Há uma íntima relação entre a saúde e a cultura. Ambas determinam a nossa existência, com a diferença que a cultura é, muitas vezes, feita ao longo de séculos, ao invés da nossa saúde que pode ter a mesma inconstância que a palavra "irrevogável" para certas forças partidárias. A saúde e a cultura têm um elo comum: as pessoas. A cultura forma pessoas que, num ciclo vicioso, produzem mais cultura. A questão aqui não é o que a arte nos mostra, mas o que fazemos posteriormente com essa informação e a forma como intervimos no mundo. É problemático tudo aquilo que nos dote de pensamento, opinião e espírito crítico, pelo que há pouco interesse num mundo com cabeça. Mais depressa se discute a legalização das armas de fogo do que o orçamento de estado para a cultura porque se sabe, de antemão, que uma população que pensa e se questiona tem a possibilidade de causar muito mais estragos.

Pela primeira vez Portugal recebeu uma mostra de um dos maiores fotógrafos do mundo, Robert Mapplethorpe, com uma exposição que reúne polaroids íntimas, fotografias de nus artísticos abordando temas provocadores, sobretudo para a época, como o erotismo em casais homossexuais ou o submundo do sadomasoquismo. Ficará no Museu de Serralves até 2019, mas se quer ver a exposição, apresse-se. Pode não apanhar as salas todas abertas ou ter que resgatar um idoso do lar para o deixarem ver a exposição completa.

Ter-lhe-ão dado total liberdade mediante aprovação e eu tenho ideia de já ter falado de algo parecido numa aula de história

Segundo informação privilegiada a história não terá sido bem como veio nos jornais, tendo existido total liberdade por parte da administração de Serralves:

- Pode expor ali à vontade, naquela sala ao fundo.
- Mas... aquilo diz "despensa".
- Sim, mas é a nossa melhor despensa. Tem de tudo, inlusive enlatados de salsicha que farão pandã com a exposição. Vá por mim, há muitos anos que lido com a liberdade.
- Liberdade? Mas isso é o que me está a tirar. Além de me desautorizar.
- Está a brincar, certo? Já lhe disse que pode expor ali à vontade. Sabe o que é "à vontade"? Pode meter as obras onde quiser. Olhe, tem tanta liberdade que nem vou lá ver como é que ficou. Quer melhor, homem de Deus? Enfim, artistas.
- Não acredito que me está a fazer isto.
- Acredite, querido. Pela arte faço tudo. Ah, depois feche a porta. Se for preciso ir aí alguém, nós damos-lhe a chave, fique descansado. Palavra de escuteira.

Ao que parece, ter-lhe-ão dado total liberdade mediante aprovação e eu tenho ideia de já ter falado de algo parecido numa aula de história.

Um dos problemas é o conteúdo da exposição. Daí ter tido salas interditas a menores de 18 anos e terem sido retiradas obras da exposição, com o intuito de não chocar os cultos com a genitália alheia. Terá havido um impedimento em mostrar o material quando, o problema, era o material do artista ter o material todo à mostra. Quer dizer, não é o material do artista. É o material que o artista criou que contém esse tipo de material que vocês acharam que era do artista. Pelos vistos, o problema aqui é haver um fotógrafo que enquadra pénis nas suas obras. Quer dizer, ele não enquadra pénis. Ele fotografa pénis que mete em quadros que, posteriormente, são enviados para fundações que os barram à porta. Quer dizer: a fundação não barra os pénis, barra o material do artista. Mau, não é o material do artista que é barrado, isso era estúpido. É o material que o artista produz e que foi impedido de ser exposto. Mas convém esclarecer que o artista não produz pilas. Produz material que, neste caso, tem pilas. Algumas é que não conseguiram entrar. As obras, não as pilas.

Bem, esclarecida a confusão é importante falarmos do acesso a menores de 18 anos estar condicionado à companhia de um adulto. Sim, porque ver pilas sozinho é chocante. Na companhia de um adulto é muito mais tolerável. Há uma diminuição do espanto e do choque porque é dividido por dois. Aliás, dois terços do choque vão para o adulto, dado que já tem uma bagagem emocional maior para reagir a uma pila; um terço vai para a criança, para rezar três Pai-Nossos e cinco Avé-Marias e limpar a alma do pecado e das impurezas do corpo humano.

