O Jornal da Noite da SIC notícias de domingo, 7 de Janeiro de 2024, reportou o discurso de um dos elementos da Direção Executiva do SNS. Para este membro da direção, as notícias e reportagens transmitidas pelos meios de informação são “pontos de vista e pontos de vista não são nada mais do que isso mesmo, a vista de determinados pontos.”
São “pontos de vista” as notícias e reportagens informando que, em fins de 2023, mais de um milhão e seiscentas mil cidadãos (16% da população residente em Portugal), centenas de milhares de famílias, pagaram os serviços de um médico que não atende, nem existe e que esta situação se repete há dezenas de anos?
Se durante o horário laboral os cuidados de saúde primários são escaços, após o horário laboral, nos fins-de-semana e nos dias feriados, não há cuidados de saúde primários.
É um “ponto de vista” que, um pouco por todo o país, muitas centenas ou milhares de pessoas, de todas as idades, são obrigadas a fazerem fila, às tantas da madrugada, na rua, durante horas, à porta de um qualquer Centro de Saúde, para obterem uma senha e consultar um médico? Se o cliente, doente, conseguir, algum dia, uma consulta, que já está paga, terá na sua frente um médico desconhecido, que não fará qualquer acompanhamento dos doentes que vai ver e se vai limitar a passar receitas. A exposição a tais situações degradantes e práticas médicas causam dano à saúde do doente, já em risco. Para muitos doentes, a exposição continuada a estas praticas pode representar um risco extremamente grave.
Muitas vezes, após horas de espera, ao frio e à chuva, os cidadãos, muitos, de idade avançada, são informados de que as senhas acabaram e que podem tentar para a próxima semana. Se quiserem, também se podem dirigir às urgências hospitalares!
São também “pontos de vista” as notícias, as reportagens e a experiência de milhões de cidadãos, que atestam as más instalações dos serviços de urgência hospitalares, a péssima organização e qualidade destes serviços? Há, permanentemente, urgências fechadas, outras sem os médicos necessários e quase todas subdimensionadas. Os doentes, angustiados e em grande aflição, são recebidos por um segurança fardado ou por policias. Nunca por um profissional de saúde.
Os espaços são sujos, as salas exíguas e nada acolhedoras ou apropriadas.
Há décadas que, anualmente, são recorrentes os períodos em que centenas de doentes, muitos em macas e em cadeiras de rodas, acompanhantes e bombeiros, enchem as salas de espera da maioria das urgências hospitalares do país. É comum ver também dezenas de pessoas esperarem fora dos edifícios ou das construções temporárias e dos contentores, para se precaverem de possíveis infecções e respirar ar menos saturado.
Um bombeiro entrevistado pela SIC noticias, no Jornal da Noite de 14 de janeiro de 2024 explica: “estamos a perder muita gente, muito ser humano que está a morrer e que não deveria de acontecer.”
São igualmente “pontos de vista “as manifestações de desespero de familiares e os vídeos onde é visível que os doentes, após a triagem, muitos a necessitar de cuidados muito urgentes, que devem ser prestados em menos de uma hora, esperam horas, por vezes dez, vinte ou mais horas, em camas, macas, ambulâncias ou mesmo no chão, em salas vazias ou corredores, para serem vistos por um médico interno exausto, revoltado e, ele também, em grande sofrimento?
Estes médicos, em formação, são ´obrigados´, a fazer centenas de horas extraordinárias, acima das estipuladas no seu contrato de trabalho o que tem consequências gravíssimas para a sua saúde e, inevitavelmente, para o seu desempenho profissional.
Segundo um estudo promovido pelo Conselho Nacional do Médico Interno, em 2023, quase 65% dos médicos inquiridos “encontra-se num nível de exaustão emocional grave,” mais de 45% “num nível elevado de despersonalização/desumanização” e 48% “apresenta elevada diminuição da realização profissional.” A prevalência “de burnout grave é mais de três vezes superior à dos restantes médicos portugueses (24,7% vs 7%)” e superior à média de estudos realizados noutros países.
No entanto, na reportagem da SIC notícias, a Direção Executiva do SNS afirma que “podemos cair no erro de achar que tudo aquilo que nós vemos é a realidade plasmada e unívoca.”
Não é totalmente claro se estas declarações significam também que a Direção Executiva do SNS ´se está nas tintas’ para as opiniões dos clientes do SNS e dos cidadãos.
