Joana Amaral Dias viveu contra o seu corpo durante vários anos, de criança com uns quilos a mais, a extremamente magra para, depois, procurar o físico perfeito através do exercício físico excessivo. Na vida de Joana não existia equilíbrio. Joana “vivia sufocada pela comida e pelos treinos” num “comportamento era uma prisão disfarçada de liberdade”, como nos confidencia em entrevista.

Em 2022, Joana Amaral ofereceu à leitura o seu livro Faz as Pazes com a Comida (edição Manuscrito), obra que relata uma história de reconciliação com a vida, nomeadamente com a ideia de que “gordo” e “magro” não são por inerência das expressões, sinónimo para doente ou saudável. Joana, especializada em nutrição, alimentação e suplementação para desporto, desmistifica o mundo das dietas restritivas, desafia (pre)conceitos que, de tantas vezes repetidos, os tomamos como verdades irrevogáveis.

À conversa, Joana Amaral fala-nos do caminho libertador que tomou à boleia da Alimentação Intuitiva, de como o Índice de Massa Corporal é uma ferramenta ultrapassada ou de como as restrições alimentares, a longo prazo, desaguam no aumento de peso. A autora fala-nos de uma sociedade “gordofóbica”, aquela que elogia os magros, mesmo quando esta condição resulta de um distúrbio, e penaliza os gordos.

Restrição, infelicidade, culpa ou remorso, não são palavras que entrem no discurso de Joana quando o tema é alimentação.

joana amaral dias
créditos: Site de Joana Amaral Dias.

A Joana associa o ato de comer à felicidade. A sociedade atual está a privar-nos dessa alegria?

É importante compreender que o ato de comer pode trazer felicidade e emoção, mas nem sempre tem de ser assim. Por exemplo, se tivermos entre reuniões e só temos dez minutos para almoçar, faz mais sentido procurarmos algo que seja prático, que nos nutra, faça sentir com energia e fisicamente confortáveis, não tem de ser algo que nos traga felicidade.

O ritmo frenético ao qual vivemos priva-nos de muitas coisas, e com certeza que condiciona a nossa felicidade.

Hoje, chega-nos incessantemente através das redes sociais – e não só – a imagem de corpos perfeitos, de “arrasar” como se escreve habitualmente.  No entanto, como nos diz no seu livro, a procura do corpo perfeito, ou o ideal que dele fazemos, pode ser uma “espiral de autodestruição”. Porquê?

Porque geralmente esses corpos de “arrasar” não são sustentáveis. É preciso colocar o treino e a alimentação no topo das prioridades, impactando negativamente nos outros campos da nossa vida. Para manter esse corpo - se der para manter -, idem aspas. E temos de nos relembrar que a saúde é algo multifatorial. Se a nossa ideia de “alimentação saudável” cria stress ou limita a nossa vida, acho que está na altura de repensar o significado do termo “saudável”.

Outra razão que explica porque é tão difícil obter esse corpo é porque ele não é naturalmente saudável. Geralmente, o corpo fica abaixo do peso natural no qual está confortável para funcionar de forma eficaz. Chama-se a isto set point weight. Ficar abaixo deste peso tem também as suas consequências nocivas a nível de saúde metabólica.

Ou seja, a imagem deste corpo foi criada para estarmos incessantemente na busca para o ter e manter, e há uma indústria riquíssima a lucrar com essa busca.

O ritmo frenético ao qual vivemos priva-nos de muitas coisas, e com certeza que condiciona a nossa felicidade.

O que levou a Joana a ter uma relação doentia com o seu corpo?

Foi precisamente a busca desse ideal de beleza e fitness. Quando o consegui, tentei manter e ir ainda mais longe, ou seja, ficar ainda mais fit, ou seja, magra e musculada). Aproveito para dizer que, na maioria dos casos, conseguir o look de “arrasar” não resolve nada. Procura-se autoestima e amor próprio no reflexo do espelho, e geralmente, mais tarde ou mais cedo, leva a frustração. Amor próprio incondicional e autoestima não tem forma. É a capacidade de respeitarmos as necessidades básicas do nosso corpo, como a fome e o descanso, independentemente da forma que temos.

“A dieta é o único produto que 'compra' e que se não funcionar o consumidor é responsabilizado” - Sophie Deram, nutricionista
“A dieta é o único produto que 'compra' e que se não funcionar o consumidor é responsabilizado” - Sophie Deram, nutricionista
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A minha busca doentia por uma forma corporal fez-me desrespeitar as minhas necessidades.

Como se manifestou na sua vida a desordem alimentar?

Não tive desordem alimentar no sentido em que a minha alimentação não era desordenada, era até muito programada. Tive sim foi anos de disordered eating, que se classifica como um leque de comportamentos alimentares irregulares que são potencialmente nocivos para a nossa saúde. A certa altura, por exemplo, era incapaz de comer determinados alimentos sem sentir culpa ou uma sensação de falhanço, ir comer fora ou eventos sociais, eram momentos complicados quando envolviam comida ou então tinha episódios em que comia de forma descontrolada.

Dietas que nos privam de determinados alimentos, ou de parte deles, são perigosas?

