivemos é sem dúvida uma oportunidade para nos envolvermos de forma mais saudável com a alimentação. Como passamos mais tempo em casa, podemos cozinhar mais, experimentar novas receitas, novos ingredientes, novas combinações, no fundo podemos (e devemos!) investir mais na nossa alimentação. Apesar de, com o retomar gradual das rotinas diárias, alguns dos “velhos hábitos” possam surgir, acredito que algumas das mudanças alimentares que foram implementadas durante a quarentena vão passar a fazer parte da alimentação diária das famílias. No fundo, fala-se num regresso a uma “nova” normalidade nas atividades diárias, e acredito que na alimentação também será assim.
Como sublinha no seu livro “Duelos de Alimentos”, vivemos numa época de abundância de informação, o que nem sempre significa melhor informação. No que respeita à nutrição, fala mesmo de “terrorismo” nutricional. Pode contextualizar?
Atualmente vivemos um período no qual existe uma percentagem muito significativa da população que está muito atenta à alimentação. Devido a isso, há muita gente a dar a sua opinião sobre os mais diversos assuntos relacionados com a alimentação e com a saúde. O problema é que muitas vezes quem emite essas opiniões não tem formação na área, o que significa que o risco de serem transmitidas ideias erradas é, infelizmente, real. E se nalguns casos estamos a falar de ideias mais ou menos inofensivas, também temos situações que correspondem quase a atitudes criminosas, como fazer alguém acreditar, por exemplo, que consegue curar um problema oncológico com a alimentação.
Na sua opinião essa desinformação serve que fins?
É difícil de responder a essa questão, pois eu considero-me alguém que acredita nas pessoas e nas suas boas intenções. Por isso quero acreditar que uma boa parte da desinformação surge por ignorância ou desconhecimento. Mas não tenho dúvidas que também há quem o faça em busca de fama, protagonismo social e interesses económicos.
Conhecimento é poder, usa-se dizer. Mas como orientar as nossas compras quando somos “bombardeados” com mensagens, entre outras, com fins comerciais, preocupadas, por exemplo, com os lucros de multinacionais e menos com o bem-estar de cada um?
Não é uma tarefa nada fácil. Para quem tem formação na área, torna-se mais simples perceber quais são as características dos produtos alimentares que devem ser valorizadas. Mas para quem não tem essa formação, o marketing poderoso que existe na indústria alimentar acaba por ser muitas vezes o principal responsável pelas opções alimentares. Devido a isso é fundamental saber ler e interpretar rótulos, procurar fontes de informação credíveis e, se necessário, consultar um nutricionista no sentido de perceber que cuidados se deve ter para se conseguir adotar uma alimentação saudável.
Por ser uma matéria que mexe com os nossos medos e apreensões, considera que estamos cativos de uma espécie de chantagem alimentar? Dou um exemplo, com a publicidade dirigida aos pais no que toca à alimentação para a infância.
Sem dúvida. Já tive oportunidade de escrever alguns posts sobre esse assunto no meu blogue Mundo da Nutrição e acho que devia haver mais coragem na criação de regras e leis que protegessem as famílias, e, em particular, os mais novos.
Se pensarmos numa ida ao um supermercado, muito raramente compramos apenas aquilo que estava a fazer falta, e que motivou a nossa ida a esse local. Na maior parte das vezes também compramos alguns produtos que nos foram “impingidos”, e isto é um assunto sobre o qual devemos refletir. Eventualmente a criação da figura do nutricionista escolar, que pudesse criar uma maior consciência alimentar nas crianças, desde cedo, podia ajudar nesse contexto…
Apesar de se ouvir falar muito em superalimentos, na minha opinião há apenas um que merece esse rótulo: o leite materno.
Há superalimentos?
Apesar de se ouvir falar muito em superalimentos, na minha opinião há apenas um que merece esse rótulo: o leite materno. Digo isto porque na minha opinião um superalimento é um alimento que nos dá tudo aquilo que precisamos para o correto funcionamento do nosso corpo. E por muito nutritivos que sejam os alimentos, nenhum, com exceção do leite materno, o consegue fazer.
Afirmar a existência de superalimentos, que valham por si mesmos, não contraria o princípio de uma alimentação variada?
Exatamente. Apesar de não ser fácil definir o que é uma alimentação saudável, se eu tivesse de escolher apenas uma palavra seria “variada”. E isso porque não há alimentos perfeitos, e como tal temos de variar aquilo que comemos para salvaguardar que não existem carências nutricionais, e que não nos expomos sempre aos mesmos riscos.
Olhar apenas para as calorias é algo extremamente redutor, e a prova disso mesmo são os planos de emagrecimento demasiado radicais
Considera que estamos muito focados na contagem de calorias e, menos, na qualidade dos nutrientes que compõem a nossa alimentação?
