Conforta-nos o esconderijo, em forma de bem-estar, de descansarmos a cabeça debaixo da crosta terrestre, a meia dúzia de quilómetros do ruído da preocupação. Ensinados pela avestruz - antepassado do medo-, cuja evolução da espécie se encarregou de manter, procuramos diariamente uma via verde para o erro.
Pedimos, de forma exclamativa, um estudo pulmonar - não para deixarmos de fumar, mas para nos certificarmos de que ainda podemos continuar a fazê-lo.
Tomamos um comprimido para o colesterol ou para a diabetes, não para prevenirmos complicações, mas para nos permitir continuar a comer enchidos, doces e todo o tipo de hidratos. Vivemos a vida à luz de um filme pornográfico: sabemos que a história não é real, mas gostamos sempre de ser enganados.
Queremos saber tudo, menos a verdade. Essa, quando dolorosa, é suavizada com um diminutivo que nos atenua a responsabilidade. "Tenho um bocadinho de diabetes" ou "tive um enfartezito", dito numa voz tímida naquele bar perto de casa, enquanto tomamos um café, comemos uma nata, pedimos um fino e desbloqueamos a máquina do tabaco. É cultural como a mentira.
Inventamos expressões que nos tranquilizam e fazem esquecer a culpa que nos consome, como "tenho de morrer de alguma coisa" ou "não fico cá para semente". Sentenças que emanam saúde, dado que só alguém no auge da sua vitalidade pode estar tão confiante em afastar a patologia.
Inventamos os piores desaires para justificar que a nossa falha está no bom caminho: "Se morrer, morri. Também posso atravessar a rua e morrer atropelado". Erguemos a cabeça e prosseguimos confiantes, como se tivéssemos experienciado a dor e fugido, momentaneamente, à morte.
"Devias apanhar um susto!" - dizemos. Por lhe querermos tão bem, desejamos-lhe tão mal. Soa a um mal menor, de fácil resolução - como se só nós nos apercebêssemos da benignidade do quadro, exultando o lado néscio de quem gostamos. Pedinchamos um mal simples, que apenas lhe avive o medo.
Fazemos dieta antes de fazermos análises, para prevaricarmos depois. Deixamos de beber álcool antes de um estudo analítico, para corrompermos posteriormente. Julgamos enganar o médico mentindo a nós próprios.
Precisamos de provas positivas para perpetuar o erro, como no amor. Como na paixão. O amor e a paixão têm o mesmo princípio activo, com excipientes diferentes. Ambos precisam de provas diárias que perpetuem a certeza e mantenham viva a infantilidade e a lamechice, aos olhos de quem, erradamente, nunca sequer sentiu, quanto mais amou.
O Ser Humano gosta de errar e de cultivar o erro. Prova, diariamente, que é o estado puro do sentimento. A merda é que, ao comando do medo, anda à toa a tentar humanizar-se.
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