Um dos meus melhores amigos tem a alcunha de mágico. Não por acertar na carta que estou a imaginar, nem por tirar um coelho de uma cartola porque, além de atentar contra os direitos dos animais e de ser pouco higiénico (na medida em que ficaria com o cabelo cheio de fezes de leporídeo), é alérgico a animais. A sua alcunha deve-se ao facto de estar numa festa e, sem darmos por ela, fazer-se desaparecer. Já todos sabemos que o Emanuel é assim, pelo que o desculpamos pelo feitio. Vivemos as conversas com intensidade, porque nunca sabemos se é a última nesse dia e isso faz-nos desfrutar do momento. Mas não fazemos disso um evento. Se cada vez que ele desaparecesse o festejássemos, passávamos a vida em folia castigando o fígado. É que beber álcool socialmente é aceite, ser bêbado é reprovado. Aceitamos um "só bebo em festas" sem questionarmos se são relações públicas ou porteiros de discoteca. Eu gosto do Emanuel mas não tenho especial apreço por magia o que, por arrasto, faz com que não nutra um carinho especial pela sua arte de desaparecer quando é convidado. Acho sempre que a melhor magia acontece quando se enganam no truque, porque acertar torna-se banal e, convenhamos, não gosto muito que me enganem.

Sou daqueles que acham que conseguem sempre acompanhar o truque, condicionando a capacidade de ilusão. Como na Páscoa. Se acompanharmos o truque, percebemos que Cristo ressuscita no fim. Estou a ser spoiler, eu sei. Mas sinto sempre que é ingrato ressuscitar passados três dias. Devia ressuscitar-se mais rápido. É que, no exacto momento em que me aprumo, visto o meu melhor preto e saio de casa com um ramo caro e bem difícil de arranjar (porque em funerais de pessoas conhecidas é sabido que as floristas ficam assoberbadas de trabalho), dizem-me:

- Vidal, já não há funeral. Ele ressuscitou.

Há um misto de sentimentos, é certo. Mas fiquei contente, juro que fiquei. Só me apetecia abraçá-Lo, meter a conversa em dia sobre a eternidade e dar-lhe alguns conselhos sobre a amizade, para ver se agora escolhe melhor os amigos. É que uma pessoa quando morre sabe sempre muitas coisas. Mas alertaram-me logo:

- Ah, já não consegues falar com Ele. Há cerca de dez ou quinze minutos subiu aos céus. A esta hora já deve estar sentado à direita do pai. Mas disse para não nos preocuparmos, que não tarda volta.

Não duvido que volte. Mas pela demora, é justo que ache que está imitar os técnicos da MEO que, quando há um problema com a internet, dizem que passam sempre entre as nove da manhã e Maio do ano seguinte.

Morrer e ressuscitar já me deixa com a pulga atrás da orelha, ter relação com o Carnaval faz-me crer que poderão ter prolongado a sátira. E há algo que corrobora ainda mais esta ideia: os dias em que não se pode comer carne. A Quarta-feira de Cinzas até entendo, dado que é após o Carnaval e muitas pessoas têm o estômago às voltas por terem feito demasiados brindes com o Pikachu e mandado penáltis com os Teletubbies. Quanto à Sexta-feira Santa, não vejo nada mais satírico do as pessoas que se dizem religiosas e não comem carne nesse dia, substituindo-a por uma bela posta de cherne ao almoço e uma lagosta inteira ao jantar. Ser religioso? Sim claro, desde que isso não comprometa a gula - que por acaso até é um dos sete pecados capitais. Se, por alguma eventualidade, cometerem o pecado de comer carne nesse dia, nada temam. Há sempre a hipótese de pagarem uma bula à igreja, carimbando assim um lugar na guest list do céu.

Teologicamente falando, há um empenho da Igreja em transmitir a palavra de Deus. Cientificamente falando, esse empenho está taco a taco com o de transmitir herpes, pelo que eu acho que deve haver algo divino no vírus. Caso contrário não andariam, em pleno dia de Páscoa, de casa em casa, a pedir que beijemos todos o mesmo sítio de Cristo. E quando fechamos os olhos e ousamos simular um beijo a três centímetros da cruz, sentimos um impacto nos dentes após o discípulo se ter aproveitado da nossa expressão de sentimento no escuro, fazendo-me abrir os olhos com um pé do Senhor na beiça. Sem querer, beijei a meia cidade que já o tinha feito antes de mim. Tranquiliza-me saber que desinfectam com um pano seco do tamanho das fatias individuais de queijo do Lidl, porque toda a gente sabe que os vírus detestam pano. Imagino a quantidade de casais que se divorciaram por não terem conseguido justificar ao cônjuge o aparecimento de uma lesão no lábio depois das festividades.

Para mim o Compasso Pascal tem ainda a mais valia de a minha casa ser quase a última onde eles vão, muitas vezes guiados por Deus tamanho é o estado de ebriedade após terem aceitado todas as oferendas destiladas das casas anteriores. À quantidade de vinho que carregam acho sempre que, se a seguir celebrassem a Eucaristia, arriscavam-se a ter mais sangue de Cristo do que o próprio.

A Páscoa nunca é num dia fixo por audácia do Senhor. Isto porque até para falecer é preciso ter sorte. Não convém falecer num dia em que aconteçam outras coisas ou que faleça alguém importante, senão arriscamo-nos a partir despercebidos. Foi o que aconteceu a Maria Alberta Menéres que faleceu no mesmo dia em que a Catedral Notre-Dame ardeu. Estou certo de que se ela pudesse escolher teria antecipado um dia a morte, só pelo privilégio do destaque. A Igreja, que cedo se apercebeu disto, colocou uma data móvel para a Páscoa com o intuito de minimizar as coincidências, não ofuscando a religião.

O Emanuel diz que, quando morrer, também gostava de ressuscitar. Já lhe disse que me encarrego de o fazer. Afinal, a memória não nos ressuscita sempre?