Do ponto de vista mais banal, não comer determinados alimentos pode criar um deficit de vitaminas e minerais que são essenciais ao nosso bem-estar e que não são produzidos pelo corpo, vindo quase exclusivamente dos alimentos que comemos. Deste ponto de vista, deixar de comer determinados alimentos pode ser nocivo.

Num espectro menos óbvio, a privação tanto física (não comer determinado alimento), como mental (comer, mas sentir culpa ao fazê-lo), vai fazer com que o corpo crie fortes impulsos para comer esse mesmo alimento. Tudo isto é hormonal e biológico. É natural e expectável acontecer. Restrição na maioria das vezes leva a exagero, mais cedo ou mais tarde.

Porque nos diz que “estatisticamente, fazer dieta é como disparar um tiro que vai sair pela culatra”?

A melhor forma de lhe responder é citando o meu livro: “um terço a dois terços do peso perdido é ganho dentro de um ano e quase todo regressa passado cinco anos”. Na prática, o ciclo de ganho e perda de peso (chamado de efeito ioiô ou weight cycle) potencia os riscos de doenças cardiovasculares.

A longo prazo, depois de uma restrição energética, pelo menos um terço das pessoas ganha mais peso do que aquele que tinha quando começou a dieta ou qualquer forma de terapia que inclui restrição. Este padrão vê-se em diversos grupos populacionais, das pessoas sedentárias às ativas, em crianças ou idosos, “obesos” ou “magros”.

Parece que, a longo prazo, fazer dieta tem o efeito contrário ao desejado. Embora seja pouco discutida atualmente, esta preocupação não é recente. Nos anos de 1990, um estudo demonstrou que adolescentes que fizeram dieta, passado três anos tinham três vezes mais riscos de serem “obesos”. Outro estudo feito em pacientes, entre seis a 15 anos depois de uma intervenção de perda de peso, reportou que os sujeitos que inicialmente tinham o peso “normal” e que fizeram dieta tinham duas vezes mais risco de ganhar muito peso do que os sujeitos que não tentaram manipular o seu peso.

Isto são apenas alguns dados fornecidos pela literatura científica. A maioria das pessoas faz várias dietas ao longo da vida, o que nos mostra que elas ou não são sustentáveis ou não resultam a longo prazo (e não, não tem nada a ver com motivação). Fazer dieta é também uma forma de disordered eating e a principal razão para distúrbios alimentares. Para além do mais, sempre que uma dieta falha (não é a pessoa que falha, mas a dieta), ela sente-se com menos autoestima do que quando começou e vai procurar uma nova dieta para tentar desfazer os males da dieta anterior. Como é que uma coisa pode ser simultaneamente o problema e a solução?

O que nos diz Joana Amaral:

Receitas com substitutos saudáveis ou com a palavra “sem”: “na sua maioria têm como base a culpa alimentar e a necessidade de compensar algo”.

Superalimentos: “estratégia de marketing. Os ‘super’ esvaziam-nos a carteira”.

Jejum intermitente: “jamais pode ser intuitivo (jejum intuitivo é uma farsa)”.

Dieta paleolítica: “como necessidade básica que é, comer devia ser uma de muitas partes da nossa vida, em vez de a dominar”.

No seu livro diz-nos que o peso não é um indicador de saúde. Porquê?

Esta é uma pergunta complexa, mas vou tentar explicar de forma concisa. Primeiro que tudo, a saúde é multifatorial, pelo que só o peso não nos pode declarar saudáveis ou não saudáveis. Depois, existem pessoas que são consideradas com “excesso de peso” que são metabolicamente saudáveis, enquanto há pessoas que são “magras” e são metabolicamente não saudáveis (isto de acordo com literatura científica). A ferramenta usada para medir a saúde de uma pessoa que leva em consideração o peso é chamada de IMC [Índice de Massa Gorda]. Se pesquisarmos a origem dessa ferramenta, vemos que ela remonta 1830, e foi criada para categorizar o “homem normal”, não foi criada como um medidor de saúde Os sujeitos que participaram na contribuição deste índice foram homens brancos ocidentais europeus. Isto significa que não se considerou a diversidade corporal entre diferentes povos e etnias.

O peso não era um indicador principal da saúde de alguém até aos inícios do século XX, altura em que as companhias de seguros dos Estados Unidos começaram a criar tabelas com a altura e o peso com o propósito de determinar o valor a cobrar aos clientes. Há várias deficiências neste índice. Além de não ter sido desenhado com o propósito de ter uso médico e ter nascido com base em parâmetros de homens franceses e escoceses, o IMC também não considera idade, género, massa muscular e muitas outras características de um indivíduo

Um terço a dois terços do peso perdido é ganho dentro de um ano e quase todo regressa passado cinco anos.

O que é uma sociedade “gordofóbica”?