Infelizmente sim, principalmente quando há um objetivo de perda de peso, ou manutenção de um peso baixo. Obviamente que a contagem de calorias é muitíssimo importante, pois em última instância, o ganho ou a perda de peso é uma consequência de um balanço entre as calorias consumidas e as calorias gastas. Mas olhar apenas para as calorias é algo extremamente redutor, e a prova disso mesmo são os planos de emagrecimento demasiado radicais (com uma quantidade muito baixa de calorias), que muitas vezes induzem carências nutricionais. Ou seja, além das calorias devemos estar atentos aos nutrientes que são ingeridos. E se isto pode complicar um pouco a nossa alimentação, há ainda outros fatores a considerar, como os antinutrientes, os aditivos, os contaminantes e os compostos bioativos. Ou seja, comer bem é um desafio constante, que entra em consideração com muitas variáveis, e que deve ser valorizado por todos os que se preocupam com a sua saúde no presente e, acima de tudo, no futuro.
Ao escrever um livro em que faz o duelo entre alimentos, quer transmitir-nos a mensagem que, de facto, não há alimentos iguais, mesmo que o pareçam, como por exemplo, um pêssego e uma nectarina?
É isso mesmo. Diariamente nós fazemos muitas escolhas alimentares, e essa situação não é inócua para nós. Quando eu opto pelo alimento A em vez do B, estou a tirar partido das suas mais-valias, mas estou também a descartar as mais-valias do alimento que não vou consumir. E por muito parecidos que sejam dois alimentos, nenhum é perfeito, e por isso o ideal é mesmo ir variando, consumindo com maior frequência os alimentos mais nutritivos, como é óbvio.
Comer bem é um desafio constante, que entra em consideração com muitas variáveis, e que deve ser valorizado por todos os que se preocupam com a sua saúde no presente e, acima de tudo, no futuro.
Como ponto de partida para estes seus duelos há que perceber o que são macronutrientes e micronutrientes. Explicando-os de forma simples, o que são?
Começaria por definir o conceito de nutriente, que é qualquer componente alimentar indispensável para o correto funcionamento do nosso corpo. Dentro dos nutrientes existem os macronutrientes, que devem ser consumidos em maior quantidade, e que normalmente desempenham funções energéticas ou como blocos de construção para o crescimento e renovação do nosso corpo. Dentro desta categoria encontram-se os hidratos de carbono, as gorduras, as proteínas, a fibra e a água. Os micronutrientes desempenham normalmente funções mais específicas, sendo fundamentais para as nossas inúmeras atividades metabólicas. Destes fazem parte as vitaminas e os minerais.
O facto de os duelos apresentarem [em termos gerais] um vencedor é fator de eliminação do vencido? Por exemplo, no duelo entre a curgete e o pepino, a primeira sai vencedora. Mas isso não torna o pepino um mau alimento.
Claro que não, e essa é uma mensagem muito importante que eu procuro transmitir no meu livro. Os duelos não têm como objetivo dizer que um alimento é mau e outro é bom. Em muitos casos ambos os “combatentes” são excelentes opções alimentares. Em cada duelo procuro expor quais são as principais mais-valias e as principais limitações nutricionais dos alimentos, com o objetivo de informar os leitores acerca das escolhas alimentares que estes efetuam diariamente.
Surpreende-nos ver que um chocolate de leite é menos calórico que um chocolate negro. Estamos perante um mito alimentar, o de que o chocolate negro é mais benéfico para a saúde?
Essa é, eventualmente, uma das maiores surpresas nestes duelos. Em relação ao chocolate, importa destacar que os valores apresentados são valores médios, e que há uma grande variabilidade entre marcas. A questão dos potenciais benefícios do chocolate ultrapassa a sua composição nutricional, ou seja, muitas vezes fala-se de vantagens associadas ao consumo de chocolate negro devido ao seu teor em antioxidantes.
Do ponto de vista nutricional, não me parece que o chocolate negro seja uma melhor opção, e é isso que eu destaco no meu livro. No entanto, quanto maior a percentagem de cacau, maior a quantidade de antioxidantes existentes no chocolate, e nesse sentido o chocolate negro poderá ter alguma vantagem. Mas neste contexto em particular, parece-me uma falsa questão, pois se o objetivo é aumentar o consumo de antioxidantes, então a prioridade deve ser dada a legumes e fruta, pois se o chocolate for consumido em quantidades moderadas, que é como quem diz, pequenas quantidades, a quantidade de antioxidantes que fornece é residual. Ou seja, se o objetivo for consumir antioxidantes, há alimentos muito mais interessantes, mas se o objetivo for comer um pouco de chocolate, então deve escolher-se aquele que mais gostamos.
Do ponto de vista nutricional, não me parece que o chocolate negro seja uma melhor opção, e é isso que eu destaco no meu livro.
