
HealthNews (HN) – Como pode a abordagem One Health ser integrada de forma prática nas políticas nacionais de saúde, ambiente e agricultura em Portugal, e que desafios antecipa nesse processo?
Ricardo Dinis Oliveira (RDO) – A abordagem One Health (“Uma Só Saúde”) reconhece a interligação entre a saúde humana, animal e ambiental. Integrar essa abordagem nas políticas nacionais de saúde, ambiente e agricultura em Portugal pode trazer importantes benefícios — como a prevenção de zoonoses, o combate à resistência antimicrobiana e a resposta a mudanças climáticas. No entanto, essa integração exige mudanças estruturais e operacionais. É necessário estabelecer uma plataforma interministerial permanente, envolvendo os ministérios da Saúde, Agricultura e Ambiente, por exemplo, criar um Conselho Nacional One Health (CHOH) ligado à academia e unidades de investigação e com apoio do Estado, de modo a promover as políticas e as práticas da saúde numa perspetiva de interdependência.
HN – No Congresso Internacional 1H-TOXRUN, quais foram as principais conclusões que reforçaram a urgência de adotar a One Health como prioridade estratégica?
RDO – Num mundo cada vez mais interligado, onde as fronteiras entre a saúde humana, animal e ambiental se tornam cada vez mais ténues, é urgente que Portugal adote uma abordagem integrada e estratégica de One Health. As nossas conclusões de investigação são claras: não haverá saúde humana duradoura sem ecossistemas saudáveis e sem uma gestão integrada das interações entre humanos, animais e ambiente. Foi por isso evidente do nosso congresso que os investigadores em toxicologia e saúde sugerem que devem ser promovidos sistemas partilhados de vigilância epidemiológica, que cruzem dados sobre doenças humanas, animais e indicadores ambientais. Devem-se também rever as políticas e planos estratégicos (como o Plano Nacional de Saúde, Política Agrícola Comum (PAC), Plano Nacional de Energia e Clima), com metas convergentes de saúde, sustentabilidade e biodiversidade. Concluiu-se ainda que é preciso implementar projetos-piloto intersectoriais em áreas de risco (zonas rurais, zonas costeiras) para testar práticas One Health, que passam pela monitorização integrada de qualidade da água, poluentes ambientais, saúde animal e doenças zoonóticas.
HN – Que papel pode a formação universitária, nas áreas da Medicina, Enfermagem ou Ciências Biomédicas, desempenhar na promoção da literacia sobre a abordagem One Health?
RDO – É preciso introduzir desde já as abordagens One Health na formação de profissionais de saúde, como a medicina humana, veterinária, ciências forenses, biomédicas, ciências da nutrição, ciências ambientais, biologia e agronomia criando uma cultura de colaboração e pensamento sistémico. Ao integrar One Health nos currículos de base, as universidades garantem que os futuros profissionais de saúde compreendem desde cedo a natureza interdependente dos sistemas biológicos e sociais.
A abordagem One Health exige pensamento sistémico, trabalho interprofissional, análise de dados complexos e comunicação com profissionais de outras áreas. A universidade é o espaço ideal para desenvolver estas competências transversais, através de projetos de investigação transdisciplinares da medicina humana, veterinária e do ambiente. Adicionalmente, muitos estudantes seguirão carreira na gestão hospitalar, investigação ou políticas públicas. Também, a literacia One Health aumenta a capacidade de liderança transformadora e o desenvolvimento de soluções integradas. Existem já alguns planos de estudos que começam a ter unidades curriculares opcionais em One Health, mas precisam de se tornar obrigatórios e passar a inserir alguns módulos nesta temática em unidades curriculares como a Saúde Pública, Epidemiologia, Microbiologia e Ética. Faz ainda mais sentido incentivar estágios curriculares e projetos de mestrado com foco One Health em unidades de investigação do 1H-TOXRUN e INSA, INIAV e ICNF.
HN – De que forma os sistemas de vigilância integrados, propostos na carta aberta, podem melhorar a deteção precoce de ameaças à saúde pública, como surtos zoonóticos ou resistência antimicrobiana?
RDO – A nossa carta aberta em One Health pretende alertar os nossos decisores políticos, que assumirão já a próxima legislatura, de que, em vez de cada setor (saúde humana, animal, ambiental) operar de forma isolada, se deve promover a criação de um sistema integrado que consolida os dados provenientes de hospitais, clínicas veterinárias, explorações agrícolas, águas residuais, fauna silvestre, etc. É preciso ainda desenvolver algoritmos e sistemas de análise integrados, que permitem cruzar dados epidemiológicos com fatores ambientais e práticas agrícolas, revelando tendências invisíveis em sistemas isolados.
