Não decorreram assim tantos anos quanto se poderia pensar da época em que se impunham medidas laborais com grande impacto na vida da(o)s trabalhadora(e)s. Recentemente adquiri, num alfarrabista, um livro sobre a “A campanha pelo casamento das telefonistas” datado de 1950.
A Liga Portuguesa de Profilaxia Social (julgo que ainda existente e em actividade), autora do livro, que no final deste ano perfaz um século (foi fundada em 1924) iniciou, no primeiro semestre de 1939, uma campanha para anular a proibição de as telefonistas da Anglo-Portuguese Telephone Company, Limited poderem casar, que está na origem da edição. Por estranho que hoje tanto pareça, nessa altura essa era uma norma, tal como para as enfermeiras dos Hospitais Civis e outras profissionais, que apenas abrangia mulheres. Tal revela, por certo, a forma como a sociedade, na época, olhava para os cidadãos, no caso em apreço na perspetiva do sexo (ou género se se preferir …).
Tal exemplifica, igualmente, a influência do trabalho na vida da(o)s trabalhadora(e)s e não só sobre a sua saúde. No 1º semestre de 1939 iniciou-se a campanha que chegou, em dezembro desse ano, à Assembleia Nacional onde foi, inclusivamente, evocada a sua inconstitucionalidade e que, mais tarde, viria a ser revogada.
Aquela obra literária inclui inúmeros depoimentos e artigos de Imprensa a favor da campanha em que inúmeros cidadãos “exigem” a revogação dessa norma, quase sempre cidadãos com grande preponderância na sociedade e igual capacidade de influenciar a opinião em tal domínio. É muito interessante ler (e reler) os argumentos utilizados e tentar compreender a cultura então dominante que determinava tão grande diferença entre homens e mulheres, já que os trabalhadores do sexo masculino nas mesmas funções não sofriam a mesma “punição”.
É indispensável ter presente que tal passou-se numa época relativamente recente já que muitos milhares de cidadãos de então ainda hoje estarão vivos. Essa “proximidade” deveria determinar uma reflexão profunda sobre o trabalho humano e, designadamente, sobre a importância que hoje se confere às relações entre a saúde e o trabalho em que muitos ainda consideram que, por exemplo, um acidente de trabalho é fruto do “acaso” ou mesmo de um “azar”. Note-se que ao acidente até se denomina “infortúnio” (ou “falta de sorte”).
O que acontece em relação às doenças profissionais e a outras formas de o trabalho interferir na história das doenças ainda é menos valorizado e encarado por muitos como uma vulnerabilidade de alguns trabalhadores que deveria ser minorada por exames de admissão “travestidos” de uma espécie de “seleção”.
De facto, a literacia no domínio da Saúde Ocupacional não é, entre nós, muito “robusta” e a sua perspetiva é mais frequentemente encarada como um custo do que como um investimento (para muitos mais uma “taxinha” dada a sua obrigatoriedade). De facto, o investimento em trabalhadores saudáveis (“produtores”) nem na perspetiva económica é, muitas vezes, considerado como algo indispensável à qualidade do “produto” que exigiria, por certo, mais atenção.
Note-se, como se referiu, que também, apenas a título de exemplo, as enfermeiras dos Hospitais Civis tinham norma similar que também vigorou até bem mais tarde (início dos anos de 1960) desse período pós 2ª Guerra Mundial.
Sendo o trabalho indispensável à criação de riqueza, mesmo naquela perspetiva (económica) não seria desejável mais investimento em tal domínio?
Estaremos a valorizar suficientemente a saúde (e a segurança) de quem trabalha?
Fará algum sentido “perder a vida” a ganhá-la?
Bibliografia
- Liga Portuguesa de Profilaxia Social. A campanha pelo casamento das telefonistas. Porto: Imprensa Social, 1950.
- Sousa-Uva, A.; Serranheira, F. Saúde, Doença e Trabalho: ganhar ou perder a vida a trabalhar. Lisboa: Diário de Bordo, 2ª ed., 2019.
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