Um dos alimentos que mais diz aos portugueses, o bacalhau, também chega com surpresa na avaliação que faz no seu livro. O fresco leva a melhor. Porquê?
Acima de tudo por dois motivos. Em primeiro lugar porque o bacalhau fresco preserva melhor a sua riqueza nutricional, pois ao secar o bacalhau há várias vitaminas e minerais cujo teor diminui. Em segundo lugar porque mesmo bem demolhado, o bacalhau seco apresenta níveis muito elevados de sódio, sendo que o consumo excessivo de sódio é o principal fator alimentar associado ao aparecimento de hipertensão arterial.
Ainda nos alimentos que são parte da cultura alimentar portuguesa, a sardinha perde para a cavala. O que abona a favor desta última?
A sardinha e a cavala são dois peixes incríveis, não só em relação ao sabor, mas também do ponto de vista nutricional. Devido a isso podem e devem fazer parte de um padrão alimentar saudável. Apesar de muitas vezes ser vista como um peixe de segunda categoria, a cavala acaba por levar a melhor em relação à sardinha porque além de ser ligeiramente menos calórica, apresenta uma composição em macronutrientes mais interessante, e uma maior riqueza em vitaminas (principalmente vitaminas do complexo B e minerais.
O João Rodrigues inclui um capítulo com “duelos que fazem pecar” e onde encontramos as azeitonas, tremoços, croquetes, rissóis, bolos de arroz. Todos eles, entre as preferências nacionais. Temos tradicionalmente uma alimentação pecadora?
Infelizmente acho que sim. A disponibilidade alimentar atual é muito maior do que a que existia há algumas décadas e por isso gradualmente fomo-nos habituando a consumir diariamente “pecados alimentares”. A prova disso mesmo é que se alguém tiver de abdicar desse tipo de alimentos, mais tarde ou mais cedo vai sentir-se quase como se estivesse de castigo. Com isto não estou a defender que não se devam comer esses alimentos, mas sim que devem ser consumidos de forma menos regular, sendo que a regra deve ser comer de forma mais saudável e menos “pecadora”.
As leguminosas são uma classe de alimentos fantástica, que reúne um conjunto de características que justificam o seu consumo diário.
Também temos na nossa alimentação tradicional as leguminosas. Mas esquecemo-las. Entre estas, quais ganham os seus duelos?
As leguminosas são uma classe de alimentos fantástica, que reúne um conjunto de características que justificam o seu consumo diário. Aliás, a Roda dos Alimentos atual tem uma fatia dedicada às leguminosas, o que significa que se deve consumir este tipo de alimentos todos os dias. Além de serem baratas, de fácil armazenamento, deliciosas e versáteis do ponto de vista culinário, são ainda extremamente nutritivas! No meu livro há um duelo entre o feijão e o grão-de-bico, que é ganho pelo primeiro, ainda que ambas as leguminosas sejam excelentes opções alimentares.
Porque fez um duelo, especificamente, entre o pão de trigo e a bolacha Maria?
Os alimentos ricos em hidratos de carbono têm estado no centro das atenções por parte de quem quer perder peso, quase sempre pelos piores motivos. E normalmente o pão é considerado como um dos piores alimentos nesse contexto. Gostava de destacar que mesmo quando o objetivo é perder peso, há lugar para alimentos ricos em hidratos de carbono na alimentação diária. Estou a falar de pão, arroz, massa, batata.
Além disso, de entre os alimentos ricos em hidratos de carbono, o pão é dos mais interessantes, não só do ponto de vista nutricional (dependendo do tipo de pão, obviamente), mas também do ponto de vista calórico. Infelizmente há muitas pessoas que não sabem isso, e que eliminam o pão da sua alimentação, substituindo-o por bolachas, sendo que as bolachas Maria costumam ser um dos tipos de bolacha mais consumido. Esta situação é frequente em adultos e, especialmente em crianças. Mas como se pode verificar no meu livro, o pão é um claro vencedor desse duelo.
Finalmente, durante o confinamento, que alimentos teve sempre em sua casa?
Como estive em casa juntamente com a minha mulher e as minhas duas filhas, e fizemos todas as refeições em casa, tive sempre em casa quantidades abundantes de legumes (frescos e congelados), para fazer as sopas e para consumir como acompanhamento. Também fiz questão de ter sempre leguminosas, ovos e leite. Como aproveitei para fazer várias experiências culinárias, usei bastantes flocos de aveia, bem como vários tipos de farinha e de sementes para fazer pão (e dessa forma evitar sair de casa quase todos os dias para comprar pão). Mas confesso que não senti grande mudança em relação aos alimentos que já costumava ter regularmente em casa, a maior diferença foi mesmo nas quantidades que comprava, para poder ficar vários dias sem sair de casa.
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