Por exemplo um surto de gripe aviária detetado em aves migratórias pode ativar medidas preventivas em saúde humana e pecuária antes de a transmissão ocorrer. A resistência antimicrobiana (RAM) é um exemplo de uma gestão pouco eficiente sem a abordagem One Helth. Por outras palavras, a RAM não pode ser combatida apenas no setor da saúde humana. A vigilância integrada permite monitorizar o uso de antibióticos em medicina veterinária e humana, detetar genes de resistência em ambientes como solos ou águas residuais e mapear a emergência e circulação de estirpes resistentes entre humanos, animais e ambiente. Sabemos hoje que outras doenças, como a COVID-19, o ébola, a febre do Nilo Ocidental ou a Mpox, têm origem zoonótica e, portanto, é importante monitorizar reservatórios animais (morcegos, aves, roedores, primatas).
Mas existem várias dificuldades à implementação da One Health. Desde logo, Portugal, como muitos outros países, ainda opera com estruturas administrativas sectoriais que dificultam o trabalho colaborativo entre ministérios e instituições. A abordagem One Health requer recursos financeiros adicionais para equipas transdisciplinares, requer sistemas partilhados de dados e formação, mas para isso precisamos de linhas orçamentais específicas, combater a escassez de profissionais capacitados nas áreas da toxicologia, e combater a inerente resistência a abordagens novas que desafiem a separação tradicional entre setores. Ou seja, a ciência não tem boundaries, muito menos quando trabalhamos na saúde, e por isso criamos a 1H-TOXRUN para quebrar as fronteiras e os “olhares para os próprios umbigos” entre os profissionais de saúde.
Adicionalmente, teremos de ter em conta as questões legais e técnicas sobre acesso, interoperabilidade e confidencialidade de dados entre instituições de diferentes setores.
HN – Como avalia o impacto das alterações climáticas e da perda de biodiversidade na saúde humana e animal, e que medidas concretas sugere para mitigar esses riscos?
RDO – O impacto é profundo, crescente e está interligado. Ambos os fenómenos atuam como multiplicadores de risco, contribuindo para o aumento de doenças, insegurança alimentar, desastres naturais e desequilíbrios ecológicos, que afetam diretamente a saúde.
Alterações no clima favorecem a expansão geográfica de vetores (como mosquitos, carraças e roedores), o que promove surtos de doenças como dengue, malária, febre do Nilo Ocidental nos humanos, e a leishmaniose e outras doenças parasitárias em animais. Aliás, Portugal já apresenta casos autóctones de doenças anteriormente exóticas devido a estas alterações.
Outras evidências são o facto de o aumento da temperatura, poluição do ar, água e solos com metais pesados, microplásticos e pesticidas e os eventos extremos (fogos florestais, ondas de calor) provocarem o agravamento de asma, doença pulmonar obstrutiva crónica, enfartes, maior mortalidade em populações vulneráveis (como idosos e crianças). Também influenciam a produtividade animal, uma vez que provocam a redução da fertilidade. O aumento do consumo de água e mortalidade, as quebras nas colheitas e a perda de polinizadores afetam o abastecimento de alimentos seguros e nutritivos. E a degradação de habitats, obriga espécies selvagens a aproximarem-se de humanos e animais domésticos, facilitando as zoonoses.
HN – Que projetos específicos está a 1H-TOXRUN a desenvolver para promover a saúde integrada e prevenir emergências sanitárias em Portugal?
RDO – Integrar a abordagem One Health nas políticas públicas em Portugal é uma necessidade estratégica, sobretudo num contexto de mudanças climáticas, pandemias e pressão ambiental. A 1H-TOXRUN do IUCS-CESPU (link https://toxrun.iucs.cespu.pt/), hoje integrada na UCIBIO – Unidade de Ciências Biomoleculares Aplicadas, foi fundada em março de 2021, motivada pela ausência de estrutura nacional capaz de fazer frente às emergentes necessidades da saúde. E, desde então, tem participado e promovido: planos de alerta para doenças transmitidas por vetores; vigilância epidemiológica integrada (One Health) para zoonoses e RAM, em particular através do projeto Micromundo (link:
) nas escolas secundárias; na capacitação de profissionais de saúde sobre os riscos emergentes, campanhas de literacia em saúde dirigidas à população; o uso racional de antibióticos e fertilizantes químicos; o apoio a diferentes instituições universitárias na inclusão do One Health nos planos de estudos universitários; e o financiamento de projetos de investigação em One Health através da integração de mais de 70 doutorados, oriundos dos 3 pilares do One Health.
Por isso, a 1H-TOXRUN está hoje envolvida em vários projetos de investigação financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que visam abordar desafios emergentes na saúde pública e das intoxicações, promove desde 2021, o único Congresso Internacional em Portugal nesta temática, que serve como plataforma para a discussão e capacitação das gerações futuras através da sinergia entre Ciência, Educação e Sociedade. Preocupa-se com os problemas da migração e o fluxo de doenças, poluição, RAM, segurança alimentar e saúde mental, a sustentabilidade ambiental, e a participação em programas de doutoramento e de mestrado que incorporam a abordagem One Health.
Entrevista: MMM
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