Mas, muito mais grave é o facto dos responsáveis pelo SNS português nunca se responsabilizarem por nada, nunca reconhecerem erros, nunca pedirem desculpa e nunca serem, realmente, responsabilizados pelo trabalho que fazem.
Será possível negar que, há já dezenas de anos, consecutivos, os clientes do SNS são confrontados com intermináveis e permanentes listas de espera para consultas de especialistas e cirurgias, com frequentes cancelamentos, sucessivos, destas intervenções, muitos em cima da hora e sem aviso atempado ou compensação dos clientes? Será também possível negar a falta de camas e de enfermarias obrigando os doentes a permanecerem nos corredores, a falta de informação e acompanhamento de doentes e familiares?
Prevenção social da doença. Onde estão implementadas as políticas de prevenção diversificadas, abrangestes e eficientes?
Todos os anos, os doentes do SNS são confrontados com múltiplas greves de profissionais da saúde terrivelmente revoltados e desmotivados, com consequências desastrosas para os doentes e para a sociedade. Serão falsas estas notícias, como as que dão conta que centenas ou milhares de profissionais pedem Escusa de Responsabilidade, por acharem que as suas condições de trabalho são irresponsáveis e poem em perigo os doentes? Será também falso que, frequentemente, muitos chefes de equipas hospitalares e equipas inteiras, se demitem por considerarem que não têm condições para prestarem os serviços pelos quais são responsáveis, em condições de segurança para os doentes? Será que estes especialistas abdicam das suas funções, de grande prestigio, de forma leviana?
Será que a Autoridade para as Condições do Trabalho não está obrigada a atuar?
Destroem a saúde e anos de vida saudável, de todo um país de 10 milhões de pessoas. Destroem a democracia.
Dos doentes que recorrem às urgências hospitalares e daqueles que ficam internados, uma elevada percentagem não o faria se os Cuidados Primários e os Cuidados Continuados não fossem tão insuficientes e deficientes.
Incompetência, maldade e impunidade.
Há dezenas de anos que o SNS português poe milhões de doentes e dezenas de milhares de profissionais em situações de grande risco para a sua saúde e coloca toda a sociedade em intenso sofrimento emocional e social. Durante todo este período não foram prestados, atempadamente, os cuidados de saúde devidos, sendo expectável que estas situações, desumanas e associais, tenham provocado o agravamento do estado de saúde, a perda de muitos anos de vida saudável e a morte prematura de muitos milhares de pessoas.
Só nas últimas semanas de 2023 e início de 2024, centenas de óbitos, a mais do que os esperados, de clientes do SNS, continuam por explicar. Provavelmente, a morte destes cidadãos, a revolta e o luto das suas famílias, poderiam ter sido evitadas se o Ministério da Saúde tivesse estabelecido um acordo com os internistas, a campanha de vacinação tivesse tido a qualidade necessária e a preparação da situação normal de Inverno tivesse sido feita atempadamente e de forma eficiente.
O Diário de Notícias, de 11 de janeiro de 2024, escreve que “Portugal é o país com maior excesso de óbitos na primeira semana de 2024, entre os 25 que constituem a rede europeia EuroMOMO” e é o único que tem vindo a registar "um excesso muito elevado" de mortalidade.
Que medicina se pratica no SNS?
A atuação dos responsáveis pelo SNS português pode configurar situações previstas no Código Civil relativas à recusa de auxílio a pessoa em perigo (crime de omissão de auxílio), negligência e ocultação de negligência (Comissão por acção e por omissão. Crime de ofensa à integridade física por negligência), ameaça grave à saúde publica, etc. O Ministério Público e os legisladores poderiam igualmente investigar se há indícios de violação do Princípio da Igualdade entre contratantes e incumprimento contratual por parte do Estado português em relação ao outro contratante, as pessoas residentes em Portugal obrigadas a pagar o SNS sem meios para exigir contrapartidas justas e de qualidade. Finalmente, é expectável que esteja em causa o desrespeito por alguns dos direitos fundamentais dos cidadãos da União Europeia, segundo os acordos firmados por Portugal. Também parece claro que os princípios de Good Governance não são respeitados.
Sendo a União Europeia um dos maiores financiadores do Estado Português, poderia esta examinar, com carater de urgência, a situação do SNS português, propor, fazer implementar e avaliar medidas que protejam, efetivamente, a saúde dos cidadãos e da sociedade.
Um artigo de opinião de Manuel Fernando Menezes e Cunha, Psicólogo da Saúde e Economista do Desenvolvimento.
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