Na minha opinião, o que fez a administração chatear-se com o curador nem foi bem a sua demissão. Quem reprime assim a arte deve ser o mesmo tipo de pessoa que acha que o curador seria o responsável por curar a obra ou, quando muito, os erros de interpretação. Julgo haver a esperança de que os quadros rejeitados da exposição fossem revigorados pelo curador que seria quase um responsável pelo músculo fálico não inclinar para a esquerda. Curava endireitando-o, tal qual um prumo. Desta forma, julgo não haver necessidade dos menores serem acompanhados por um adulto porque, convenhamos, todos sabemos que o que assusta é a assimetria.

Esta administração provou que, de facto, incentivam a liberdade e mostram que o exemplo vem de cima. Senão vejamos: haverá maior liberdade do que condicionar a arte, seu exponente máximo, num museu?

Continua a ser estranho acharmos registos fotográficos de abonos de família chocantes, mas agirmos com naturalidade quando o tribunal invoca "sedução mútua" aquando da violação de uma jovem inconsciente por embriaguez

A liberdade concedida por Serralves é idêntica à que os meus pais me davam quando, em criança, pedia permissão para ir a algum lado, tendo um peremptório: "acho que não devias ir, mas tu é que sabes". Este remate na expressão não é mais do que uma liberdade condicionada, fazendo uma transição directa da responsabilidade. Se, por momentos, pensei que podia ir, cedo me apercebo de que, se for, serei responsabilizado por algo tão simples como respirar. É como chegarmos a casa bêbados e a nossa namorada dizer: "estás lindo!". Se por estar ébrio fico vaidoso, cedo me apercebo de que, quem é realmente bonito, não fica semanas com uma ausência de diálogo debaixo do mesmo tecto. Pior do que não ser livre é viver na ilusão de que se é. É como levar uma chapada: se me derem logo, sinto a dor mas a vida prossegue. Se, por outro lado, me disserem "vais levar uma chapada, mas não te digo quando", vêm acopladas duas dores: a dor propriamente dita e a da incerteza de quando será. Todos sabem que a incerteza mata e piora tendo uma chapada a crédito.

Serralves, com esta postura, sai pela porta pequena - como aquelas do Imaginarium - e impede que entremos pela grande para continuarem no controlo da situação. Continua a ser estranho acharmos registos fotográficos de abonos de família chocantes, mas agirmos com naturalidade quando o tribunal invoca "sedução mútua" aquando da violação de uma jovem inconsciente por embriaguez. Violar a autonomia técnica e artística é um problema, tudo o resto é um "estavas a pedi-las". É que até parece irónico que, num caso que envolve relações sexuais, seja o Tribunal da Relação a manter a pena suspensa. São prioridades: há que investir tempo em restringir imagens de pilas, não vá chocar alguém e causar danos emocionais. Já ter relações sexuais não consentidas com alguém fora do seu estado de consciência causa pouco dolo, pelo que somos permissivos. Isto só me leva a crer que, a forma de tornar a arte livre, é irmos bêbados a museus. E todos sabem que um vómito num quadro dá outra vida à obra.

A comunicação social devia aprender com Serralves. Futuramente, todas as notícias que aparecessem e que afectassem directamente a vida de quem trabalha de forma honesta (como toda uma panóplia de assuntos de estado, roubos a contribuintes ou banqueiros envolvidos em fraudes milionárias a sair impunes) deviam, também elas, vir com anúncio a dizer "tem imagens que podem ferir a sensibilidade de alguns espectadores". Mas não, estas notícias continuam a passar em horário nobre, no formato canzana informativa: informando que nos estão a fornicar. É que, sinceramente, não me importo que o Estado me fornique. A sério. Só fico triste por não me convidar antes para um café, nem me dar um beijo na boca quando me entrega a carta das finanças.

Com isto, resta-me salientar que este texto foi escrito à mão e a lápis de cor azul. Era a cor que queria para esta crónica mas, por razões alheias a mim, ao digitar, tomaram a liberdade de o alterar para a cor preta. Enfim, artistas.