Pensemos assim, quase ninguém se importa de emagrecer, mas quase toda a gente tem medo de engordar, certo? Também vemos o ganhar gordura ou ser gordo como algo nocivo, certo? Ser gordo é ser menos bonito, é o que nos ensinam desde pequenos. Por outro lado, damos os parabéns quem emagrece sem saber o que se passa. Por exemplo, essa pessoa pode estar a passar por uma depressão ou anorexia ou estar com a autoestima completamente destroçada. Também tratamos as pessoas gordas de forma diferente do que as pessoas magras. Isto é ainda mais grave quando nos apercebemos que gordo não equivale a “não saudável”. E, acima de tudo, temos que nos relembrar que ninguém nos deve saúde nem ninguém nos deve magreza.

Também no seu livro, afirma que a indústria do fitness funciona de forma errada. A abordagem está mais centrada na imagem do que na saúde?

Bingo. Às vezes fica tudo misturado, porque se associa magreza com saúde.

Rugas, celulite, depilação. Lendo o seu livro estas preocupações dos nossos dias não se punham há algumas décadas. É a indústria da beleza que cria estes padrões de beleza para, depois, nos trazer a solução em forma de negócio?

É a indústria da beleza, da saúde e do bem-estar. Se repararmos, para algumas pessoas, ter celulite é um sinal de que está a descuidar a sua saúde, quando é algo perfeitamente normal. Algumas pessoas consideram que as mulheres terem pelos “não é higiénico” ou então que envelhecer é algo ruim para a saúde. Se retirarmos os filtros da sociedade, todas estas coisas são naturais e expectáveis do nosso corpo. E isto são apenas três exemplos.

faz as pazes com a comida
créditos: Pau Storch/Manuscrito

Em certo momento descobre a Alimentação Intuitiva (AI). Como se dá esse caminho?

Esse caminho dá-se quando já contava as calorias e macronutrientes que consumia dia a dia e me começava a aperceber que esse comportamento era uma prisão disfarçada de liberdade. Achava que ao saber exatamente o que ia comer, podia comer sem culpa, mas era uma lengalenga que repeti a mim mesma. Simplesmente não era verdade. Vivia sufocada pela comida e pelos meus treinos, e havia pouco espaço para outras coisas na minha vida.

Quando descobri a AI não a aceitei de imediato, levei cerca de dois anos a compreender do que realmente se tratava. Tudo isto porque a AI defende a permissão incondicional para comer, o que para mim não fazia sentido. Se me der permissão incondicional para comer, vou comer bolos o dia todo. Isso não faz sentido nenhum, pensava eu. Agora, sei que com a AI não é nada assim.

Vivia sufocada pela comida e pelos meus treinos, e havia pouco espaço para outras coisas na minha vida.

Como nos pode explicar a AI?

Uma forma muito rápida de explicar a AI é imaginarmos um mundo onde não há pressão social para ter uma determinada forma corporal, onde não existem dietas. Neste mundo, também temos condições para atendermos às nossas necessidades básicas como, por exemplo, termos o sono em dia, e temos mecanismos para lidar com o stress, ansiedade ou qualquer outro estado de espírito que nos pode levar a comer a mais por compensação. Se vivêssemos nesse mundo, então tínhamos uma alimentação intuitiva. Todas as pessoas que nunca fizeram dieta e que simplesmente comem, respeitando e compreendendo a sua saciedade, fome e satisfação, já comem de forma intuitiva. Compreendendo também que há dias em que naturalmente comemos mais e outros em que comemos menos.

Porque apresenta a AI melhores resultados do que dietas restritivas que todos conhecemos?

Primeiro que tudo, temos de compreender o que se considera como um “melhor resultado”. É preciso esclarecer que a AI não é uma dieta, pelo que o foco não é o emagrecimento. Acho que a grande chave da AI é que este é o único método que rejeita a cultura das dietas, ou seja, rejeita a ideia de enaltecer a magreza. Quando o foco é o nosso corpo, isto vai sempre significar uma dieta, ou seja, um deficit calórico. A AI foca-se na saúde e bem-estar da pessoa, analisando os hábitos, rituais e emoções da pessoa.

Sinteticamente, que abordagem faz a Joana Amaral à AI no seu livro?

No livro, começo por desmistificar o mundo das dietas e a desafiar o conceito de “gordo” e “magro”. Depois, levo o leitor numa jornada que começa no interior, analisando, compreendendo e desafiando certos hábitos ou comportamentos alimentares e em relação ao exercício físico, através de reflexões guiadas e de ferramentas práticas.

O que é a nutrição gentil?

A Nutrição Gentil é a abordagem que a Alimentação Intuitiva faz da nutrição. É importante referir que a AI não descarta a nutrição, muito pelo contrário, ela é uma peça importante do puzzle. Imaginemos que de um lado temos todas as comidas que nos dão mais prazer consideradas “não saudáveis” pela sociedade (como chocolate, bolos ou as batatas fritas) e do outro temos a comida mais natural (como alface, e tomate). A nutrição gentil está no meio, não descartando as comidas mais naturais, mas incorporando o prazer também. É, por exemplo, não ter culpa de levar o gelado que tem mais açúcar porque é esse que realmente vai satisfazer naquela ocasião, ou então comer tomate gratinado com um pouco de queijo, por exemplo, de forma a ter algo mais natural, mas com um toque especial. É uma forma de incorporar nutrição que traz satisfação e nos faz sentir bem de forma física e emocional.