A saúde é um direito. Mas, como todos os direitos sociais, só existe enquanto houver condições para o garantir. O Serviço Nacional de Saúde (SNS), tal como o conhecemos, só continuará a ser universal e tendencialmente gratuito se for protegido de abusos e de acessos desregulados. E isso exige coragem política para colocar a sustentabilidade acima do politicamente correto.
Portugal é e continuará a ser um país de acolhimento. Mas essa hospitalidade não pode comprometer os alicerces do nosso Estado Social. Em linha com o que já se faz noutros países europeus, o processo de imigração deveria obrigar à apresentação de um seguro de saúde válido, evitando que os encargos com cuidados de saúde sejam transferidos, de imediato, para o erário público. O acesso pleno ao SNS só deveria ocorrer após um período de contribuição efetiva, entre 5 a 10 anos, como sucede na Alemanha ou na Bélgica.
Defender regras de acesso mais justas ao SNS não é fechar portas, é bom senso orçamental, equidade intergeracional e respeito pelos que contribuíram para edificar este bem comum. O modelo atual, ao permitir entrada imediata e gratuita a milhares de recém-chegados mesmo antes de qualquer vínculo laboral compromete a sustentabilidade para todos. Mesmo quando começam a trabalhar, muitos destes cidadãos enfrentam vínculos precários e salários baixos, exigindo resposta social e um planeamento rigoroso, com seguros de saúde para estes migrantes, que podem ser acauteladas no próprio contrato de trabalho.
O problema agrava-se com o turismo de saúde, realidade reconhecida pela OCDE e já visível em várias regiões portuguesas. As urgências hospitalares, pela sua rapidez e ausência de cobrança efetiva, tornaram-se o epicentro do fenómeno. Em certos casos, é mais vantajoso vender uma casa nos Estados Unidos, adquirir um visto gold em Portugal e garantir acesso gratuito ao SNS nomeadamente nos casos oncológicos, do que enfrentar os custos astronómicos da saúde americana.
O SNS não pode continuar a ser a linha da frente de tudo e para todos. Há um ponto em que o humanismo precisa de dar as mãos ao planeamento. Não cabe aos profissionais de saúde, fazer cobranças administrativas ou triagens morais. Isso é um insulto à sua missão e um dilema ético desnecessário. A cobrança a estrangeiros não residentes deve ser feita por entidades externas ao SNS, como sucede na Alemanha (seguros obrigatórios) ou na Bélgica (faturação pelas mutualidades).
Há exceções, e essas são inegociáveis:
- Vacinação, por razões de saúde pública e impedir a importação de doenças.
- Cuidados na gravidez e no parto, por dignidade materna;
- Crianças, que não escolheram migrar e devem ser protegidas;
- Doenças de notificação obrigatória, como VIH, tuberculose ou hepatites;
- Situações de urgência com risco de vida, que devem ser tratadas e posteriormente faturadas.
A seguir a estes princípios, surge uma frente de atuação estratégica e subvalorizada: a saúde escolar. É nas escolas que se identificam crianças sem vacinação, sem médico de família, sem número de utente. É aí que os profissionais, em especial os médicos e enfermeiros de saúde pública, fazem o rastreio invisível que permite planear políticas públicas. Sem esses dados, não há plano; e sem plano, não há solução. Neste campo, os governos estão a falhar, precisamos de reforçar esta área, pois os danos não se verão só hoje, mas nas próximas gerações.
Entretanto, os dados mostram a fragilidade do sistema. De acordo com a Portaria n.º 23/2025/1, cerca de 40% dos episódios nas urgências são classificados com as cores “verde” ou “azul” ou seja, casos pouco ou nada urgentes. Em alguns hospitais, o número é ainda maior. Perante um sistema que, por desenho, não distingue de forma eficaz entre necessidade clínica real e procura inadequada, e que raramente cobra pelos atendimentos, é compreensível que qualquer pessoa, mesmo sem número de utente, veja nas urgências uma porta de entrada gratuita. O problema não está em quem procura, mas num modelo excessivamente permissivo e desregulado.
Esta discussão é política no melhor sentido da palavra e vamos ter eleições pelo que deve ser debatida. Exige liderança, regulação, coragem institucional e visão de longo prazo. O SNS não pode continuar à deriva, à mercê do improviso, de um Excel ou da boa vontade de cada profissional. Ou se governa com estratégia, ou continuaremos a correr atrás do prejuízo.
Termino com uma imagem íntima, num tom menos técnico e mais humano: imaginemos um SNS que não resiste, não por falta de vocação, mas por excesso de permissividade. Um SNS onde tudo é para todos, mas que acaba por não ser verdadeiramente de ninguém. O amor sem responsabilidade é abandono. A generosidade sem critério é desorganização. E um Estado que protege o seu SNS está, na verdade, a proteger a dignidade de todos migrantes, residentes ou apenas humanos.
Fontes e leituras adicionais:
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