Nunca pensei que um simples gesto — partilhar a autobiografia de Papa Francisco — no dia anterior à sua partida, fosse tão simbólico. Não sabia de nada, e no entanto, algo me chamou, como se uma presença silenciosa me dissesse: “Lê, lembra-te dele, agora.” Tenho deficiências auditivas e visuais, mas talvez seja por isso mesmo que desenvolvi este sexto sentido. Um pressentimento que, neste caso, me ligou a um homem cuja voz chegou a tantos, mesmo quando não se ouvia.
Jorge Mario Bergoglio nasceu a 17 de dezembro de 1936, em Buenos Aires, filho de emigrantes italianos. Antes de ser Papa, foi técnico de laboratório, porteiro de discoteca, professor de literatura e química — e claro, padre, bispo, cardeal. Mas sempre, sempre pastor. A sua eleição em 13 de março de 2013 foi, desde o primeiro momento, um rompimento com as convenções. “Os cardeais foram buscar-me quase ao fim do mundo”, disse, com um sorriso tímido e olhos marejados. E foi assim que começou o pontificado de Francisco — um Papa diferente.
Desde o início, recusou os luxos e formalismos do cargo. Escolheu viver na Casa Santa Marta em vez do Palácio Apostólico, usava sapatos simples e ia buscar a sua mala. Mas não foram os gestos simbólicos que mais marcaram o seu legado — foram as palavras e, sobretudo, as ações.
“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja… fechada, preocupada com o seu conforto”, disse numa das suas homilias. Francisco queria uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja que fosse hospital de campanha para as feridas do mundo. A sua encíclica Laudato Si’ sobre a ecologia integral, a exortação Amoris Laetitia sobre a família, e a Fratelli Tutti sobre a fraternidade e a amizade social, são textos fundadores de um novo olhar cristão para os desafios do nosso tempo.
Mas foi no concreto que tocou vidas — como a do meu sobrinho. Nascido num momento difícil da nossa família, o nome Francisco foi escolhido com a esperança de um recomeço, inspirado no Papa que, mesmo à distância, parecia compreender os corações aflitos. À medida que crescia, o meu sobrinho encontrava nas palavras do Papa inspiração. “Não deixemos que nos roubem a esperança”, dizia ele. E essa esperança entrava-nos em casa, nos dias bons e nos dias de tempestade.
Foi com ele que o meu sobrinho se baptizou. E foi também com ele que a minha sobrinha fez a primeira comunhão — momentos que ligam para sempre a nossa família ao seu pontificado. Coincidiu ainda com os 50 anos do Externato São Miguel Arcanjo, onde eu e o meu irmão frequentámos o infantário e a primária, e onde o ciclo preparatório foi acompanhado por uma sala de estudo onde cresceu o sentido de comunidade. Nesse contexto educativo e espiritual, a presença inspiradora do Papa Francisco era sentida, mesmo que indiretamente. A sua visão de uma Igreja próxima das pessoas encontrava eco na simplicidade e nos valores vividos ali.
Francisco não fugiu à dor. Falou da guerra como “uma derrota da humanidade”. Enfrentou escândalos dentro da Igreja com uma frontalidade que lhe valeu críticas e aplausos. Pediu perdão em nome da Igreja por abusos sexuais cometidos por membros do clero. “Peço humildemente perdão pelo mal causado”, declarou com a voz embargada. As suas posições incomodaram setores conservadores — alguns chegaram a acusá-lo de relativizar a doutrina. Mas ele nunca se intimidou: “A misericórdia é a verdadeira força que pode salvar o homem e o mundo do câncer que é o pecado.”
Foi também polémico quando abordou temas como a ordenação de homens casados em regiões remotas, o papel das mulheres na Igreja ou a abertura à comunhão para divorciados recasados. Em muitos destes temas, não impôs mudanças radicais, mas abriu portas e iniciou conversas que estavam há décadas encerradas.
Um dos momentos mais marcantes do seu pontificado para os portugueses — e especialmente para os jovens — foi a sua presença na Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, em agosto de 2023. Francisco encantou o país com a sua simplicidade, alegria e capacidade de escutar. Disse aos jovens: “Na Igreja, há espaço para todos. Todos, todos, todos!” — uma frase que ficou gravada nos corações de muitos e que simbolizou a sua visão inclusiva. A missa final no Parque Tejo reuniu mais de um milhão de peregrinos e foi, sem dúvida, um momento histórico para Portugal. A sua presença foi vivida quase como um abraço coletivo, um encontro com alguém que nos compreendia, mesmo sem palavras.
Não foi um super-herói. Teve problemas de saúde, teve opositores dentro da própria Cúria Romana. Mas nunca se desviou da sua missão. Falou com migrantes, lavou os pés de prisioneiros, abraçou sem-abrigo. Foi, acima de tudo, fiel ao Evangelho dos gestos.
Com a sua morte aos 88 anos, numa segunda-feira serena, termina um ciclo. Mas o legado de Francisco está apenas a começar. Deixa-nos um convite profundo à reflexão: que Igreja queremos? Que humanidade queremos ser? Que planeta deixaremos aos nossos filhos?
Na minha vida, fica mais do que uma memória: fica um farol. E na do meu sobrinho, talvez um caminho. Papa Francisco mostrou-nos que é possível ser líder e servo, firme e terno, humilde e revolucionário. A fé, para ele, não era uma fortaleza, mas uma tenda aberta.
Hoje, ao escrever estas palavras, sinto-o próximo. Como alguém que passou por nós, não para nos impor certezas, mas para nos acender perguntas. E talvez seja isso o mais divino de tudo: o dom de nos fazer pensar, amar, agir.
Descanse em paz, Francisco. E obrigado por teres tocado o mundo — e o meu pequeno mundo também.
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