A dor existe em tom de alerta. É como se nos fosse lembrando aquilo que já vivemos e nos educasse a prepararmos aquilo que (ainda!) nos falta viver. É o nosso corpo a fazer troça de nos sentirmos no comando. É aquele sinal luminoso que Deus colocou no painel de instrumentos para nos alertar de que algo não está bem.
O queixume acompanha a idade, porque esta aumenta os "ais" de ano para ano. A solidão que, tantas vezes, acompanha o envelhecimento é balanceada com o aumento de onomatopeias proferidas. Talvez seja o eco da queixa proferida que nos faz sentir vivos e nos desperta os sentidos.
Refugiamo-nos na fugacidade do tempo para nos justificarmos. O tempo não passa rápido, não. Nós é que vivemos depressa e não paramos para pensar nele. Quando damos conta ele já lá vai, é certo. Passou tão lento que nem nos incomodou e agora queixamo-nos, porque é aquilo que nos resta.
Há expressões que nos lembram que envelhecemos. "Aquela vez que fomos" é sinal de que, há muito, não voltamos. É uma saudade que se mistura com a intensidade daquilo que já foi. Há uma maturidade em romancear um momento que outrora era comum. Passamos uma conversa a reviver como se lá tivéssemos voltado outra vez. Sentimos os cheiros, as texturas e os sabores que se expressam numa taquicardia, abrindo a porta à saudade. Não é que queira voltar. Aliás, isso seria banalizar e a saudade sairia pela mesma porta por onde entrou. Passamos a viver das memórias e a saber conviver com elas. Relembramos sempre as mesmas histórias, sorrimos sempre nas mesmas partes e prometemos voltar, com a mesma pressa que sabemos que não o vamos cumprir. Talvez porque também não queiramos mexer nas memórias. Correríamos o risco de misturar histórias, deixando de relembrar as mesmas passagens e de sorrir nas mesmas partes.
Utilizamos, cada vez mais, a conjunção adversativa "mas". A merda da maturidade faz-nos ponderar. Arriscamos menos e a razão tenta sobrepor-se à emoção. "Sim, mas" é quase um "não, se". Somos pouco imperativos e as palavras perdem a força, como aquela que a dor nos tira.
Há uma confiança inerente ao crescimento, proporcional à bagagem das revoluções da Terra em torno do Sol. Sentimo-nos vividos e responsabilizamos a maturidade, nunca percebendo o quanto abusamos nos advérbios. "Talvez se tivesse feito", "talvez se, de outra forma...", "talvez se não tivesse dito", "talvez se não tivesse agido". Talvez, talvez, talvez. Balbuciamos com a firmeza que a idade merece e criticamo-la, ao invés de lhe agradecermos. Esta revolta-se no exacto momento em que me dá uma dor no joelho, em que sinto o peso do mundo quando tento levantar-me ou quando espirro e fracturo uma costela. Ridículo, não é?
Aperto a mão no vazio e sinto-te aqui. E esta artrose (agora) não me doeu. Acreditas? Pondero deixar de tomar os analgésicos para não mascarar a dor. Quero voltar a senti-la para lhe relembrar que sei que sou o único que ainda cá está.
António, 83 anos.
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